Para a professora, líderes de grupos criminosos vivem sua religiosidade sem abandonar a truculência despótica do crime organizado
Por: João Vitor Santos, em IHU
Christina Vital tem se dedicado a estudar dois temas que parecem contraditórios: religião e violência. Mas, no contexto do crime organizado, estes temas estão imbricados. No entanto, é preciso cuidado na análise, pois, segundo ela, é equivocado falar que a religião transforma quem opera o crime organizado. A questão está mais em como o crime organizado vive sua religiosidade de forma muito particular. “Não acredito que possamos falar de uma metanoia, em sentido bíblico, para o caso de traficantes que se apresentam como evangélicos ou que estão próximos a essas redes e têm nelas referências de conduta e estratégia”, afirma em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
A pesquisadora, que tem seus estudos mais focados no ambiente do narcotráfico no Rio de Janeiro, detalha que muitos traficantes frequentam igrejas, fazem cultos de ação de graça, são dizimistas, fazem suas orações todos os dias pela manhã. “Mas eles ainda estavam na atividade criminal, ainda matavam, ainda subornavam, ainda batiam, ainda se drogavam”, ressalva. Neste sentido, um dos casos icônicos para compreender esta realidade é o líder do Complexo de Israel, o Peixão. “Nenhum deles verbalizou uma transformação completa em suas vidas. Fazem adaptações, inspiram-se em personagens bíblicas, com o próprio Peixão. Dizem até ser fiéis às suas esposas, mas não dizem e não podemos dizer nem do ponto de vista sociológico ou religioso que eles tiveram ‘um novo nascimento’”, detalha.
Embora seu foco não incida sobre as áreas de domínio da milícia, Christina observa que há diferença na religiosidade de traficantes e milicianos. Enquanto nas zonas norte e sul do Rio de Janeiro, áreas do tráfico, o neopentecostalismo reside, entre os milicianos é diferente. “A baixada fluminense e a Zona Oeste têm uma história de ocupação muito distinta de várias dessas favelas por mim pesquisadas e nessas regiões o catolicismo, a despeito do crescimento evangélico identificado de modo continuado e agudo nos anos 1990, continua produzindo muitos dos marcadores da sociabilidade”, pontua.
Por fim, a pesquisadora analisa o lugar que as igrejas ocupam em rankings de credibilidade junto à sociedade brasileira. O segmento desponta com as polícias e áreas militares em termos da confiança da população. Para ela, são sinais claros dos motivos pelos quais a violência e a religião acabam de braços dados nas periferias. “A resposta ‘enérgica’ à violência urbana e no campo, conforme anunciam políticos e chefes e comandantes de polícia, é a oferta pública que a maior parte da sociedade espera. Nesse sentido, o crescimento da violência no Brasil favoreceu políticos que anunciavam respostas draconianas ao crime organizado e as eleições 2018 foram emblemáticas neste sentido”, sintetiza.
Cristina Vital da Cunha é professora associada vinculada ao Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais e ao Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense – UFF. Possui graduação e licenciatura em Ciências Sociais pela UFF, mestrado em Antropologia e Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e doutorado em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Além de professora do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFF, também coordena o Laboratório de Estudos em Política Arte e Religião – LePar. Entre suas inúmeras publicações, destacamos o livro “Oração de traficante: uma etnografia” (Garamond, 2015).
Confira a entrevista.
IHU – Que relações podemos estabelecer entre a confiança da população brasileira na política e na religião?
Christina Vital – Desde 2010, a religião passou a ser uma variável cada vez mais significativa nos processos eleitorais brasileiros. O Instituto Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica – IPEC vem medindo a confiança dos brasileiros em instituições e grupos sociais desde 2009. Quando analisamos a confiança nessas instituições considerando a religião, observamos que os evangélicos são os que menos confiam na família (católicos 83 pontos, evangélicos 79 e outras religiões 81 pontos), nos amigos (católicos 65 pontos, evangélicos 62 e outras religiões 66 pontos), nos vizinhos (católicos 61 pontos, evangélicos 54 e outras religiões 57 pontos) e nos brasileiros em geral (católicos 57 pontos, evangélicos 50 e outras religiões 50 pontos).
Os evangélicos são os que menos confiam em todas as 20 instituições sociais pesquisadas, com exceção das igrejas, Forças Armadas e ONGs. A desconfiança de evangélicos na política institucional deve ser analisada à luz de outras variáveis como renda, escolaridade, local de moradia e, também, a questão teológica. Neste ponto, por exemplo, a força da Teologia do Domínio, em especial, da “batalha espiritual” no segmento pentecostal, o maior entre evangélicos no Brasil hoje, produz uma postura de soberana confiança celestial e uma desconfiança perene entre as pessoas de um modo geral na medida em que espíritos malignos podem se apossar de qualquer um para fazer mal à família, aos amigos e mesmo se apossar de um político para agir conforme “forças malignas”.
Os grupos religiosos pesquisados que valorizam mais uma perspectiva comunitária, como os católicos, são os que gozam de maior sensação de confiança mútua e institucional. Em termos mais gerais, as crises políticas geraram um decréscimo na confiança dos brasileiros em todas as instituições. Em nossa história recente destacamos 2013 e 2018. Neste ano, segundo dados do IPEC-2023, até o grupo social “família” foi muito afetado. Veja mais detalhes aqui.
IHU – Como compreender o fato de a Igreja – ou as igrejas –, junto com as forças armadas e policiais, estar entre as instituições de maior confiança da sociedade brasileira?
Christina Vital – Segundo a pesquisa ICS/IPEC-2023, dentre as 20 instituições sociais levantadas, são 6 as que os brasileiros mais confiam: o Corpo de Bombeiros, a Polícia Federal e as Igrejas (empatadas em 2º lugar), Escolas Públicas, Forças Armadas e a Polícia Militar. Observamos que na maioria delas há uma relação militar ou armada a começar pelo Corpo de Bombeiros no Brasil que é militarizado, diferente da maioria dos países no mundo.
O continente americano concentra as menores taxas de confiança institucional do planeta. Coincidência ou não, é o que tem as cidades mais violentas. Segundo pesquisa global anualmente realizada pela ONG Conselho Cidadão para a Segurança Pública e a Justiça Penal, das 50 cidades mais violentas do mundo, 46 estão no continente americano: 17 no México, 10 no Brasil, 7 nos Estados Unidos da América.
Em minha avaliação, e em consonância com outros especialistas, a situação da violência é diretamente responsável pela desconfiança nas instituições, assim como a nossa herança colonial. Analisando por este ponto de vista, conseguimos avaliar como as instituições que mais gozam de confiança institucional no Brasil são militarizadas/policiais. Poderia parecer contraditório em vista de serem essas instituições militares e policiais as mais denunciadas por violações de direitos humanos e uso extremo da força (violência), mas são justamente essas as que mais são demandadas por uma sociedade amedrontada por ameaças oriundas do universo do crime que, no Brasil, está ligado ao tráfico de drogas, de armas, dominações territoriais, jogos, contravenções.
A resposta “enérgica” à violência urbana e no campo, conforme anunciam políticos, chefes e comandantes de polícia, é a oferta pública que a maior parte da sociedade espera. Nesse sentido, o crescimento da violência no Brasil favoreceu políticos que anunciavam respostas draconianas ao crime organizado e as eleições 2018 foram emblemáticas neste sentido.
IHU – Se vivemos uma crise do cristianismo, como podemos compreender a alta confiança das pessoas nas igrejas? Ou na realidade não se vive esta crise do cristianismo e sim do catolicismo?
Christina Vital – O cristianismo nunca deixou de conviver com crises em seu interior, seja o cristianismo católico, seja o protestante. A superação dessas crises produziu respostas institucionais diferentes em cada tempo: formação de irmandades, rompimentos institucionais e criação de outros segmentos ou denominações, diversificação teológica entre outras.
Por outro lado, observa-se como a ideia de religião, de comunidade religiosa é positivada socialmente. Sendo assim, embora seja crescente o número dos que se identificam como sem religião ou dos que se identificam como “dupla pertença” ou “plural” (pessoas que se identificam publicamente como frequentadores e fiéis de mais de uma tradição religiosa), a religião e o cristianismo, de modo geral, continuam gozando de uma percepção positiva no conjunto da população, como já foi identificado pelos clássicos da sociologia há séculos.
Acesse aqui as conferências do XX Simpósio Internacional IHU – Cristianismo, Sociedade, Teologia. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transformação.
IHU – No que consiste a ideia de formação de cultura pentecostal em periferias? Quais as diferenças de uma cultura pentecostal fora das periferias?
Christina Vital – Em trabalhos publicados desde meados dos anos 1990, venho refletindo sobre uma cultura popular urbana, usando os termos de Pierre Sanchis. Nas considerações deste autor, as características desta forma de viver nas periferias estava marcada por “pouco rigor moralista, pouca disciplina cívica, esforço laboral anárquico, apesar de muitas vezes intenso, e, do ponto de vista religioso, uma porosidade das identidades que permitia a cada um participar ao mesmo tempo de definições institucionais múltiplas” (Pierre Sanchis, Religião & Sociedade, 1997).
Tomando esta e outras referências para pensar a situação contemporânea, eu diria que temos uma disciplina para o sucesso que envolve um direcionamento cotidiano pautado mais no mérito do que na graça divina, uma apresentação pública da identidade religiosa como capital social, uma valorização pública da tradição (que envolve o resgate de papéis de gênero e da família na sociedade). A valorização do mérito, da disciplina para o trabalho e da tradição é importante também entre os jesuítas, por exemplo, religiosos fundamentais no processo colonizador brasileiro. Contudo, a força dessa dinâmica empreendedora e de dominação do opositor chega de modo renovado não só às periferias, mas à sociedade brasileira como um todo através das Teologias da Prosperidade e do Domínio, assim como das mudanças no próprio capital a partir dos anos 1970 e o avanço do chamado neoliberalismo.
Essas duas dinâmicas são fundamentais para pensarmos não só as culturas periféricas, mas também o que acontece no Brasil (e em outros países da América Latina) de modo geral.
IHU – Como analisa o cenário de violência no Rio de Janeiro hoje? Como a religião e a religiosidade têm permeado este cenário? E que religiosidade é esta nestes territórios?
Christina Vital – Os anos 1990 ficaram conhecidos como a Década das Chacinas no Brasil. O Rio de Janeiro teve algumas emblemáticas como as de Vigário Geral, Acari e Candelária.
Várias políticas públicas na área de segurança foram formuladas, implementadas e derrotadas neste período que divide aquela década dos anos 2020. A sensação de segurança oscilou durante este período. A redução no número de homicídios nunca nos colocou em patamares desejáveis, mas a sensação de segurança, de modo geral, foi melhor nos anos 2000 e meados de 2010 do que agora.
A sensação de insegurança foi ampliada por casos emblemáticos e muitos divulgados nas mídias, assim como pelas disputas territoriais entre traficantes, milicianos e contraventores. Essa dinâmica de controle territorial do crime no Rio de Janeiro e a histórica corrupção das forças policiais é um elemento perturbador da ordem social e da confiança institucional de brasileiros, cariocas e fluminenses de um modo particular.
Religião
A religião, como instituição, não se relaciona com o crime. Não podemos dizer que existe no Brasil um narcopentecostalismo, uma narcorreligião. Contudo, há os bicheiros, milicianos, traficantes que advêm de uma cultura religiosa e não se distanciam dela, necessariamente, ao desenvolverem suas práticas criminais.
Muitos deles até passam a usar da religião como código de comunicação com as comunidades do entorno e entre a própria facção/grupo. Assim como políticos desde 2018 mais acentuadamente têm feito: usado a religião como código para se comunicarem com suas bases e obterem votos e/ou apoio político.
IHU – O tráfico de drogas e a milícia têm religião? E há distinção entre a religiosidade das áreas de tráfico das de milícia?
Christina Vital – Em meus estudos pude observar uma aproximação maior de traficantes de redes evangélicas desde os anos 2000, sobretudo porque meu trabalho de campo ocorreu em favelas/periferias da Zona Norte e Sul do Rio de Janeiro, áreas de pouca escolaridade e alta concentração de população negra.
A baixada fluminense e a Zona Oeste têm uma história de ocupação muito distinta de várias dessas favelas por mim pesquisadas e nessas regiões o catolicismo, a despeito do crescimento evangélico identificado de modo continuado e agudo nos anos 1990, continua produzindo muitos dos marcadores da sociabilidade (festas de santo como São Cosme e Damião, padroeira, São Jorge entre outros). Como a milícia tem seu foco de dispersão justamente nessas áreas, há uma relação mais consistente entre milicianos e o catolicismo.
Eu soube de um miliciano que construiu uma igreja católica em uma região da Baixada Fluminense. No entanto, as mudanças na dinâmica interna das milícias e o crescimento evangélico em todas as regiões da cidade, em especial na Zona Oeste e Baixada, vão impactando também a relação dos criminosos locais com a religião e suas redes.
IHU – Como a religiosidade vai se transformando desde a década de 1990? Em que medida estas transformações incidem sobre a questão da violência?
Christina Vital – Em meu livro “Oração de traficante: uma etnografia”, assim como em vários artigos acadêmicos, explorei essas mudanças na base religiosa urbana e dinâmicas dela derivadas.
O crescimento evangélico impactou na política local, na sociabilidade, na economia e, também, na dinâmica criminal. Em entrevistas que realizei com traficantes, eles falavam na programação da vida para um futuro fora do crime, da redução da violência “gratuita” (como em jogos de futebol na favela) e na relação com a polícia (‘evitação’ do confronto com a polícia).
IHU – Mesmo sob um contexto de violência, seja pelo tráfico, seja pela milícia, o diálogo inter-religioso ocorre na periferia?
Christina Vital – Embora eu relate as mudanças na dinâmica religiosa no Brasil, com destaque para o que acontece em periferias, através do crescimento de evangélicos, o catolicismo e outras tradições, com destaque para a umbanda e o candomblé, continuam ativas nessas localidades, em umas áreas mais e em outras menos. Não se trata, porém, de afirmar que em uma linha evolutiva os evangélicos estão dominando corações, mentes e territórios, sobrepondo-se de forma inescapável. Não se trata disso.
Contudo, o crescimento pentecostal nessas regiões e o tipo de ação evangelizadora que caracteriza este segmento fazem com que possamos falar de uma hegemonia pentecostal em termos culturais. Ou seja, não são exclusivas nessas áreas, mas são hegemônicas em termos de referenciais gramaticais, estéticos, morais. E essa hegemonia, devemos lembrar, ocorre justamente porque composições com o universo religioso presente/anterior ocorrem, como já diria, em termos globais, Joel Robbins.
IHU – Podemos falar de uma atualização da gestão do crime e da violência a partir de um olhar religioso? Como a religião transforma o crime e o criminoso sem necessariamente tirá-lo do contexto de violência?
Christina Vital – Não acredito que possamos falar de uma metanoia, em sentido bíblico, para o caso de traficantes que se apresentam como evangélicos ou que estão próximos a essas redes e têm nelas referências de conduta e estratégia. Nas entrevistas que realizei para a pesquisa, eram mencionadas mudanças no comportamento presente dos traficantes que estavam frequentando igrejas, que faziam cultos de ação de graça, que eram dizimistas, que faziam a oração na favela de Acari todos os dias pela manhã. Mas eles ainda estavam na atividade criminal, ainda matavam, ainda subornavam, ainda batiam, ainda se drogavam.
Nenhum deles verbalizou, como não verbalizam ainda agora, uma transformação completa em suas vidas. Fazem adaptações, inspiram-se em personagens bíblicas, com o próprio Peixão, chefe do Complexo de Israel. Dizem até ser fiéis às suas esposas, mas não dizem e não podemos dizer nem do ponto de vista sociológico ou religioso (para o caso de quem é religioso), que eles tiveram “um novo nascimento”, como é esperado daqueles que se convertem ao pentecostalismo (o mesmo vale para outras religiões, não nos enganemos).
IHU – Quando ou em que medida a religião é uma porta para a saída do mundo da criminalidade?
Christina Vital – As religiões oferecem esperança de transformação. E a esperança é uma forma de confiança no futuro. Este é um sentimento muito poderoso, sobretudo para pessoas que experimentam uma condição socialmente e/ou moralmente precária.
Além da esperança, os grupos religiosos, sobretudo os evangélicos, oferecem uma rede de proteção espiritual, material, emocional e isso é muito poderoso. A atuação de grupos evangélicos em presídios, por exemplo, é muito importante nesse processo de crescimento de evangélicos no Brasil, pois eles atingem não somente o preso, mas também sua rede familiar multiplicando a ação direta realizada.
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Grafite em parede no Complexo de Israel no Rio de Janeiro | Foto: divulgação