Eternit propõe indenizar vítima do amianto com… ações da Eternit na Bolsa

por Rennan Setti, em O Globo

Perto do fim de sua recuperação judicial, a fabricante de telhas Eternit está propondo uma alternativa a seus credores trabalhistas: pagar valores que superem R$ 250 mil com ações da própria Eternit na Bolsa. Como o único credor que se enquadra nessa categoria e faixa de valor é o espólio de um trabalhador que morreu de doença provocada pelo amianto, na prática, a Eternit quer que uma vítima da companhia vire sua sócia, critica a Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea). A companhia, por sua vez, alega que a opção é vantajosa aos credores.

— Nosso temor é que, como praticamente toda dívida trabalhista acima de R$ 250 mil envolve indenização a vítimas do amianto, essa opção vire a praxe inclusive para indenizações obtidas futuramente na Justiça. Dessa forma, a Eternit estaria impelindo suas vítimas a se tornarem suas sócias — argumenta Fernanda Giannasi, que criou a Abrea após ter dedicado sua carreira como auditora fiscal do trabalho ao banimento do amianto no Brasil.

Fibra foi proibida em 2017

Fibra considerada cancerígena pela Organização Mundial de Saúde (OMS), o amianto teve sua fabricação proibida no Brasil pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2017. Depois da proibição, a Eternit teve que trocar o amianto pelo fibrocimento, uma alternativa sintética. A companhia atribuiu à decisão do STF sua recuperação judicial, iniciada em 2018, quando sua dívida era de R$ 250 milhões.

Seu plano de RJ foi aprovado em 2019, mas a questão da classe trabalhista ficou pendente. Isso por causa de um imbróglio judicial motivado justamente porque a Eternit queria pagar dívidas trabalhistas acima de R$ 250 mil com ações, o que gerou questionamento da Abrea. Em outubro, com o objetivo de sacramentar sua saída da RJ, a companhia fez um aditamento ao plano com foco exclusivamente na classe de credores trabalhistas. Nele, o pagamento com ações se transformou em uma opção alternativa.

Pelo plano aditado, quem tiver até R$ 250 mil para receber terá o dinheiro em até 90 dias. O valor que ultrapassar essa cifra pode, então, ser pago com as ações da Eternit na Bolsa — efetuado em até um ano por meio de um aumento de capital — ou no formato aprovado para os credores quirografários (aqueles sem preferência). (Nesse caso, seria o pagamento de 15% do valor em 28 parcelas trimestrais, com juros de 1% e 100% do CDI como correção, e os 85% restantes pagos em 102 meses).

A opção pelo pagamento em ações depende da adesão por escrito do espólio de um trabalhador que morreu vítima do amianto e teria R$ 500 mil a receber, diz a Abrea.

— Nossa maior preocupação é o reflexo potencial desse procedimento. A associação representa duas vítimas com casos graves de mesotelioma (câncer com origem cientificamente provada na exposição ao amianto) que entraram com ações recentemente. As indenizações desses casos costumam ficar entre R$ 1 milhão e R$ 1,5 milhão. Nosso temor é que as vítimas sejam levadas a aceitar o pagamento em ações por causa do desejo e da necessidade de receber qualquer coisa o mais rápido possível — acrescenta Fernanda.

O que diz a Eternit

Em nota, o diretor de relações com investidores da Eternit, Vitor Mallmann, afirmou que “a empresa propôs um mecanismo mais favorável ao credor da Classe I (trabalhista), sem comprometer a capacidade de pagamento da companhia prevista no plano de recuperação original, reduzindo, inclusive, o prazo de pagamento original de 12 meses para quitação em 90 dias.”

“Para tal, a empresa destinou os recursos provenientes de alienação de ativos da Classe III (os quirografários) já quitada para serem utilizados na quitação de credores Classe I. Na hipótese do credor Classe I optar pelo mecanismo de pagamento com ações, a empresa introduziu modificações favoráveis ao credor, com desconto mínimo de 20% sobre o valor apurado conforme instrução CVM”, continuou a nota, acrescentando:

“Cumpre ressaltar que o mecanismo de pagamento em ações do crédito excedente a R$ 250 mil, ainda que no formato original, foi aplicado com total êxito em 2019, tendo sido subscrito ações no montante de R$ 4,7 milhões, recursos que foram destinados à quitação integral dos créditos existentes à época. Quando do pedido de aditamento, em outubro de 2023, foram encaminhados termos de adesão à proposta que representavam a maioria dos credores e do crédito existente na data, inclusive, dentre eles, o único credor acima de R$ 250 mil.”

Comments (2)

  1. A proposta da empresa é indecente, pois transfere o ônus de reparação ao trabalhador para um futuro incerto, como se este estivesse em condições de “apostar” o tempo restante de sua vida em um ativo de risco. Imoral e perversa, vil, uma proposta dessas; como se pode ser assim tão pérfido?! Fico imaginando como a selvageria deste capitalismo troglodítico aparecerá aos acionistas da empresa nos tempos de dita “valoração ESG”?

  2. Além de duvidosa a Recuperação Judicial ajuizada pela ETERNIT, como represália após o banimento do amianto pelo STF, em novembro de 2017, alegando dificuldades financeiras com a proibição, mais um fato que nos faz suspeitar de FRAUDE desta Recuperação Judicial foi a compra da empresa de fibrocimento de Hortolândia, no interior de São Paulo, pelo “MÓDICO VALOR” de 110 milhões de reais(para uma empresa à beira da falência???) como noticiado em 10/1/2022 https://exame.com/negocios/eternit-compra-concorrente-do-setor-de-telhas-confibra-por-r-110-milhoes/amp/
    O maior absurdo de tudo que já vivenciamos no confronto com esta indústria da morte, nos últimos 40 anos, e que nos surpreende aterrorizados com uma proposta imoral e indecente: pagar as vítimas do amianto, atuais e futuras, que ela lesionou e matou, em suas fábricas de Osasco, Rio de Janeiro, Simões Filho/BA, Colombo/PR, Goiânia e Anápolis, com ações da empresa na Bolsa de Valores de São Paulo.
    Em outras palavras, daqui para frente, quem tiver indenização para receber acima de 250 mil reais (que é o valor da maioria das ações ajuizadas pelos advogados da ABREA para seus membros), não tem opção: 250 mil a receber em 90 dias e o restante ou se aceita ações da empresa na BOVESPA, se tornando sócia e parceira de seu algoz, ou aguardará por 8,5 anos para receber o que lhe é devido.
    Isto não é opção para vítimas das doenças mais graves. A ETERNIT, além de causar doenças, mortes e desgraçar famílias, está estimulando que se tornem também vítimas da “Síndrome de Estocolmo”, em que uma pessoa, submetida a um tempo prolongado de humilhações, privações e violência psicológica passa a ter simpatia e até mesmo amor ou amizade pelo seu agressor de tornando parceira ou sócia.
    Até quando a Justiça brasileira vai continuar cega e permitir estes abusos contra os trabalhadores e trabalhadoras?

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