A escravização se moderniza e cria formas de escravidão para viabilizar o “capitalismo da miséria”. Entrevista especial com José de Souza Martins

Sociólogo apresenta seu mais recente livro, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista”, antecipando pontos centrais aprofundados na publicação

Por: João Vitor Santos, em IHU

Há alguns anos, aprendíamos nas aulas de História do colégio que o capitalismo vem como um modelo econômico que contribui para o fim da escravização, afinal, todos tinham de consumir para girar a engrenagem deste novo sistema. Mas, com o tempo, vamos percebendo que a história é outra e que a modernização, no mais amplo sentido da palavra, acaba criando formas de escravidão. O livro mais recente do professor José de Souza Martins evidencia justamente como capitalismo e escravidão se configuram como duas faces da mesma moeda. “Uma linha central na estrutura deste livro é, pois, a do desenvolvimento desigual do capital, a de seus diferentes e combinados momentos e tempos, a contradição da diversidade de suas temporalidades”, adianta.

Na entrevista, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Martins apresenta o livro e antecipa alguns pontos. Entre eles, o de que “foi a pobreza do camponês brasileiro que subsidiou os lucros da indústria ao produzir sem lucro a alimentação da dieta operária, que permitiu o sistemático e regular barateamento da reprodução da força de trabalho industrial, reduzindo os dispêndios com capital variável em relação ao capital constante e assegurando ao capital da indústria uma composição orgânica alta, isto é, moderna e economicamente desenvolvida sem se tornar socialmente desenvolvida”.

No fim das contas, o que revela em “Capitalismo e Escravidão a Sociedade Pós-escravista” (Unesp, 2023) é que a “escravidão, ao se ‘modernizar’, não desaparece, recria-se sob nova forma de escravidão para viabilizar a continuidade dessa espécie de capitalismo da miséria própria dos setores da economia situados à margem do grande capital”. Martins detalha também que “a situação escravista muda por fatores internos e externos e em consequência de seus próprios resultados econômicos. A realidade social, no entanto, suscita novas formas de escravização determinadas pelo fato de que o capital variável representado pelo escravo é renda capitalizada, uma anomalia própria de economia capitalista que depende desse recurso não capitalista para crescer”.

O livro revisita antigas pesquisas do professor e faz uma crítica à sociologia de hoje e suas análises sobre o tema. “Particularmente o último capítulo é uma crítica sociologicamente densa às concepções simplificadoras do que é de fato a escravidão que persiste. Isso porque justamente é um livro não só do que é visível e cotidiano, mas também das invisibilidades do real que só a ciência pode desvendar”, avalia. Por fim, Martins faz memória a Dom Pedro Casaldáliga, a quem também defere um reconhecimento nas primeiras páginas do livro, pela contribuição que dá na sua formação enquanto sociólogo que vê e sente o drama do mundo concreto.

José de Souza Martins é graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo – USP. Foi professor visitante da Universidade da Flórida e da Universidade de Lisboa e membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão, de 1998 a 2007. Foi professor da Cátedra Simón Bolívar, da Universidade de Cambridge (1993-1994) e é professor titular aposentado da USP.

Está lançando o livro Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista (Unesp, 2023). Entre outros livros seus, destacamos: Exclusão social e a nova desigualdade (Paulus, 1997), A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala (Contexto, 2000), Linchamentos: a justiça popular no Brasil (Contexto, 2015), Do PT das lutas sociais ao PT do poder (Contexto, 2016) e Sociologia do desconhecimento: ensaios sobre a incerteza do instante (Unesp, 2021).

Confira a entrevista.
IHU – Como explica a persistência da escravidão na sociedade pós-escravista?

José de Souza Martins – O título deste meu novo livro, Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista, tem a peculiaridade de já enunciar o problema sociológico de que trata e que o justifica no desafio metodológico que propõe. É um livro de sociologia e não uma reportagem. Esta entrevista não é um resumo do livro nem o substitui. É um estudo sobre o livro, um texto de sociologia do conhecimento, que situa e explica o livro, um complemento da obra.

Os clássicos dos estudos sobre escravidão, como Karl Marx e Max Weber, ainda que por meio de distintas orientações teóricas, entendem que o capitalismo é um modo social e econômico da sociedade se reproduzir, indissociável do trabalho livre na sua forma mais característica, a do trabalho assalariado. Isto é, o trabalho do trabalhador que, privado dos meios de produção e proprietário unicamente de sua força de trabalho, é juridicamente igual a quem seu trabalho compra. Mas, nesse processo, torna-se economicamente desigual ao comprador.

Essa é a contradição própria das relações capitalistas de produção, no enunciado de Marx. É o mercado de trabalho que determina a taxa de exploração do trabalho de que a desigualdade resulta, é baseada no fato de que no mercado o vendedor aceita como justo, pelo seu trabalho, o preço que o comprador julga justo.

Com a peculiaridade de que o trabalhador, como é ponto essencial da interpretação de Marx, é alienado sem o saber (a alienação como condição da exploração capitalista, isto é, do lucro, sem a qual o capitalismo é inviável) julga vender ao capital, por preço justo, seu trabalho, quando na verdade está vendendo seu tempo de trabalho, que é outra coisa, sua capacidade de produzir mais valor do que o retribuído em seu salário. Valor é uma coisa e preço é outra. Salário é preço do tempo de trabalho e valor é o realizável no mercado.

Alienação
Objetivamente, como demonstra Marx em O Capital, o capitalista compra uma coisa e o trabalhador lhe vende outra. Essa desigualdade é permeada pelo autoengano, necessário a que o capital se realize na reprodução ampliada: na suposição de que mais capital sai da produção do que aquele que nela entra.

Assim, o capital se legitima, na ilusão do capitalista que o personifica, de que é ele que cria o lucro e não o trabalho. Pode-se dizer, portanto, que o capitalista também tem sua alienação de contrapartida na suposição de que é ele, o capital nele personificado, o criador da riqueza crescente, de que isso vem de sua competência empresarial. Vem dela, mas não fundamentalmente. Essa relação contraditória e a teia de relações e mediações que a caracterizam se expressam em realidades como a de que tratou Max Weber em A ética protestante e o “Espírito” do capitalismo, o capitalista como funcionário do capital, como o definiu Marx, como se o capital não fosse seu, agindo como se estivesse a serviço dele –interpretação baseada na parábola bíblica dos talentos, de que já tratara o próprio Karl Marx, em nota de rodapé de O Capital. Ou a interpretação da relação entre religião e capitalismo, de Werner Sombart, em O burguês: contribuição à história moral e intelectual do homem econômico moderno.

Método dialético
A opção pelo método dialético, que aqui faço, entre as alternativas que menciono, impôs-se porque o tema do trabalho criador indireto de história e de possibilidades sociais é instrumento de historicidade. O trabalho escravo estaria, disfarçadamente, situado nesse campo, mesmo à margem e anômalo na reprodução capitalista do capital? O atraso social e político do Brasil não seria uma indicação nesse sentido? Este livro se situa, pois, na sociologia da historicidade e não propriamente na sociologia da história. São complexas as questões teóricas nele consideradas.

No trato sociológico do tema da escravidão atual, não se pode deixar de recorrer a Rosa Luxemburg, autora alemã, assassinada em 1919, que aponta, em O Capital, de Marx, a deficiência de não explicar como é que esse valor, a mais-valia, se realiza como capital se os trabalhadores da sociedade capitalista recebem menos do que vale seu trabalho. Não podem, pois, comprar parte dos produtos da relação capitalista para que o valor contido nas mercadorias resultantes da produção não paga se realize na circulação. A explicação que Marx dá à questão não a explica.

Para Rosa Luxemburgo, a explicação que falta está na interação do modo capitalista de produção com formas não capitalistas de produção. Isto é, na troca de produção capitalista por produção não capitalista, como a do trabalho escravo. Mas também com a produção camponesa, sob forma não capitalista, sugerem os estudiosos das sociedades camponesas, com os quais me identifico, porém, em minha própria linha de interpretação, que indico em seguida. É uma explicação que adia a solução da contradição, resolvendo-a hoje sem resolvê-la de fato.

Desenvolvimento desigual do capital
Quando falo em “minha interpretação”, refiro-me à centralidade de que as questões propostas pelo capital dependem da circunstância singular e peculiar de sua reprodução, que não é a mesma nas diferentes sociedades. Uma linha central na estrutura deste livro é a do desenvolvimento desigual do capital, a de seus diferentes e combinados momentos e tempos, a contradição da diversidade de suas temporalidades.

Nesse campo, na obra de Marx, está a significativa diferença entre os dois livros essenciais da crítica da economia política, Grundrisse e O Capital (este, inacabado). Como assinalou Henri Lefebvre, o primeiro sobre o desenvolvimento desigual do capital e o segundo sobre o seu desenvolvimento igual. Trata-se de uma distinção decisiva para situar e explicar o capitalismo e a escravidão na sociedade pós-escravista. Realidades sociais como a brasileira só se explicam dialeticamente na perspectiva crítica dos seis volumes das duas obras.

Nesse ponto, retorno ao começo do meu projeto de estudo, de 1964, quando terminava o curso de graduação em Ciências Sociais na USP. De certo modo influenciado pelo antropólogo inglês Raymond Firth, na minha primeira pesquisa, em 1965. Era sobre a agricultura familiar, em especial a agricultura caipira. Cujo modo de vida era tido, pelos sociólogos e antropólogos de então, como modo da sociedade tradicional, adversa ao capitalismo.

É uma persistência que indicava, aos olhos da época, resistência da sociedade tradicional à mudança social. Nessa interpretação, essa resistência era passiva aversão à modernização que o capitalismo daqui aspirava e seus agentes supostamente desejavam, mas cujas condições sociais não compreendiam. Não só os camponeses, mas até mesmo o próprio empresariado e o operariado, como se a questão do atraso fosse mera questão cultural.

Minha pesquisa fazia a crítica dessa perspectiva e sugeria que a agricultura tradicional era constitutiva do processo de reprodução ampliada do capital. Ainda que “anômalo”, era componente necessário deste processo. Os que perfilhavam as concepções do marxismo vulgar tentaram desqualificar minha interpretação, definindo minha tese como de mera suposição de “funcionalidade do atraso”, isto é, não dialética nem marxista. Não era, de fato, marxista, até porque o marxismo não tem que ser uma condição da pesquisa científica na sociologia. Era e é metodologicamente marxiana, ou seja, dialética, na perspectiva sociológica de Henri Lefebvre e do seu método regressivo-progressivo. É o autor que traz a sociologia de Marx para a segunda metade do século XX.

O longo período de 59 anos que separa o projeto de seu resultado, isto é, dos meus vários livros e artigos que da pesquisa e de seu desdobramento resultaram, e este livro conclusivo, foi o tempo da observação do desenvolvimento da crise do capitalismo subdesenvolvido e dos impasses do Brasil do atraso e da história lenta, como o defini em meu livro O poder do atraso.

Uma questão metodológica de que trato neste livro, fortemente presente no conjunto da obra de Marx, expressa-se no inacabado da espera do desfecho das crises que definem e dão sentido ao que é a totalidade concreta subjacente do real. Isto é, contraditória do processo do capital, em movimento de totalização. A totalidade é a referência metodológica da interpretação da realidade social e histórica cambiante. O todo pressuposto pelo método não é um sistema, mas um processo de totalização em curso, como o definiu Sartre, o inacabado, o inacabável e o possível.

Nesse sentido, este livro, que lançamos agora, é antes de tudo um livro sobre o método dialético na sociologia, na referência concreta e prática, principalmente da realidade brasileira no momento das revelações de sua crise histórica de impasses de uma sociedade capitalista atrasada, a de que o atraso se manifesta em relações instrumentais que dele fazem fonte do lucro extraordinário compensador da inferioridade econômica do nosso capitalismo subdesenvolvido. É o que lhe dá condições de através da escravidão, na taxa média de lucro, equiparar-se ao capitalismo dos países desenvolvidos. Desse modo, é um capitalismo que depende do “faz de conta” para se reproduzir como modo de produção de lucro, a tragédia do crescimento econômico sem desenvolvimento social, que se tornou doutrina de poder com o golpe de Estado de 1964.

Tradicionalismo agrário e capital
Minha hipótese de origem apontava, e a pesquisa confirmou, que o tradicionalismo agrário tinha uma função na reprodução ampliada do capital. Descobri e ressaltei que essa agricultura não era mera agricultura de roça, mas agricultura de produção direta dos meios de vida da família trabalhadora com integração no sistema capitalista através dos excedentes comercializáveis, calculadamente produzidos.

Foi com base nos lucros capitalistas decorrentes dessa produção não capitalista que a industrialização brasileira da primeira metade do século XX se deu. Foi a pobreza do camponês brasileiro que subsidiou os lucros da indústria ao produzir sem lucro a alimentação da dieta operária, que permitiu o sistemático e regular barateamento da reprodução da força de trabalho industrial, reduzindo os dispêndios com capital variável em relação ao capital constante e assegurando ao capital da indústria uma composição orgânica alta, isto é, moderna e economicamente desenvolvida sem se tornar socialmente desenvolvida.

Como foi e tem sido o trabalho escravo atual, a escravidão temporária e cíclica dos excedentes humanos da agricultura familiar nos intervalos da entressafra propicia o lucro extraordinário que subsidia a expansão capitalista da empresa agropecuária na Amazônia. É o caso em que o trabalhador, sob a pobreza e a violência que o subjuga, se torna de fato matéria-prima dos produtos dos setores do agronegócio que se valem do seu trabalho.

Os primeiros resultados da pesquisa inicial, por inciativa do professor Florestan Fernandes, foram apresentados, em 1969, em artigos publicados em duas revistas de ciências sociais de circulação internacional, América Latina (do Centro Latino-americano de Pesquisas em Ciências Sociais, do Rio) e Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, da USP. E reunidos em meu livro Capitalismo e tradicionalismo (Pioneira, 1975). Também ele com título que aponta minha compreensão inicial da contradição estruturante do capitalismo no Brasil. São descobertas que inspiraram obras alheias sem citação das fontes.

IHU – O senhor trabalha muito com o pensamento de Henri Lefebvre. O que é essencial neste autor para compreender o trabalho e a relação trabalho e escravidão? No que ele pode nos iluminar para a construção de uma sólida análise sociológica acerca destes temas?

José de Souza Martins – Minhas preocupações metodológicas com a questão do método para pesquisar, analisar e explicar uma realidade social atrasada como a realidade brasileira tiveram um desdobramento da maior importância no seminário semanal sobre o método dialético que organizei e coordenei no curso de pós-graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, de 1975 a 1983.

Durante 18 anos, regularmente, em pequeno grupo, lemos, inicialmente, uma parte significativa da obra de Marx, desde a Contribuição à crítica da economia política, cujo posfácio é um ponto de partida para a compreensão da questão do método na obra desse autor. Entre outros, o seminário incluiu a leitura (e releitura) d’O Capital, do Grundrisse, da Correspondência, os Manuscritos econômicos e filosóficos, Teorias da mais-valia, A ideologia alemã. Foi um trabalho que nos tomou 12 anos.

Após, propus que lêssemos durante mais seis anos uma parte significativa das obras de Henri Lefebvre. Este é o mais importante leitor e analisador da obra de Karl Marx, que podemos ler à luz do que Antonio Candido, que não está se referindo a Marx, em Formação da literatura brasileira, quando chama de “necessidades expressionais” de determinada época e sociedade.

Referências
Suas referências mais importantes começam com a crítica do marxismo vulgar e marxismo do poder, em 1938, com seu livro referencial, A consciência mistificada, e logo após a Segunda Guerra Mundial, com os primeiros resultados da pesquisa de sociologia rural que fez em sua aldeia de origem enquanto pesquisador disfarçado atuava na Resistência francesa, que resultará em seu livro O vale de Campan, cujos primeiros resultados foram os artigos que publicou na revista Cahiers Internationaux de Sociologie, entre 1949 e meados dos anos de 1950.

A interpretação de Lefebvre do método de Marx foi reconhecida por Sartre, em Questão de método, como a mais importante formulação do método dialético, a do método regressivo-progressivo, em que a persistência de relações sociais datadas e pretéritas desvenda o real e, também, o que ainda não se constituiu plenamente. O método não é um modelo formal, mas o contraponto dos momentos e desencontros do próprio real. A sociologia de Lefebvre, que tinha doutorado em sociologia rural, é uma sociologia marxiana, no sentido de não se filiar às correntes marxistas vulgares do marxismo partidário desvinculado da relação do pensamento com a práxis.

Método Lefebvre
O método de Lefebvre é trinário e não o binário do marxismo vulgar. Na coexistência do presente contraditório, o método é dedutivo, indutivo e transdutivo, investiga o passado que persiste, o presente instável e o possível que já se anuncia no passado, fragmentário e inconstituído, e no agora.

É, portanto, o método indispensável para reconhecer em que consiste a historicidade de uma sociedade como a nossa, em que a prática persistente da escravidão como momento decorre de determinações sociais que a negam. Portanto, a questão é a de descobrir que sociedade antagônica é a mediação de um possível referido à utopia da comunidade e da família que, nessa escravidão, se tornaram formas de resistência e de consciência crítica das vulnerabilidades do capitalismo subdesenvolvido.

IHU – Como o senhor analisa a forma como viemos tratando sociologicamente os dados sobre trabalho e escravidão no Brasil de hoje? Em que medida temos conseguido avançar da “catação de dados”?

José de Souza Martins – O livro que lançamos agora, particularmente o último capítulo, é uma crítica sociologicamente densa às concepções simplificadoras do que é de fato a escravidão que persiste. Isso porque justamente é um livro não só do que é visível e cotidiano, mas também das invisibilidades do real que só a ciência pode desvendar. A visibilidade da mera “catação de dados”, a de uma concepção quantofrênica da informação sociológica empírica. Aquilo que encobre ou mutila a visibilidade possível das contradições, das análises enganosas.

Meu livro é uma crítica severa ao impressionismo pseudocientífico de narrativas superficiais, muito mais da cultura do espetáculo e da militância divorciada da práxis do que do possível das revelações da ciência. Como Lukács já havia mostrado em História e consciência de classe, o marxismo vulgar é sobretudo uma forma de interpretação do real própria do pensamento burguês e reacionário. Muito do que circula por aí e do que se diz por aí sobre a “escravidão contemporânea” é desse gênero.

IHU – Em seu livro, o senhor aponta que a escravidão contemporânea “não tem sido a mesma ao longo do tempo que logo chegará ao século e meio do período pós-escravista”. Como a escravidão contemporânea vem se transformando ao longo dos séculos XX e XXI?

José de Souza Martins – Desde as fundamentadas observações, sobre a escravidão por dívida e o regime laboral do barracão, que Euclides da Cunha fez no Alto-Purus, no começo do século XX, sucessivas e igualmente bem-feitas observações e investigações ao longo desse largo período registram um fenômeno claramente dialético: a situação escravista muda por fatores internos e externos e em consequência de seus próprios resultados econômicos. A realidade social, no entanto, suscita novas formas de escravização determinadas pelo fato de que o capital variável representado pelo escravo é renda capitalizada, uma anomalia própria de economia capitalista que depende desse recurso não capitalista para crescer.

A escravidão, ao se “modernizar”, não desaparece, recria-se sob nova forma de escravidão para viabilizar a continuidade dessa espécie de capitalismo da miséria própria dos setores da economia situados à margem do grande capital. No entanto, há significativas limitações e mudanças de forma no emprego ou do trabalho escravo. Entre elas, as que podemos constatar facilmente comparando a forma violenta que assumia nos anos 1970, anos decisivos da expansão da fronteira econômica na Amazônia, e o trabalho escravo posterior à criação do Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado – GERTRAF, no governo FHC, em 1995, tanto na redução das ocorrências quanto na relativa mitigação das técnicas de violência da sujeição dos trabalhadores para disfarçar os indícios de criminalidade.

Mesmo assim, o uso do trabalho escravo se expandiu sob a forma de terceirização. O que levou o governo FHC, em 2002, a criar uma comissão, que coordenei, no Ministério da Justiça, que preparou o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil e Escravo, que propunha a extensão da punição do trabalho escravo com a “lei da maconha”, que preconiza o perdimento da propriedade em que se comprove o uso do trabalho escravo em favor do programa de reforma agrária.

IHU – Quem é o sujeito sociológico da escravidão contemporânea e como ele é conformado?

José de Souza Martins – O sujeito sociológico da escravidão atual não é uma pessoa. E muito menos uma pessoa conformada. É uma relação social que coisifica e anula a pessoa do trabalhador transformado em coisa.

Ao mesmo tempo, essa coisificação extrema é mediada pela significação utópica da comunidade de origem e da família. A da pessoa situada à margem da sociedade do capital, é na verdade expressão da sociabilidade da margem, a que não se determina diretamente pelo capital e pelo capitalismo.

É um resíduo insurgente do passado camponês. O que a circunstância da opressão e exploração capitalista do trabalho, de modo não capitalista, metamorfoseia em realidade historicamente possível, como instrumentalização popular, em nome de valores da sua tradição conservadora que só poderão ter sentido na superação, para o camponês, das contradições do capitalismo subdesenvolvido que corrói a possibilidade de sobrevivência de seu modo de vida e de seus valores.

IHU – O senhor abre seu livro com uma dedicatória a Dom Pedro Casaldáliga. Gostaria que falasse um pouco mais sobre sua relação com este falecido bispo de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso, e sobre como observa a luta dele com relação ao trabalho escravo e à liberdade.

José de Souza Martins – Nos anos 1970, eu estava iniciando minha pesquisa sobre a expansão capitalista na Amazônia, caracterizada por extrema violência, não só a do trabalho escravo, mas também a da expulsão de indígenas e camponeses de suas terras ancestrais. A pesquisa resultará no livro Fronteira – A degradação do Outro nos confins do humano.

Eu precisava encontrar situações de apoio seguro para realizar meu trabalho. Em alguns estados recorri ao Serviço da Malária: Rondônia e Maranhão, que me dava acesso a moradores situados em lugares remotos do sertão e das áreas de violência. No Mato Grosso, recorri a Dom Pedro Casaldáliga, cuja carta pastoral de 1971 eu lera. Encontrei-o na Assembleia da CNBB, em Itaici. Ele me convidou para participar da assembleia da Prelazia em São Félix. Antes, ajudei-o a preparar o depoimento que daria na Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados, intimado que fora ele no que era um ardil para expulsá-lo do Brasil.

Depois disso, recebi dele sucessivos convites para reuniões semelhantes, como assessor ad hoc. Ele me introduziu na Comissão Pastoral da Terra – CPT Nacional e finalmente fiz parte da equipe que assessorou a assembleia dos bispos em Itaici, de que resultou o documento Igreja e Problemas da Terra. Sou autor do documento de apoio: Terra de negócio e terra de trabalho – Contribuição para o estudo da questão agrária no Brasil, publicado no mesmo ano de 1980, extensamente incorporado ao documento oficial.

Durante anos trocamos mensagens e nos encontramos muitas vezes. Ele batizou minhas filhas.

Experiência em Cuba
De certo modo, foi uma sugestão minha que resultou no convite que o levou a Cuba e ao encontro com Fidel Castro. Em 1980, Florestan Fernandes fora convidado a ir a Cuba para fazer a pesquisa que resultaria no seu livro sobre o socialismo naquele país. Ao voltar, ele me trouxe um convite do presidente da Casa das Américas para participar do júri do Prêmio Casa das Américas, de 1981, junto com Antonio Candido, João Ubaldo Ribeiro, Gianfrancesco Guarnieri e Marcio Souza.

Num dos dias, no saguão do hotel, fui procurado por um sujeito que me convidou para jantar. Explicou-me que Cuba queria entrar em contato com a Igreja Católica no Brasil para que na Igreja de Cuba se desenvolvessem as Comunidades Eclesiais de Base, como aqui, a Igreja cubana fechada às questões do país. Ele propôs também o meu encontro com o especialista em assuntos religiosos do Partido. Foi um encontro interessante. Era um homem culto, especialista em história das religiões, que me fez uma exposição sobre as religiões em Cuba.

Expôs-me que o governo cubano estava tendo problemas com a Igreja. O cardeal de Havana falecera e já se passava longo tempo sem que um novo cardeal fosse designado. O motivo, aparente do fechamento, fora a prisão de sacerdotes católicos espanhóis que, de armas nas mãos, foram presos na invasão da Baía dos Porcos, em 1961, por paramilitares, organizada pela CIA. Os padres foram poupados do fuzilamento, por serem padres, enquanto os demais presos foram para o paredão. O problema de Cuba era, portanto, a suspensão do veto ao regime nas relações com a Igreja.

No jantar, para o qual eu recebera o convite, com o que me pareceu então ser um agente do governo, a questão da Igreja foi o assunto. Aparentemente, Florestan fora o intermediário do convite que me viera porque ele supunha que eu poderia dar indicações úteis ao estabelecimento da conexão entre o governo cubano e a CNBB. Eu de fato, não era a pessoa. Expliquei-lhe que isso deveria ser feito por meio de algum bispo brasileiro. Eu intuía que a CNBB estava interessada em fazer conexões desse tipo. Em 1986, Dom Luciano [Mendes de Almeida], que era secretário da CNBB, iria à União Soviética participar de um encontro com o Arquimandrita da Igreja Ortodoxa Russa, no clima da abertura política de Gorbatchev.

Tive oportunidade de ver um pouco de perto essa aproximação quando fui convidado a fazer uma conferência no Simpósio sobre “A crise da civilização e a pesquisa das vias para renovação do mundo”, promovido pela Academia de Ciências Sociais da União Soviética, em Moscou, em 1989, já no período da abertura política. Nessa ocasião, fui a Zagorski participar de um encontro com o Arquimandrita da Igreja Ortodoxa para uma troca de ideias sobre a Teologia da Libertação. Eu estava muito interessado na imensa relevância dessa aproximação porque ela indicava mudanças sociais que davam início a um novo tempo na sociedade brasileira.

Participei de outros encontros que me deram a medida de grandes mudanças na Igreja e na esquerda no sentido de uma atenuação de distâncias. Em 1997, participei como conferencista da Conferência Internacional “Eredità e ricusazioni di fine millennio – Verso il secolo nuovo”, promovida pelo Comune di Roma, de que participou Mikhail Gorbachev. No ano seguinte participei, também como conferencista, do IV Congresso Internacional sobre Migrações e Refugiados, no Vaticano, presidido pelo arcebispo Hamao, de Tóquio, congresso que foi seguido a distância, atentamente, pelo Papa João Paulo II, conforme ficou claro no extenso texto que publicou no Osservatore Romano, no fim do evento, após ter recebido em audiência os participantes.

Aparentemente, estava se definindo um quadro de aproximação entre governos e igrejas de países com os quais as relações políticas eram difíceis. Na conversa com o funcionário cubano que me abordara no Hotel, sugeri que a pessoa indicada para ir a Cuba era Dom Pedro Casaldáliga. Alternativamente, talvez fosse mais fácil convidar Frei Betto porque um dos articuladores das CEBs no Brasil.

Frei Betto acabaria sendo o convidado e do convite resultaria o livro “Fidel e a Religião”, livro que chegaria às mãos do Papa João Paulo II, que o comentou positivamente com Dom Eugênio Sales, cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro.

Mais adiante, Dom Pedro Casaldáliga também seria convidado a ir Cuba, em 1999, e a encontrar-se com Fidel, com quem eu também me encontrara junto com os outros participantes do Júri do Prêmio. No fim das contas, em 1998, o Papa João Paulo II visitaria Cuba e se encontraria com Fidel Castro, as relações entre o Vaticano e aquele país regularizadas. Já não é mais pecado ir a Cuba.

 

José de Souza Martins durante Aula Magna na Unisinos. Foto: Frame do Youtube

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