Exército é o principal cliente da empresa israelense de espionagem política

Enquanto a mídia foca no esquema criminoso de arapongagem montado no governo bolsonaro dentro da disputa entre servidores da ABIN e PF, o Exército, ator central no esquema ilegal e principal contratante do software espião, passa incólume. Além de pagamentos milionários fora do país, filho do general Santos Cruz foi, até ano passado, representante da empresa israelense no Brasil

POR JEFERSON MIOLA, em Jacobin

Exército brasileiro, e não a ABIN, é o principal cliente da Cognyte, empresa israelense proprietária do programa de espionagem FirstMile. Importante recordar que um general do Exército – o general Menandro – foi nomeado por Bolsonaro embaixador do Brasil em Israel.

software não é uma ferramenta ilegal. O que é ilegal é seu uso direcionado, com fins político-ideológicos ou de outra natureza que não é prevista em lei ou cujo uso não seja autorizado pela justiça.

Ilegal é a forma como agentes públicos delinquentes, civis ou fardados, instrumentalizam o uso deste dispositivo para perseguição política e para satisfazer objetivos de facções e poderes estamentais.

Abin paralela

Na repercussão sobre a espionagem política da ABIN no período Bolsonaro, o noticiário tem ocultado a participação de um ator central neste esquema ilegal – as cúpulas militares.

O foco de atenção da mídia tem sido exclusivamente o esquema criminoso de Ramagem com o clã Bolsonaro. E, também, a disputa autofágica entre servidores da ABIN e da PF.

Essa abordagem é conveniente para os militares, porque desvia a atenção sobre a implicação das cúpulas militares com sistemas ilegais de espionagem de “inimigos internos”.

O escândalo agora em evidência, que foi cansativamente denunciado pela mídia independente a tempo à época, tem raízes assentadas no período do usurpador Michel Temer, com quem os generais Villas Bôas e Sérgio Etchegoyen conspiraram para derrubar a presidente Dilma.

A israelense Verint Systems Ltd, atual Cognyte Technologies Israel Ltd, empresa proprietária do programa espião FirstMile, multiplicou 23 vezes o faturamento no Brasil durante o período Temer (entre 2016 e 2018), como se observa na tabela:

O faturamento do grupo israelense saltou de R$ 2,6 milhões com Dilma, em 2014, para R$ 60,8 milhões nas contratações feitas pelo Exército, ABIN, Polícia Rodoviária Federal e Ministério da Justiça com Temer entre maio de 2016 e dezembro de 2018.

No governo atual, do presidente Lula, a empresa já recebeu R$ 11,6 milhões, a quase totalidade relativa a contratações feitas pelo Exército e Aeronáutica.

Contratos milionários, transparência e blindagem midiática

Desde o primeiro registro de pagamento à Verint/Cognyte no Portal da Transparência, em 2014, o governo pagou pelo menos R$ 127,6 milhões ao grupo. Os valores se referem à compra de software, equipamentos e tecnologias de vigilância, monitoramento, espionagem e contratos de manutenção, treinamentos e serviços correlatos.

A cifra deve ser ainda superior, porque o Portal de Transparência não disponibiliza dados de “valores sigilosos”. Cabe ao TCU e ao Congresso Nacional apurar tais valores, para que a sociedade brasileira conheça a magnitude de recursos destinados à área.

Do total de R$ 127,6 milhões, a ABIN foi responsável por contratar apenas R$ 14,7 milhões da Cognyte, ou 11,5% do total.

Por outro lado, o Exército foi, disparado, o maior contratante da empresa. Pagou R$ 87,5 milhões, que representam 65% do que a empresa recebeu do erário no período, conforme tabela:

Apesar de o Exército ser, de longe, o maior cliente da Cognyte, o mundo desabou só sobre a ABIN. E está sendo estimulado o confronto corporativo entre funcionários da ABIN e da PF, o que aumenta a distração em relação aos militares. Até mesmo a PRF, dirigida por um bolsonarista fanático, contratou mais serviços da Cognyte que a ABIN.

Enquanto a mídia se distrai com os atores coadjuvantes, os generais se divertem, decerto reunidos no Alto Comando sorvendo um uísque superfaturado e envelhecido 24 anos.

Pagamento por fora e outras trapaças

Éintrigante, ainda, as Forças Armadas terem pago todo valor de R$ 89 milhões à empresa israelense através da Comissão Aeronáutica Brasileira na Europa (R$ 6,5 milhões); e da Comissão do Exército Brasileiro em Washington (R$ 82,5 milhões), e não no Brasil.

Ora, se a contratação foi para serviços e equipamentos a serem usados no território brasileiro, como para o sistema de monitoramento de fronteiras, para a intervenção federal no Rio, defesa cibernética, sistema de controle e comando do Exército, tecnologia de comunicação e informação e etc., qual a justificativa para o Exército executar o pagamento de tais contratações via comissões no exterior, e não por uma unidade orçamentária do Exército no Brasil?

No Brasil, a ex-Verint é representada pela Cognyte Brasil SA, sediada no centro da capital de Santa Catarina, estado natal do ex-Diretor Geral da PRF Silvinei Vasques, atualmente em prisão preventiva devido à interferência na eleição de 2022.

“Caio Santos Cruz, filho do general Santos Cruz, foi representante da Verint e da Cognyte no Brasil de fevereiro de 2016 a maio de 2023, por coincidência o período de expansão das vendas do FirstMile.”

Desperta curiosidade que a Superintendência da PRF em SC foi a Unidade Federativa requisitante da totalidade dos serviços da empresa israelense em todo país.

Caio Santos Cruz, filho do general Santos Cruz, foi representante da Verint e da Cognyte no Brasil de fevereiro de 2016 a maio de 2023, por coincidência o período de expansão das vendas do FirstMile ao governo brasileiro, como demonstrado na primeira tabela.

Desde maio de 2023, e imediatamente após desembarcar da Cognyte Brasil, Caio Santos Cruz passou a trabalhar como consultor da Appia Informática, ironicamente descrita no Linkedin como dedicada ao “Combate à Lavagem de Dinheiro, Combate à Fraude, Combate ao Crime Cibernético, Transcrição de Áudio e Vídeo”.

Suspeita-se que a demissão do general Santos Cruz em 13 de junho de 2019 esteja associada ao conflito de interesses dele próprio, Santos Cruz, com os interesses do Carlos Bolsonaro e sua horda barra-pesada – Alexandre Ramagem, Ânderson Torres e quejandos – que queria viabilizar a “ABIN paralela e particular” do Bolsonaro.

O general Santos Cruz fazia lobby pelo software vendido pelo próprio filho, enquanto Carlos Bolsonaro defendia a compra do programa Pegasus, da também espiã israelense NSO Global.

Pegasus é um sistema de espionagem mais agressivo e invasivo, que consegue acessar conteúdo dos telefones celulares, enquanto o FirsMile somente permite a localização dos aparelhos celulares.

Sequelas do golpe

Oprimeiro ato de Temer depois do impeachment fraudulento da Dilma foi a Medida Provisória nº 726, de maio de 2016, que recriou o GSI, que Dilma havia extinto em outubro de 2015. Na ocasião, a presidente petista vinculou a ABIN à Secretaria de Governo da Presidência da República.

Ao assumir, Temer nomeou como ministro do GSI para recriar o órgão em bases militaristas um general. Etchegoyen retomou a ABIN para o controle militar e começou a reestruturação acelerada da instituição nos moldes do SNI, o Serviço Nacional de Informações da ditadura.

“O aparelho de espionagem e de perseguição política montada pelos militares ainda na ditadura segue intacto e ativo.”

No GSI, Etchegoyen reconfigurou e disseminou dispositivos de inteligência, espionagem política, vigilância, sabotagem, chantagem e controle típicos de regimes autoritários.

O general Augusto Heleno, assim como Etchegoyen, oriundo do porão da ditadura militar, herdou a estrutura pronta legada pelo camarada de farda. No GSI, o general Heleno apenas tratou de avançar a concretização do projeto estratégico do poder militar “eleito nas urnas”.

O governo Lula herdou a estrutura legada pelos generais Etchegoyen e Augusto Heleno, sem alterar nem sua aparência, totalmente dominada pelos militares, e muito menos sua essência.

O aparelho de espionagem e de perseguição política montada pelos militares ainda na ditadura segue intacto e ativo. Mas os militares festejam enquanto nos distraímos com a briga entre a ABIN e a PF.

O general Augusto Heleno, assim como Etchegoyen, oriundo do porão da ditadura militar, herdou a estrutura pronta legada pelo camarada de farda. No GSI, o general Heleno apenas tratou de avançar a concretização do projeto estratégico do poder militar “eleito nas urnas”. Foto Agência Brasil.

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