Projeto Jari de créditos de carbono engana comunidades e invade terras públicas no Pará

Em recuperação judicial, a companhia de celulose usou área maior que a Suécia para arrecadar R$ 22 milhões com empresas como BMW, BTG Pactual e Telefônica; empresa prometeu R$ 5 mil por ano para os camponeses, mas nunca pagou

Por Carolina Bataier, em De Olho nos Ruralistas

Quando a proposta de participar de um projeto de créditos de carbono chegou até a comunidade Nova Vida, no município de Almeirim (PA), o agricultor Carlos Jorge Araújo Cruz foi o único a recusar.

Ele e os vizinhos estavam entre os primeiros a serem consultados sobre o interesse em fazer parte do Projeto Jari/Pará, uma parceria entre a Jari Celulose e a Biofílica Ambipar Environmental Investments, especializada em iniciativas de preservação ambiental. A primeira alega ser proprietária de 909 mil hectares. A segunda é responsável pela comercialização dos créditos de carbono no Brasil e no exterior. Inicialmente o projeto contemplava o total da área da Jari Celulose, mas, com as contestações na Justiça, a Biofílica aponta atualmente  uma área menor, de 496 mil hectares, território maior que a Suécia.

O Jari/Pará é uma proposta de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação florestal (REDD), conceito adotado pela Convenção de Clima da Organização das Nações Unidas (ONU) e se refere ao mecanismo que permite a remuneração daqueles que mantêm suas florestas intactas, poupando-as do desmatamento e evitando a emissão de CO2 na atmosfera.

O projeto da Jari Celulose, que está em recuperação judicial, abrange 58 comunidades que vivem da agricultura camponesa e da venda de açaí e castanha do Pará. Na Nova Vida, são cerca de 30 famílias. Muitas delas enviaram um representante para a reunião com a equipe da Jari, realizada na casa de um dos moradores. “Eles falavam: em quatro anos, vem um dinheiro”, lembra Carlos.

Para a maioria das pessoas consultadas, parecia uma oportunidade de renda extra. Alguns anos após o início da parceria, as famílias receberiam um pagamento de cerca de R$ 5 mil. Como contrapartida, deveriam se comprometer a usar, no máximo, 20% das terras dos lotes onde cultivam açaí, castanha do Pará e plantam suas roças de mandioca, milho e outros alimentos. O restante deveria ter a vegetação preservada, garantindo a geração dos créditos de carbono.

O pagamento nunca chegou até os agricultores. As atividades do Jari/Pará estão suspensas desde 2023 e o projeto é alvo de ações da Procuradoria Geral do Estado do Pará (PGE-PA) e do Ministério Público do Pará (MPPA), que questionam a autenticidade dos títulos de propriedade de parte das terras da Jari Celulose. O trabalho da PGE resultou na devolução para o Estado da Gleba Arraiolos, de 386 mil hectares, e apontou irregularidades nos documentos apresentados pela empresa para provar a propriedade da terra. A Jari Celulose contestou a decisão e a disputa entre a empresa e o Estado segue até hoje na Justiça.

De acordo com Herena Corrêa de Melo, promotora de Justiça da Vara Agrária de Santarém (PA), outros 126 mil hectares, referentes à Fazenda Santo Antônio da Cachoeira, também têm títulos de origem questionável. “Temos uma ação que foi proposta pela nossa promotoria agrária no início de 2022, pedindo bloqueio e o cancelamento de matrículas dessa gleba”, informa.

Apesar das irregularidades, o projeto teve resultados financeiros para as empresas. Entre 2019 e 2023, foram vendidos mais de 900 mil créditos de carbono para grandes e pequenas companhias nacionais e internacionais. Entre elas, BMW, Banco BTG Pactual e Telefônica Brasil. O valor total das vendas gerou receita de aproximadamente R$ 22 milhões, levando em conta que a média do valor da tonelada de carbono é de US$ 5. Mas, na Nova Vida, os moradores até hoje aguardam notícias do contrato assinado anos atrás.

Para Carlos, o valor prometido, de R$ 4 mil pagos após quatro anos, pareceu uma oferta pouco vantajosa. “Eu faço minha linha de roça, de mandioca e faço esses R$ 4 mil de ano a ano”, explica. Na memória do agricultor Erasmo Melo da Silva, o valor do pagamento seria R$ 5 mil e viria acompanhado de benfeitorias como material para as casas de farinha e tanque para criação de peixes. “Quem não quisesse criar peixe, criava galinha”, conta, lembrando das promessas nunca concretizadas.

Como nenhum dos moradores da Nova Vida ficou com cópia dos documentos assinados na primeira — e única — reunião com a empresa, não é possível confirmar o valor prometido ou a data do encontro. A reportagem conversou com quatro famílias na comunidade. Todos lembram que a reunião foi realizada há mais de quatro anos.

Projeto REDD+ da Jari Celulose impacta comunidades rurais em Almeirim (PA). (Cartografia: Eduardo Carlini/De Olho nos Ruralistas)

EMPRESA AFIRMA QUE NÃO FIRMOU CONTRATO COM AS COMUNIDADES

A Jari Celulose afirma que não estabeleceu contrato com as comunidades. “Os comunitários podem estar se referindo a uma ‘Declaração de compromisso socioambiental’, que não tem efeito vinculante, e é uma ação voluntária por parte de quem assina”, alega a empresa por e-mail.  De acordo com a Jari, o documento simboliza o compromisso do beneficiário do projeto REDD+ em proteger a floresta “e nos permitir acessar com acompanhamento a propriedade para desenvolver as atividades do projeto das quais ele vai se beneficiar”.

Ainda de acordo com a empresa, os benefícios serão repassados por meio de ações sociais, geração de trabalho e renda, capacitação e infraestrutura.

Na comunidade do Braço, onde vivem cerca de 150 famílias, os agricultores foram consultados mais de uma vez, mas ouviram propostas diferentes em cada um dos encontros. No primeiro encontro, em 2019, receberam oferta em dinheiro, caso optassem por participar do projeto. Depois, a promessa veio em forma de melhorias na terra.

“É muito pouco para a quantia que ela vai receber em dinheiro e é muito pouco para necessidade da comunidade”, avalia o agricultor Francisco Brito Gomes Tavares, morador de um lote de 88 hectares onde castanheiras e árvores frutíferas dividem espaço com galinhas criadas soltas.

As tratativas entre a Biofílica e o Grupo Jari tiveram início em 2014 e resultaram em um contrato com duração de 30 anos, com encerramento marcado para julho de 2044. As informações estão disponíveis no site da Verra, uma organização sem fins lucrativos que opera o principal programa de crédito de carbono do mundo, o Verified Carbon Standard (VCS).

A primeira venda dos créditos de carbono do projeto Jari/Pará, realizada em 09 de dezembro de 2019, teve como compradora a Zukunftswerk eG, uma empresa alemã do ramo de consultoria em sustentabilidade, que adquiriu 30 mil créditos em uma única compra. O valor pago nessa transação foi de R$ 720 mil, considerando a cotação da época.

Por e-mail, a empresa informa que optou por não adquirir mais créditos de carbono desde janeiro de 2023, devido a informações que tem acompanhado sobre os projetos REDD, bem como as notícias dadas pela certificadora Verra. De acordo com uma carta publicada no site da Verra, o Projeto Jari/Pará está suspenso para uma revisão no controle de qualidade.

COMUNIDADE RECEBEU CONTRAPARTIDA SEM SABER QUE PARTICIPAVA DO PROJETO

Em 2018, representantes da Jari Celulose convidaram moradoras da comunidade Morada Nova, onde vivem mais de 50 famílias, para participarem de um treinamento de criação de galinhas poedeiras. Anos depois, os moradores souberam que a atividade era uma contrapartida do projeto de créditos de carbono. A informação chegou pelas mãos do agricultor e defensor ambiental Magnandes Costa Cardoso, morador da Morada Nova, que teve acesso ao relatório de monitoramento do projeto Jari/Pará, disponível no site da Verra. O documento, emitido em 08 de fevereiro, informa que a comunidade Morada Nova recebeu capacitação em avicultura.

“Eu desconfiava, mas não tinha certeza”, conta Magnandes. “Sabia que alguma coisa estava acontecendo. Quando chegaram esses relatórios, eu fui ver… Morada Nova: criação de galinha. Estava lá, era o pagamento”. A Jari Celulose confirma que a atividade faz parte da contrapartida pelos créditos de carbono.

Atrás das casas das famílias que aceitaram participar no projeto de criação das galinhas, foram construídos pequenos galinheiros. As participantes receberam 100 pintinhos de galinhas poedeiras, aves que necessitam de ração para manter a produção dos ovos. Com o passar do tempo, o alimento, cuja doação estava inclusa nos serviços oferecidos pelo Grupo Jari, parou de chegar. “Tinha semana que não vinha”, lembra Magnandes. “Aí, agora, fazer o quê? Vamos dar macaxeira, dar milho”.

Com a alimentação inadequada, as galinhas perderam a saúde e morreram. Hoje, alguns galinheiros estão vazios. Um deles foi transformado em casa de farinha. Em outros, há galinhas caipiras ciscando e comendo milho.

EMPRESA GANHOU DINHEIRO EM TERRAS DISPUTADAS COM AS COMUNIDADES

Em 2023, os moradores da Morada Nova foram convidados para uma consulta pública sobre o mercado de créditos de carbono, conduzida por representantes do Grupo Jari. Para eles, a proposta não interessa. “No formato que está, quem ganha são só as empresas lá em cima”, questiona Magnandes.

A comunidade Nova Vida fica a 60 quilômetros de Monte Dourado, o distrito criado em 1967 para acolher os trabalhadores da empresa Jari Celulose. Cerca de 20 quilômetros adiante, e, portanto, a 80 quilômetros do distrito, está a Morada Nova onde, ainda hoje, os moradores não têm acesso à energia elétrica. As casas são feitas de madeira e algumas delas contam com painéis solares que permitem ligar a geladeira, carregar o celular e assistir à TV.

A comunidade do Braço está mais próxima da zona urbana, a cerca de 30 quilômetros do distrito. O caminho até lá é cercado de plantações de eucalipto, herança dos tempos de atividade da Jari Celulose.

Não há, por ali, quem não conheça a empresa. Desenvolvido na década de 60 pelo bilionário estadunidense Daniel Keith Ludwig, o Projeto Jari era grandioso. A fábrica, trazida de navio do Japão para o Pará, iniciou as atividades em 1979, produzindo 120 mil toneladas de celulose por ano. Para isso, foram desmatados mais de 200 mil hectares de floresta amazônica. Em 1986, a produção anual era de 280 mil toneladas.

As informações sobre a produção estão disponíveis em um quadro na entrada do Museu Casa Jari, localizado na região central de Monte Dourado. No espaço, há fotos dos tempos áureos do distrito, com festividades em escolas, praças cheias e a fábrica em pleno funcionamento. No início dos anos 2000, a produção entrou em decadência e está parada desde 2022. Atualmente, a empresa em recuperação judicial acumula uma dívida de R$ 2.173.013,89.

Numa das ruas de Monte Dourado, o mato divide o terreno com casas abandonadas. No centro do distrito, poucas pessoas circulam pelas calçadas. A única padaria fechou as portas recentemente.

O distrito fica às margens do Rio Jari. Do outro lado, está Laranjal do Jari, no estado do Amapá. Dali, saem os compradores de açaí e castanha, que cruzam o rio de balsa para chegar até os produtores.

O acesso às comunidades rurais é por estrada de terra. Em alguns pontos, a via é estreita, permitindo a passagem de apenas um veículo por vez. Durante o inverno amazônico — temporada de chuvas que começa em dezembro e pode ir até maio — alguns trechos só são trafegáveis com veículo 4×4. Nas comunidades, poucos moradores podem contar com esse tipo de veículo.

A Morada Nova se localiza na Gleba Arraiolos, área pertencente ao Estado do Pará. A PGE move uma ação de indenização por danos materiais e morais pelo uso ilegal de terra pública contra a Jari Celulose.

Embora vivam no território e tirem dali o seu sustento, as famílias do Braço, Nova Vida e Morada Nova não possuem títulos definitivos das terras. Nem os moradores mais antigos, como a agricultora Arlete Brito Correia, companheira de Carlos, conseguiram o documento de posse da terra.

“Eu nasci ali…Não tem aquela fazenda do seu Manuel?”. Ela aponta a estrada de terra que passa em frente da casa de madeira onde vive junto do companheiro. “Eu morava na beira do rio”.

Na ação de indenização por danos materiais e morais pelo uso ilegal de terra pública movida pela PGE contra a Jari Celulose, o procurador Ibraim Rocha acusa a empresa de praticar grilagem de carbono. “No passado, o grileiro se aproveitava dos títulos registrados nos cartórios, nulos, mas que validavam e davam a aparência de propriedade e com isso podia vender para terceiros”, explica. “Hoje, em vez dos cartórios de imóveis, eles usam as certificadoras internacionais como grandes cartórios”.

Em resposta, o Projeto Jari/Pará reconhece que os extrativistas da região praticam o manejo sustentável da terra. No entanto, em outro trecho do documento aponta posseiros e pequenos agricultores como ameaças à floresta.

“O que ainda existe de natureza são preservados pelas comunidades principalmente, né?”, comenta o agricultor João Paulo de Souza Araújo, morador da comunidade do Braço. “Se não existissem as comunidades, o que existiria aqui seria apenas eucalipto”.

Arlete trabalha junto do marido, cuidando das plantações de milho, macaxeira, laranja, tangerina e outros alimentos. Mangueiras fazem sombra ao redor da casa e árvores frutíferas se espalham pelos 40 hectares do lote da família, ao lado de outras espécies nativas da região. À distância, é possível ver as castanheiras cercadas de outras espécies.

Para Carlos, a renda extra do projeto de carbono pode ser bem-vinda, desde que chegue às mãos de quem cuida da terra. “Eu não dou mais conta de trabalhar aqui”, diz. “Se vier o benefício, eu assino”, conclui, rindo.

GRUPO JARI CONTESTA ACUSAÇÕES DE GRILAGEM

Em resposta aos questionamentos sobre as irregularidades fundiárias, o Grupo Jari, do qual a Jari Celulose faz parte, declara que as propriedades foram adquiridas de forma legítima e transparente, com o devido acompanhamento do governo federal brasileiro por intermédio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).  A empresa afirma ainda cumprir a “função social e ambiental nos mais de 90% de florestas preservadas”.

A ação da PGE contesta os documentos e as justificativas apresentadas pelo grupo. Em um trecho, o documento aponta que a Jari Celulose construiu seu império “com base em grilagem, e nunca resolve o seu passivo mediante os processos legais de regularização fundiária”.

O núcleo de pesquisa no observatório De Olho nos Ruralistas identificou um Cadastro Ambiental Rural (CAR) registrado em 2016, em nome da empresa, sobre uma área de 909.461,46 hectares. A alegada propriedade está sobreposta a outros 3.176 CARs.

Em nota, a Biofílica Ambipar  informa que o Projeto REDD+ Jari Pará, fruto da parceria entre o Grupo Jari e a Biofílica Ambipar Environment, tem como objetivo evitar o desmatamento e minimizar impactos socioambientais, promovendo benefícios para o clima, biodiversidade e comunidades da região do município de Almeirim. A empresa informou ainda que não comenta “ações de terceiros, sendo eles nossos parceiros do Grupo Jari, o Ministério Público do Estado do Pará, ou a Procuradoria Geral do Estado do Pará”.

Esta reportagem foi produzida com o apoio da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), em parceria com o Open Climate Initiative/Centre for Investigative Journalism (OCRI/CIJ) e a Agence Française de Développement (AFD), dentro do Programa Defensores Ambientais.

Foto principal ( Harrison Lopes): o agricultor Magnandes Costa Cardoso conta que não foi informado sobre a contrapartida da Jari Celulose

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