WikiFavelas: Duas vidas periféricas

Dicionário Marielle Franco mostra a vida, os perrengues e os desejos ainda acesos de duas jovens da periferia. A gravidez precoce e os sonhos interrompidos. O Cuidado que oferecem e lhes é negado. E as redes de apoio para enfrentar realidades hostis

por Patrícia Ferreira, Clara Polycarpo, Clara Bastos, Gabriel Nunes e Sonia Fleury, em Outras Palavras

Há pouco, acompanhamos a contação da vida e da trajetória de muitas mulheres nos samba-enredos das escolas de samba na Sapucaí, refazendo desde os caminhos da “mãe Preta”, Luíza Mahim, até Alcione, a “negra voz do amanhã”. Porém, para além da celebração, é necessário rememorar toda a luta das mulheres em sua ancestralidade. Em março é comemorado o Dia Internacional da Mulher, uma data que, diferentemente de muitas outras, não foi feita para fins comerciais, ao contrário, foi uma reivindicação de luta por igualdade de gênero, oficializada pelas Organizações das Nações Unidas (ONU) em 1975. No dia 8 de março, mulheres de todo o mundo vão às ruas em marcha denunciar os atrasos na garantia de direitos que atravessam as suas vidas.

Março, infelizmente, também é marcado como o mês do assassinato da Vereadora Marielle Franco, uma mulher negra e favelada, lésbica, mãe, que foi uma das mais votadas na Câmara Municipal dos Vereadores do Rio de Janeiro, e não teve o direito de terminar seu mandato. Na verdade, sua vida foi violada e sua voz silenciada há seis 6 anos, e a justiça sobre este crime bárbaro ainda não foi cumprida. Mas, seu assassinato desvenda a estrutura social brasileira: uma mulher negra e favelada que estava em um espaço de poder representando uma maioria negra e pobre, teve sua vida retirada por apenas defender os direitos humanos, por apenas defender os direitos das mulheres e das vidas faveladas. Renata Souza, amiga de Marielle e atual deputada estadual pelo Rio de Janeiro, propõe a formulação e a conceituação da inédita expressão “feminicídio político”, uma avaliação que se propõe compreender os elementos políticos e sociais que transformam a vereadora Marielle Franco, defensora intransigente dos direitos humanos, como um corpo matável na política brasileira. Nesse sentido, ainda que estejamos falando sobre a execução sumária de Marielle Franco, não podemos negligenciar as outras mulheres à frente de processos políticos, ainda que não institucionalizados, que também tombaram na luta por dignidade humana como, por exemplo, a irmã Dorothy Stang, que desafiou coronéis latifundiários no Pará. É importante notar que o Brasil é o país que mais mata defensores e defensoras dos direitos humanos no mundo.

No Brasil, de acordo com dados revelados pela 10ª edição da Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, divulgada pelo Instituto DataSenado em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência (OMV), “74% das brasileiras perceberam um aumento da violência doméstica e familiar em 2023”. Ainda de acordo com a pesquisa, realizada a cada dois anos, no recorte regional, a percepção de aumento da violência contra a mulher foi mais acentuada na região Centro-Oeste (79%), seguida pela região Nordeste (78%), depois Norte (74%), Sudeste (72%) e em último lugar a região Sul (66%)”. Além disso, a maioria foi violada de forma física, psicológica e/ou moral.

Destrinchando ainda mais essas violações diante da realidade brasileira, o que observamos é que a realidade é ainda mais dura (e as violações, ainda mais escancaradas) quando se fala das mulheres que habitam territórios empobrecidos e racializados, assim como favelas, periferias, aldeias, campos e quilombos. São nesses locais que ainda faltam acessos a direitos mínimos como: água, saneamento, saúde pública, educacional, transporte e tantas outras necessidades da vida humana. Além disso, são essas mulheres que, na maioria das vezes, acabam tendo que se dividir na atenção e nos cuidados com a casa, tendo duplas ou triplas jornadas de trabalho. São mulheres que não têm tempo de cuidarem de si mesmas ou nunca tiveram a oportunidade de, por exemplo, ter direito ao lazer ou ao descanso.

Outro dado que merece atenção é quando se fala na situação das mulheres no mercado de trabalho brasileiro, que segue mostrando distorções entre os gêneros. Segundo pesquisa divulgada pelo Dieese, em 2023, “as mulheres são minoria na força de trabalho, mas maioria entre os desempregados, por exemplo. Também têm maiores taxas de subocupação e de desalento. E ganham, em média, 21% a menos do que os homens. No terceiro trimestre de 2022 as mulheres representavam 44% da força de trabalho, mas eram 55,5% dos desempregados no país. A taxa de desemprego era de 6,9% para os homens e subia a 11% no caso das mulheres. Esses dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do IBGE. Eram 5,3 milhões de desempregadas, sendo 3,4 milhões negras”.

Para transformar essa realidade de desigualdades nas mais variadas esferas da vida da mulher e dentro dos mais variados territórios de moradia, lazer e trabalho, é cada vez mais necessário estar nas ruas lutando e reivindicando direitos que possam garantir a vida de todas as mulheres, sejam elas cis ou trans, e garantir a vida significa garantir que os direitos fundamentais atendam a todas as mulheres em suas realidades, ancestralidades, identidades e culturas. Procurando ampliar a discussão sobre o “ser mulher” e, em especial, ser mulher preta e favelada, damos destaque ao verbete produzido pela equipe do Dicionário de Favela Marielle Franco através da análise do discurso de um dos episódios realizados pelo “Programa Papo na Laje”. No episódio “Ser Mulher” da série “Papo na Laje”, as convidadas Thamires Moreira, auxiliar de cozinha da zona oeste, e Ingridy Moura, cabeleireira e manicure de Benfica, bairro da zona norte [do Rio de Janeiro] conversam com a atriz e apresentadora Dani Câmara sobre a sobrecarga física e mental do cuidado com os filhos e dos afazeres domésticos. Tudo isso ao mesmo tempo em que buscam realizar os sonhos que foram adiados pela gravidez na adolescência. Neste episódio, para além de uma forte reflexão sobre o que é sonho e o é que desejo para uma mulher favelada (e mãe), as entrevistadas também discutem sobre a centralidade do cuidado em suas vidas e, com isso, sobre a ancestralidade e o futuro das mulheres pretas. (Introdução: Gizele Martins)

Ser mulher – Programa “Papo na Laje”

Análise discursiva

O Grupo de Análise do Discurso do Dicionário de Favelas Marielle Franco trabalhou a análise das principais formações discursivas identificadas nesse episódio, considerando o discurso como uma prática social e não como atividade meramente individual de quem o enuncia. Assim a estrutura social se manifesta, delimita e molda o discurso, como também é por ele modificada.

Participantes: Thamires Moreira e Ingridy Moura. Local e data: Complexo do Alemão, 2022.

Ser mulher, ser mãe

Nesse episódio, induzidas pela questão inicialmente colocada pela entrevistadora, a partir da condição de ser mãe. Ao tratar ser mulher e ser mãe como equivalentes, ocultam-se as representações de outras formas de existência da mulher.

No entanto, ser mulher e ser mãe é a realidade de muitas jovens nas favelas e periferias.

Para parte dessas jovens, a realidade que se apresenta cedo vem na ordem “namorar, engravidar e a vida desandar”, assim falam as entrevistadas que se tornaram mães ainda na adolescência e, para elas, ser mãe foi deixar os sonhos para trás.

Eu tinha o sonho de ser atriz!

Esse pode ser um sonho comum em uma adolescência vivida no Rio de Janeiro, influenciada por uma ideia de glamour do universo do espetáculo na cidade que é um polo de produções artísticas no Brasil. As relações entre sonho e realidade aparecem nos discursos e evidenciam as impossibilidades dos sonhos diante da realidade quase predestinada.

O episódio apresenta duas visões distintas da maternidade: a mãe que tem que ficar com os filhos sempre, na qual o cuidado dos filhos é sua responsabilidade praticamente exclusiva; e, a mãe que é apartada dos filhos pelo medo de lhes tirar as oportunidades, que o pai, com melhores condições financeiras, supostamente pode prover.

De um lado, temos o peso da responsabilidade com os filhos sobre a mãe: “O filho é sempre da mãe”. Por outro lado, o peso da dor, da saudade e a necessidade de proteger os filhos de vivenciar agressões à mulher proferidas pelo pai.

Outro elemento importante que aparece é a necessidade de uma rede de apoio ao cuidado dos filhos. O emprego formal se torna uma impossibilidade pela falta de uma rede de apoio para o cuidado dos filhos. O cuidado é compartilhado por parentes, vizinhas, amigas para dar conta da carência da rede formal (creches) que não cobrem efetivamente os horários comerciais. A manutenção financeira da família se torna uma luta diária, na qual o trabalho tem que ser feito em casa para dar conta do sustento e do cuidado com os filhos.

Nos dois casos, as oportunidades criadas pelas entrevistadas para o trabalho acabam se configurando no universo do cuidado que vem com a maternidade – a necessidade de cuidar, de alimentar, de limpar, esse outro que é dependente de você.

A Thamires conta que se vira com vários tipos de trabalho para buscar o sustento da casa, mas que o seu encontro é no universo que envolve o preparo de alimentos, no qual ela passa a entender a comida como prazer, querendo investir na formação em Gastronomia, elaborando outra forma de desejo de crescimento pessoal e profissional.

A Ingridy, por sua vez, vive separada dos filhos e, dentre os “corres” que faz, cuidar dos outros é a sua principal fonte de renda. Ela relata que, por falta de suporte jurídico e a ideia de que poderia tirar as oportunidades dos filhos, perdeu a guarda deles para o pai. Que o seu sonho é estar com os filhos e seu desejo é ser técnica em enfermagem, profissionalizando esse fazer. O cuidar torna-se desejo.

Os discursos evidenciam a distância entre vontade e realidade, entre sonho e desejo.

A centralidade do cuidado na vida das mulheres pretas

Ao tratar a questão de gênero (“ser mulher”) com as expectativas, portanto, do que é “ser mãe”, as entrevistadas – conduzidas pela entrevistadora como argumento – colocam o “cuidado” como central em suas rotinas e perspectivas de vida. Na verdade, quando falamos de maternidade, o cuidado é, de fato, central: cuidar dos filhos, cuidar da casa e, sob um casamento, do próprio marido. É o que reforça Thamires ao considerar as imposições dos papeis de gênero em nossa sociedade: “Na próxima encarnação, eu quero ser pai. Por mais que o pai seja ótimo, cumpra com todas as obrigações, o filho sempre é da mãe. Isso é fato. Quando a gente é mãe, está o tempo todo cuidando”.

Em razão dessa centralidade considerada, o cuidado passa a fazer parte não apenas da rotina da casa, mas também das relações com o exterior e consigo mesmas. Como relações de trabalho, por exemplo, Thamires se identifica atualmente como manicure e pedicure, profissão que tem como atividade o cuidado de outras pessoas a partir da relação com a higiene e a beleza. Ingridy, por sua vez, expressa que o cuidar se tornou sua profissão, formando-se técnica em enfermagem para atendimento a idosos, profissão intrinsecamente relacionada aos cuidados com a saúde. Ao cuidar dos outros, seja seus próprios filhos ou não, as mulheres se mantêm fixadas ao espaço doméstico, seja sua própria casa ou a casa para quem elas estarão prestando serviço, e limitam seus próprios mundos a atender a terceiros.

Neste sentido, o cuidado também lhes é sentido como uma falta. Apesar de redes de apoio, com marido, familiares e amigos, Thamires, por exemplo, sente falta de ser cuidada. Em um relato emocionante, conta como teve que dar conta de um filho doente enquanto ela também estava doente na correria de hospitais, se sentindo exausta. De tanto cuidar de todo mundo, parece que ninguém cuida de fato dela. O que é uma constante ao considerarmos as relações de gênero no casamento e na maternidade sob o patriarcado. Por outro lado, a Ingridy não cuida diretamente dos seus filhos, pois que a Justiça também não cuidou dela ao retirar a sua guarda. Mesmo que de longe, toda a sua vida é construída para que um dia possa estar com eles e, assim, cuidar de seus próprios filhos. Com isso, o cuidado se faz central também pela sua própria ausência.

Território

Ao se referirem ao seu território de moradia, as duas entrevistadas utilizam nas suas falas noções positivas em relação a esses espaços, contrastando com os discursos hegemônicos que são utilizados na mídia tradicional quando se fala em territórios favelados e periféricos.

Ingridy, moradora de Benfica, na Zona Norte do Rio de Janeiro, diz sentir segurança onde mora: “Gosto de morar aqui, porque eu me sinto em casa. […] quando eu pego meu ônibus e chego em Benfica, no Manguinhos, na Zona Norte eu fico bem tranquila”. Ela ainda pontua que existe um “lado ruim” do território – sem dizer qual é – mas o seu discurso dá ênfase para as noções positivas do lugar, como as pessoas acolhedoras. Usando de referência os discursos da mídia tradicional, que destacam a insegurança, episódios de tiroteio e outros crimes no território, a fala de Ingridy é completamente oposta e joga luz nos aspectos positivos de se morar em Benfica.

Um outro aspecto que as entrevistadas destacam é a rede de apoio que ambas possuem, com amigos, vizinhos e familiares que as ajudam quando é necessário. Thamires, que mora recentemente em Curicica, Jacarepaguá e morou por muitos anos no Complexo do Alemão ressalta a solidariedade que existem nesses territórios entre os moradores: “[…] as pessoas são mais ‘povão’, elas se preocupam mais com a gente, porque elas vivem a mesma coisa que a gente”.

Sonho e Desejo

Adolescentes têm sonhos comuns a esta faixa etária, como o de ser atriz, por mais distante que isso esteja da realidade de quem vive nas favelas e periferias. A gravidez precoce, fruto dos desejos e afetos, vem exterminar os sonhos e substituí-los pela dura realidade de se tornar responsável pela casa e pela vida dos filhos, pelo cuidado da família. Essa realidade muitas vezes vem acompanhada por agressões e violências, pela falta de apoio para buscar uma saída, seja da parte do Estado, seja por parte de familiares e conhecidos. Ao contrário, muitos tentam convencer essas jovens mulheres que já não tem mais jeito, não há saída para ela e para seus filhos, sua sina já está traçada.

Reencontrar o desejo é um processo de reencontro consigo mesma, muitas vezes fruto da separação que rompe com o domínio masculino. Outras vezes, esse reencontro se dá como parte da trajetória mesma da maternidade e das lutas pela sobrevivência.

Diferentemente do sonho adolescente que foi interditado, o desejo da mulher que se constrói nas suas lutas é algo que se coloca como uma perspectiva, uma possibilidade que exige esforço e dedicação para ser alcançada. Se o desejo é da esfera do real e os sonhos do âmbito da fantasia, ambos nunca deixam de existir, sendo permanentemente reconstruídos, em qualquer fase da vida.

Silêncios – O que não foi dito no episódio…

O episódio tem como pauta a temática principal “ser mulher”. As participantes trouxeram discussões profundas e válidas sobre questões como a maternidade, mas percebemos que, de modo geral, o percurso dessas discussões excluiu inúmeras questões importantes, como por exemplo: debates sobre o papel social da mulher, problematizações quanto aos padrões impostos sobre a ideia de feminino e até mesmo tópicos feministas sobre os direitos das mulheres. Com isso, fica implícito que, no episódio, a questão da mulher fica resumida a uma antiga ideologia socio-histórica que atrela a ideia de ser mulher à ideia de ser mãe.

Pensamos, então, que houve certos assuntos ausentes ao longo do episódio. Através dos discursos, é notável que a vivência dessas mulheres está relacionada a um desamparo que se faz presente através de micro agressões e de sentimentos como impotência, insegurança, etc. Porém, existe, ainda, uma ausência estatal muito forte que não foi mencionada ao longo do episódio. Apesar do enfrentamento de diversas dificuldades cotidianas, as discussões não mencionam nenhum tipo de auxílio governamental que poderia ser propício para estas mulheres, e esta ausência produz um silenciamento assumido pelo Estado. Um exemplo disso se faz presente no relato de Thamires, que, em um posto de saúde com seus filhos, revela não se sentir amparada ou cuidada em momento algum.

O silêncio aqui aparece como uma possibilidade de trabalharmos a incongruência presente nos discursos das mulheres brasileiras, visto que, ao não trazerem questões que remontam uma insatisfação sociopolítica, percebemos como estas faltas também produzem significados e têm consequências reais em suas vidas, como desamparo, apagamentos e silenciamentos constitutivos. Pensamos, então, que estes silêncios estão constituindo sentidos de naturalização de diversos tipos de desamparo. A omissão estatal muitas vezes é naturalizada e estas problematizações são apagadas dos discursos femininos. As questões que foram deixadas de lado ao longo do episódio aparecem como não-ditos que também constituem parte das lutas diárias dessas mulheres periféricas.

Ilustração: Thays Coutinho/Dicionário de Favelas Marielle Franco

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