Impunidade e violência no campo brasileiro: Um grito por justiça

Empresários, políticos e o poder público são os principais agentes dos conflitos no campo no Brasil

Por Juca Oliveira, na Página do MST

A vastidão das áreas camponesas do Brasil esconde uma realidade nebulosa e dolorida, a violência que assola as comunidades e os trabalhadores/as e ativistas que se empenham na luta pela terra e pelos direitos fundamentais. Esta matéria traz uma reflexão sobre a relação entre a impunidade e os alarmantes índices de agressões no campo.

A história dos trabalhadores brasileiros no campo é marcada por episódios brutais de violência, desde Canudos até o Massacre de Eldorado dos Carajás. Em 2016, dados revelaram um aumento significativo da violência no campo no Brasil. A Comissão Pastoral da Terra (CPT), que registra os conflitos no campo desde 1985, documentou 61 assassinatos, 74 tentativas de assassinato, 200 ameaças de morte, 571 agressões e 228 prisões, relacionadas a conflitos rurais nesse ano. Esses números apontam para uma escalada preocupante.

A impunidade perpetua o ciclo de violência no campo. Fazendeiros, empresários e até o próprio poder público estão envolvidos em todo esse cenário, muitos casos seguem sem resolução ou com falta de punição adequada, em que a impunidade é a marca do cenário rural no país.

Alguns dados da CPT sobre as parciais de conflitos no campo brasileiro do primeiro semestre do ano passado, 2023, ilustram bem o atual momento do país em relação à violência no campo: foram registrados 973 conflitos no campo, provocando um aumento de 8% em relação ao mesmo período de 2022 e o segundo maior registro dos últimos dez anos.

Eldorado dos Carajás

De acordo com o site oficial do Movimento Sem Terra, que conta a história do Movimento, no mês de setembro de 1995, cerca de 3,5 mil famílias de camponeses, mobilizadas pelo MST, ergueram um acampamento nas proximidades da propriedade Macaxeira. O intuito desse acampamento era pleitear a desapropriação do terreno considerado improdutivo. Todavia, as tratativas foram permeadas por compromissos não honrados e atos desonestos por parte dos proprietários.

No mês de março de 1996, um grupo de famílias optou por ocupar a propriedade rural, dando início a novas conversas com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O compromisso de enviar 12 toneladas de mantimentos e 70 caixas de medicamentos para o acampamento não foi honrado, o que levou aproximadamente 1.500 famílias a iniciarem uma caminhada de 800 km em direção à Belém. A intenção da jornada era realizar manifestação contra o governo estadual e a demora na regularização da situação da Fazenda Macaxeira.

Já no dia 16 de abril do mesmo ano, os integrantes do MST fecharam a via PA-150 no km 95, solicitando alimentação e transporte para seguir com a jornada. Novos diálogos foram iniciados, com o líder da 10ª Companhia Independente da Polícia Militar (CIPM/1) garantindo provisão de comida e deslocamento. No entanto, no dia 17 de abril, as conversas foram suspensas de forma repentina. Os Sem Terra voltaram a interditar a via, próximo à localidade conhecida como Curva do S, no município de Eldorado dos Carajás.

De tarde, no mesmo dia, os camponeses foram cercados pela Polícia Militar do Pará. O quartel de Parauapebas ocupava a posição oeste, ao passo que o batalhão de Marabá se posicionava no leste. A ação contou com a participação de 155 policiais, os quais utilizaram bombas de gás lacrimogêneo. Os agentes não tinham qualquer identificação nos uniformes, e suas armas e munições não estavam registradas.

Na época o governador do Pará era Almir Gabriel (PSDB), que foi conivente com o ataque da polícia contra as famílias Sem Terra, ao determinar a liberação da estrada. O Secretário de Segurança do Pará, Paulo Sette Câmara, foi quem determinou a intervenção policial, autorizando o emprego da força, inclusive com disparos. O desfecho trágico resultou na morte de 19 camponeses, 37 pessoas baleadas e 56 feridos. Outras duas vítimas faleceram nos dias seguintes, chegando a 21 vítimas fatais. O incidente resultou no Massacre de Eldorado dos Carajás, representando um dos eventos mais sombrios na luta pela democratização de terras no Brasil.

O legista Nelson Massini encontrou tiros na nuca e na testa do trabalhadores, levantando as suspeitas de assassinato planejado de sete camponeses. As outras 17 balas ficaram alojadas nos corpos dos falecidos, enquanto 12 apresentavam cortes profundos causados por foices e facões, possíveis instrumentos retirados dos próprios camponeses.

Os movimentos sociais questionam por que os líderes políticos daquele momento, como o então governador do estado Almir Gabriel, que determinou a liberação da estrada, e o secretário de Segurança Pública, Paulo Câmara, que autorizou o emprego da força policial, também não foram responsabilizados legalmente pelo massacre. Sem esquecer as acusações que apontavam para a participação de proprietários rurais da região, que alegadamente apoiaram a ação. Após anos de impunidade, somente dois policiais foram sentenciados pelo Massacre: o oficial Mario Colares Pantoja (a 228 anos) e o capitão José Maria Pereira Oliveira (a 154 anos), que lideravam os policiais na época. Ambos apelaram em liberdade até 2012.

Impunidade é pólvora para mais violência

De acordo com Carlos Lima, coordenador nacional da Comissão Pastoral da Terra a inocência concedida àqueles que violentam o trabalhador do campo é um dos motivos do aumento dessa violência:

A impunidade é uma das causas centrais para a perpetuação da violência no campo, e pode ser compreendida como uma licença para matar, na medida em que os crimes são cometidos, os responsáveis não são devidamente investigados e julgados. A própria Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu, no julgamento do caso Sales Pimenta, um defensor de Direitos Humanos assassinado no Pará em 1982, que estamos diante de um contexto de impunidade estrutural que se perpetua ao longo dos anos, sem que o estado brasileiro consiga dar as devidas respostas para a sociedade frente a esses crimes“, afirma Lima.

Carlos ainda completa comentando sobre a precariedade das investigações quando se trata de mortes e agressões no campo:


Dentre as causas para essa impunidade está a dificuldade da segurança pública em realizar investigações. As investigações, quando são realizadas, apresentam falhas técnicas, além dos aspectos marcantes de morosidade e parcialidade que favorecem aos autores dos crimes. Em muitas ações penais a motivação para absolvições está relacionada à precariedade das provas produzidas nos inquéritos policiais, prejudicando também a atuação do Judiciário”
, reforça.

Ainda segundo Lima, nos julgamentos, a maior recorrência de condenação ocorre entre os executores, o que reflete a interferência do poder político de latifundiários, empresários e outros agentes causadores da violência no campo junto ao Poder Judiciário.

Novos casos de assassinatos no campo

Outro caso de violência brutal no campo é o da Mãe Bernadete, que ocorreu na Bahia. No dia 17 de agosto, Mãe Bernadete foi assassinada em sua casa no quilombo Pitanga dos Palmares. A denúncia oferecida pelo MP-BA aponta que ela foi alvejada por 25 disparos. No momento do crime, ela estava acompanhada de seus três netos, de 12, 13 e 18 anos. Mãe Bernadete era coordenadora da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), além de ser uma liderança respeitada em seu território. Mais detalhes abaixo na matéria de Gabriela Amorim pelo Brasil de Fato de Salvador, Bahia:

Mãe Bernadete morreu porque lutava contra o tráfico de drogas,
afirma Ministério Público da Bahia

Um caso que vale destacar é do grupo ruralista “Invasão Zero”, formado por fazendeiros conhecidos por agir contra ocupações de terras, sem respaldo de decisões judiciais na Bahia, que está sob investigação da Polícia Civil devido ao envolvimento na morte de Maria de Fátima Muniz Pataxó, indígena Pataxó Hã-hã-hãe, também conhecida como Nega Pataxó, no sul da Bahia.

De acordo com o texto de Murilo Pajolla, do Brasil de Fato, de 21 de Janeiro de 2024, a líder indígena foi assassinada a tiros após a retomada de um território indígena no Mato Grosso do Sul, em que os sobreviventes descreveram como uma “caçada” aos indígenas, conduzida pela Polícia Militar (PM) e fazendeiros da região. Conforme a Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA), o ataque, que também deixou indígenas feridos, partiu desse grupo de fazendeiros e donos de terras chamado “Invasão Zero”. A perícia confirmou que o tiro que matou Nega Pataxó foi disparado pela arma do filho de um fazendeiro, um jovem de 19 anos, que foi preso no momento do ataque. Além disso, um policial da reserva que participava da ação ruralista também foi detido.

A “Invasão Zero” é uma entidade jurídica com status e condição de CNPJ. Além disso, se beneficiam do apoio de associações profissionais e da indústria de produtos e de membros do Congresso. Em resposta ao impacto midiático negativo ocorrido após o assassinato de Nega Nega Pataxó, a campanha foi assessorada por uma equipe de jornalistas experientes em Brasília.

Luciano Zucco, presidente da CPI do MST, também preside a frente parlamentar da “Invasão Zero” no Congresso, que também é integrada pelo deputado federal Pedro Lupion (PP-PR) e o  ex-ministro de Bolsonaro, Ricardo Salles (PL-SP) que ocupa a vaga de vice-presidente do grupo.

Medidas concretas por parte do poder judiciário e executivo são necessárias para combater a impunidade. E a luta as mobilizações por justiça também são fundamentais para que o campo brasileiro clame por um futuro onde a violência seja erradicada e os direitos dos trabalhadores/as sejam respeitados.

*Editado por Solange Engelmann

Foto: Arquivo MST

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