Documento demonstra a perseguição sofrida pelo líder da Revolta da Chibata e ataques à sua memória até a abertura democrática
Procuradoria da República no Rio de Janeiro
O Ministério Público Federal (MPF) enviou, nesta terça-feira (19), parecer complementar ao Ministério de Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) defendendo a instauração de processo administrativo para reconhecer a condição de anistiado político de João Cândido Felisberto, conhecido como “almirante negro”. O documento encaminha requerimento formulado por seu filho, Adalberto Nascimento Cândido, à Comissão de Anistia do MDHC, requerendo os efeitos de anistia decorrentes da Lei nº 10.559/2002.
O militar foi líder da Revolta da Chibata, ocorrida em novembro de 1910, no Rio de Janeiro, que tentou acabar com as práticas violentas de castigos corporais da Marinha contra os marinheiros, em sua maioria negros, no contexto do pós-abolição da escravatura. Esse é o segundo parecer produzido no âmbito de inquérito civil público, instaurado pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC) do MPF no Rio de Janeiro, com o objetivo de acompanhar as medidas de valorização da memória e do legado do almirante negro, além de buscar reparação e o debate sobre o enfrentamento ao racismo estrutural no país.
O MPF também encaminhou o documento à Coordenação de Memória e Verdade da Escravidão e do Tráfico Transatlântico de Pessoas Escravizadas do MDHC, para conhecimento e providências, e à Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, com o pedido de apreciação do Projeto de Lei 4046/2021 (originalmente PLS 340/2018), que prevê a inscrição de João Cândido no panteão dos heróis e heroínas da pátria.
De acordo com o documento, o MPF coletou mais elementos para demonstrar que a perseguição a João Cândido não se limitou aos momentos posteriores à Revolta da Chibata, tendo se estendido por toda a sua vida. João Cândido morreu no dia 6 de dezembro de 1969, em decorrência de um câncer, aos 89 anos, sem receber reconhecimento, anistia, reparação ou pensão do Estado Brasileiro, apenas uma pequena pensão concedida pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.
“A manifestação da coordenadora-geral de Memória e Verdade da Escravidão e do Tráfico Transatlântico de Pessoas Escravizadas, Fernanda Thomaz, elenca uma série de episódios que, ocorridos após 1946, indicam não apenas a omissão prolongada do Estado brasileiro em anistiar o almirante negro, mas também uma atuação proativa em vigiar, perseguir e controlar a vida e o legado de João Cândido”, destacou o procurador Julio José Araujo Junior, que assina o documento.
História – O requerimento cita as contribuições da pesquisadora Silvia Capanema, em livro sobre a vida de João Cândido, que relata episódios que ajudam a entender a perseguição ao marinheiro. A autora cita, por exemplo, que Alexandrino de Alencar, oficial da Marinha que teria intermediado o ingresso de João Cândido na instituição, também participou de uma revolta, a chamada “Revolta da Armada” e foi anistiado por dois decretos, em 1894 e 1897. Neste último, ele e outros 40 oficiais retomaram seus graus na Armada, com remunerações e promoções. Apesar de ter sido “rebelde”, tornou-se ministro da Marinha em quatro ocasiões, entre 1906 e 1922.
Segundo a pesquisadora, o próprio João Cândido relata que teve de pedir uma intervenção ao Ministro da Marinha depois de 1912, quando procurava trabalho na Marinha Mercante e era perseguido por oficiais. Ela explica, ainda, que João Cândido enfrentou perseguições dos oficiais da Marinha mesmo depois da anistia de novembro de 1910, da prisão antes do julgamento, entre dezembro de 1910 e dezembro de 1912, e depois de ser absolvido no Processo do Tribunal Militar, em 1912, sendo desvinculado da Marinha por conclusão de tempo de serviço contra a sua vontade.
Silvia relata que as perseguições prosseguiram nas décadas seguintes, entre os anos 1920 e 1960, não só ao marujo, mas também a todos os autores que escreveram ou tentaram escrever sobre o tema. Ela relata um caso conhecido, que é o do jornalista de humor Aparício Torelly, que teria apanhado de oficiais e deixado um aviso na porta de seu gabinete desde então: “entre sem bater”. Outro exemplo citado foi o próprio Edmar Morel, um dos principais escritores da revolta, que teve seus direitos políticos cassados pelo golpe militar de 1964 por causa da publicação de “A revolta da chibata”.
Em 1930, João Cândido é preso e acusado de ser membro da aliança liberal (movimento que participa da revolução de 1930) e, em 1948, com o retorno à democracia desde 1945, seu nome é citado na Academia Brasileira de Letras, mas é criticado por oficiais. A autora aponta em seu livro que as primeiras versões dos oficiais sobre a revolta aparecem a partir de 1948, com o texto do oficial Alencastro Graça, que diz, carregado de preconceitos de raça e classe, que reconhecer a história do marujo seria o mesmo que aceitar que a história “fosse confundida com os anais de criminologia”.
Com a morte de João Cândido, imaginava-se que a perseguição cessaria. Contudo, isso não ocorreu. Com o auxílio de Álvaro Nascimento, também biógrafo do almirante negro, foi possível acessar documentos que indicavam não haver disposição da ditadura civil-militar em parar com o silenciamento sobre a história da Revolta da Chibata.
O biógrafo cita que a canção “Mestre-Sala dos Mares”, de Aldir Blanc e João Bosco, foi vetada, sob a alegação de que se tratava de “conteúdo esdrúxulo” e “mensagem negativa”, por falar da “chibata na Marinha”, “prostituição no cais” e “lutas inglórias”, “do trabalhador do cais e sua negritude sofrida”. De acordo com o pesquisador, no Carnaval de 1985, já em contexto de redemocratização, a União da Ilha levou João Cândido à Marquês de Sapucaí (“Um herói, uma canção, um enredo”). Antes, no final de 1984, porém, teve de submeter o planejamento do desfile ao crivo da censura. Outro exemplo foi a censura de matéria da Rádio Tirana/Albânia sobre a Revolta da Chibata, em 22 de novembro de 1985.
Dessa forma, o procurador Julio Araujo ressalta no documento que os argumentos contidos no primeiro parecer são corroborados por fatos narrados na manifestação da Comissão pela Memória e Verdade sobre a Escravidão e o Tráfico Transatlântico e pela pesquisa de Silvia Capanema e Álvaro Nascimento.
Para o representante do MPF, “é necessário dar seguimento à análise do pleito da família de João Cândido por reparação e afastar de uma vez os obstáculos que impedem a sua inscrição no panteão dos heróis da pátria”, finalizou.
Reparação à família – Em parecer enviado ao MDHC, em novembro de 2023, o PRDC defendeu o caráter incompleto da anistia concedida pela Lei nº 11.756, de 23 de julho de 2008, destacando que, apesar de importante reconhecimento histórico, veio desacompanhada de compensações à família de João Cândido.
A intenção do MPF é compelir a União a fazer a devida reparação aos familiares do almirante, tendo em vista que a anistia pecou em não produzir outros efeitos, como promoções a que teria direito se tivesse permanecido em serviço ativo e benefício de pensão por morte aos sucessores.
Livro de heróis da pátria – Outro requerimento reforçado pelo MPF, como medida de reparação, foi a apreciação do PL 4046/2021 (originalmente PLS 340/2018), que prevê a inscrição do almirante João Cândido no livro dos heróis e heroínas da pátria. Atualmente, o PL tramita na Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, já tendo sido aprovado no Senado.
O “livro de aço”, como é conhecido, foi criado em 1992 e fica abrigado no Panteão da Pátria, na Praça dos Três Poderes, com o objetivo de conferir justo título a pessoas que tiveram uma trajetória importante na formação de nossa história.
Confira a íntegra do parecer
Inquérito Civil nº 1.30.001.001891/2023-11