Pressões para alterar escopo do Tratado Vinculante em debate na ONU podem esvaziar instrumento internacional e dificultar responsabilização de transnacionais por violações de direitos
Nesta sexta-feira (22), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Fian Internacional manifestaram preocupação com o risco de esvaziamento do Instrumento Vinculante da Organização das Nações Unidas (ONU) para Transnacionais e outras Empresas, atualmente em construção no âmbito do Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU.
A manifestação conjunta foi apresentada por Christian Crevels, integrante do Cimi, durante o debate geral sobre instrumentos e mecanismos de direitos humanos, atividade que integra a programação da 55ª sessão ordinária do CDH. A sessão ocorre em Genebra, na Suíça, entre 26 de fevereiro e 5 de abril.
“Com as medidas recentes para agilizar as negociações, o debate para um Instrumento Vinculante para Transnacionais e outras Empresas na ONU chega a um momento decisivo”, disse Christian, que participou da reunião presencialmente.
“Particularmente nos preocupam as mudanças no escopo do Tratado Vinculante em relação ao originalmente previsto pela Resolução; e as tentativas de redução do alcance do tratado, para proteger o setor financeiro das violações cometidas pelas empresas por ele financiadas”, alertou, em nome da Fian e do Cimi.
“Existe uma tentativa de ampliar o o escopo do Tratado para incluir não só as corporações transnacionais, mas as empresas em geral, incluindo as de âmbito nacional. Entendemos essa pressão como uma forma de tirar o foco das corporações transnacionais, alargando tanto o escopo que a regulação ficaria quase inefetiva”
Tratado vinculante
Em 2014, em sua 26ª sessão, o CDH adotou a resolução 26/9, que estabeleceu um grupo de trabalho intergovernamental para discutir a criação de um tratado internacional voltado a regular as atividades de corporações transnacionais e outras empresas em relação aos direitos humanos.
Desde então, os países vêm discutindo o texto deste tratado, que terá caráter vinculante. Isso significa que, uma vez adotado do pelos Estados-membros da ONU, deverá ser implementado por todos os países que integram as Nações Unidas que o rarificarem.
A expectativa de representantes de movimentos sociais, comunidades afetadas e representantes da sociedade civil, especialmente dos países do Sul global, é de que o tratado sirva para responsabilizar as corporações internacionais – assim como as instituições financeiras que custeiam suas atividades – envolvidas em violações de direitos humanos, ambientais e territoriais de diversos grupos sociais e comunidades vulneráveis, principalmente povos indígenas.
“Um dos aspectos que vem sendo alvo da pressão, atualmente, é o escopo do Tratado. Existe uma tentativa de ampliá-lo para incluir não só as corporações transnacionais, mas as empresas em geral, incluindo as de âmbito nacional. Entendemos essa pressão como uma forma de tirar o foco das corporações transnacionais, alargando tanto o escopo que a regulação ficaria quase inefetiva”, explica Christian.
A principal crítica de organizações da sociedade civil, como o Cimi e a Fian, a esta tentativa de alteração de escopo é que são, justamente, as atividades de empresas transnacionais que se encontram sem regulamentação e jurisdição específicas.
“Empresas de todos os tipos podem cometer violações de direitos humanos. Porém, as empresas nacionais já estão vinculadas às respectivas legislações de seus países. Para as empresas transnacionais, contudo, há um problema de jurisdição, justamente por terem uma atuação que incide sobre diferentes países. Por isso, é sobre elas que precisamos de um tratado”, prossegue o integrante do Cimi.
O grupo de trabalho criado em 2014 se reúne anualmente e, depois das discussões iniciais, passou a trabalhar na redação do tratado. É justamente este texto que sofre pressão dos países interessados em tornar o instrumento mais amplo – e impreciso.
Povos indígenas no Tratado Vinculante da ONU
A atual redação da proposta de Tratado Vinculante faz referência aos direitos dos povos indígenas. O primeiro ponto a tratar do tema é o reconhecimento, por parte dos países-membros da ONU, do “impacto distinto e desproporcional das violações dos direitos humanos” sobre povos indígenas e outros grupos sociais vulneráveis.
O texto negociado também reconhece “a necessidade de uma perspectiva empresarial e de direitos humanos” que leve em conta as especificidades dos diferentes grupos vulneráveis a violações e os “obstáculos estruturais à obtenção de soluções para essas pessoas”.
A atual proposta de texto também prevê que os Estados-membros garantam a participação dos povos indígenas e outros grupos sociais no desenvolvimento e na implementação de leis, políticas e outras medidas legalmente aplicáveis para “prevenir o envolvimento de empresas em abusos de direitos humanos”.
No caso dos povos indígenas, a atual versão do texto também aponta que estas medidas devem seguir os padrões internacionais e garantir o direito à consulta livre, prévia e informada.
Precedente alarmante na União Europeia
No dia 15 de março, a Comissão de Assuntos Jurídicos do Parlamento Europeu aprovou uma versão esvaziada da Diretriz em Devidas Diligências e Sustentabilidade Corporativa da União Europeia (UE). O receio de organizações como o Cimi e a Fian é que o recente esvaziamento deste instrumento da UE – que ainda precisa ser aprovado pelo parlamento europeu para entrar em vigor – sirva como um precedente negativo para o instrumento em discussão na ONU.
“Embora o estabelecimento de legislação em Direitos Humanos e Empresas seja de se comemorar, ela deveria cobrir elementos de responsabilização mais abrangentes e mais fortes através de toda cadeia de valor. Nos preocupa que três Estados tenham sabotado um texto já comprometido que suas instituições representativas haviam previamente aceitado”, afirmou o representante do Cimi e da Fian no debate do CDH.
“A Diretriz Europeia não deve ser usada para ignorar as demandas de países do Sul Global, organizações de Direitos Humanos, comunidades afetadas e movimentos sociais”, alertou Christian.
Cimi no CDH
Nas últimas semanas, integrantes do Cimi e representantes indígenas participaram de atividades do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Nesta semana, o secretário executivo do Cimi, Luis Ventura Fernández, expressou preocupação com o cenário atual dos direitos indígenas no Brasil, durante um debate sobre a situação dos direitos humanos nos países integrantes da ONU.
Na semana passada, o jovem xamã Guarani Kaiowá Germano Lima, do tekoha Guira Kambi’y, em Douradina (MS), e a missionária Marline Dassoler, do Cimi, também participaram de atividades da 55ª sessão do CDH, que segue até o dia 5 de abril. Mais manifestações de representantes do Cimi estão previstas para a próxima semana.
Confira a declaração completa de Christian Crevels:
O Cimi e a Fian estão preocupados com o conteúdo da recentemente esvaziada Diretriz em Devidas Diligências e Sustentabilidade Corporativa na União Europeia. Embora o estabelecimento de legislação em Direitos Humanos e Empresas seja de se comemorar, ela deveria cobrir mais elementos de responsabilização abrangentes e mais fortes através de toda cadeia de valor. Nos preocupa que três Estados tenham sabotado um texto já comprometido que suas instituições representativas haviam previamente aceitado.
Com as medidas recentes para agilizar as negociações, o debate para um Instrumento Vinculante para Transnacionais e outras Empresas na ONU chega também a um momento decisivo. Insistimos para que o caso da Diretriz não ameace um forte Instrumento Vinculante. A Diretriz Europeia não deve ser usada para ignorar as demandas de países do Sul Global, organizações de Direitos Humanos, comunidades afetadas e movimentos sociais.
Particularmente nos preocupam as mudanças no escopo do Tratado Vinculante em relação ao originalmente previsto pela Resolução; e as tentativas de redução do alcance do tratado, para proteger o setor financeiro das violações cometidas pelas empresas por ele financiadas.
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55ª sessão ordinária do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra. Foto: reprodução