No genocídio, uma civilização em colapso. Por Chris Hedges 

Por que as bombas continuam caindo e o Ocidente tolera a mão macabra de Tel-Aviv? Toda a sua moralidade é uma mentira? Ou ele é Israel, intoxicado de supremacismo e convencido de que os não-brancos nada valem, quando frágeis?

Tradução de Antonio Martins, no Outras Palavras

Não há surpresas em Gaza. Cada ato horripilante do genocídio de Israel foi anunciado antecipadamente. Tem sido assim há décadas. A expulsão dos palestinos de suas terras é o coração pulsante do projeto colonial de Israel. Esta espoliação teve momentos históricos dramáticos — 1948 e 1967 — quando grandes partes da Palestina histórica foram tomadas e centenas de milhares de palestinos sofreram “limpeza étnica”. O processo também ocorreu de forma crônica — o roubo em câmera lenta de terras e a limpeza étnica constante na Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental.

A incursão em 7 de outubro em Israel, feita pelo Hamas e outros grupos de resistência, que deixou 1.154 israelenses, turistas e trabalhadores migrantes mortos e cerca de 240 reféns, deu a Israel o pretexto para o que há muito anseia — o apagamento total dos palestinos.

Israel derrubou 77% das instalações de saúde em Gaza, 68% da infraestrutura de telecomunicações, quase todos os prédios municipais e governamentais, centros comerciais, industriais e agrícolas, quase metade de todas as estradas, mais de 60% das 439.000 casas de Gaza, 68% dos edifícios residenciais — o bombardeio da torre Al-Taj na Cidade de Gaza em 25 de outubro matou 101 pessoas, incluindo 44 crianças e 37 mulheres, e feriu centenas — e pulverizou campos de refugiados. O ataque ao campo de refugiados de Jabalia em 25 de outubro matou pelo menos 126 civis, incluindo 69 crianças, e feriu 280. Israel danificou ou destruiu as universidades de Gaza, que agora estão todas fechadas, e 60% de outras instalações educacionais, incluindo 13 bibliotecas. Também destruiu pelo menos 195 locais de patrimônio, incluindo 208 mesquitas, igrejas e os Arquivos Centrais de Gaza, que continham 150 anos de registros e documentos históricos.

Os aviões de guerra, mísseis, drones, tanques, projéteis de artilharia e canhões navais de Israel pulverizam diariamente Gaza — que tem apenas 32 quilômetros de comprimento e oito de largura — em uma campanha de terra arrasada não vista desde a guerra no Vietnã. Ele lançou 25.000 toneladas de explosivos — equivalente a duas bombas nucleares — em Gaza, com muitos alvos selecionados por Inteligência Artificial. Lança munições não guiadas (“bombas burras”) e bombas de 1 tonelada, “perfuradoras de bunker” em campos de refugiados e centros urbanos densamente povoados, bem como nas chamadas “zonas seguras” — 42% dos palestinos mortos estavam nessas “zonas seguras” onde foram instruídos por Israel a fugir. Mais de 1,7 milhão de palestinos foram deslocados de suas casas, obrigados a buscar refúgio em abrigos superlotados da UNRWA, corredores e pátios de hospitais, escolas, tendas ou ao ar livre no sul de Gaza, muitas vezes vivendo ao lado de poças fétidas de esgoto bruto.

Israel matou pelo menos 32.705 palestinos em Gaza, incluindo 13.000 crianças e 9.000 mulheres. Isso significa que Israel está matando até 187 pessoas por dia, incluindo 75 crianças. Matou 136 jornalistas, muitos – se não a maioria deles – deliberadamente alvejados. Matou 340 médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde — 4% do pessoal de saúde de Gaza. Esses números não refletem o quadro real de mortes, uma vez que apenas são contdos os mortos registrados em necrotérios e hospitais, a maioria dos quais não funcionam mais. O número de mortos, quando se incluem os desaparecidos, é bem superior a 40.000.

Os médicos são obrigados a amputar membros sem anestesia. As pessoas com condições médicas graves — câncer, diabetes, doenças cardíacas, renais — morreram por falta de tratamento ou morrerão em breve. Mais de cem mulheres dão à luz todos os dias, com pouca ou nenhuma assistência médica. Os bortos espontâneos aumentaram em 300%. Mais de 90% dos palestinos em Gaza sofrem de insegurança alimentar grave, com pessoas comendo ração animal e grama. Crianças estão morrendo de fome. Escritores, acadêmicos, cientistas palestinos e seus familiares foram rastreados e assassinados. Mais de 75.000 palestinos foram feridos, muitos dos quais ficarão aleijados para o resto da vida.

“70% das mortes registradas foram de mulheres e crianças,” escreve Francesca Albanese, a Relatora Especial sobre a situação dos direitos humanos no Território Palestino ocupado desde 1967, em seu relatório emitido em 25 de março. “Israel não foi capaz de provar que os restantes 30%, ou seja, os homens adultos, eram combatentes ativos do Hamas — uma condição necessária para que fossem alvejados legalmente. No início de dezembro, os assessores de segurança de Israel afirmaram ter matado “7.000 terroristas” em uma fase da campanha em que menos de 5.000 homens adultos no total haviam sido identificados entre as vítimas, implicando assim que todos os homens adultos mortos eram “terroristas”.

Israel usa truques linguísticos para negar a qualquer pessoa em Gaza o status de civil e a qualquer edifício — incluindo mesquitas, hospitais e escolas — status protegido. Todos os palestinos são rotulados como responsáveis pelo ataque em 7 de outubro ou descartados como escudos humanos para o Hamas. Todas as estruturas são consideradas alvos legítimos por Israel porque são supostamente centros de comando do Hamas ou alegadamente abrigam combatentes do Hamas.

Essas acusações, escreve Albanese, são um “pretexto” usado para justificar “o assassinato de civis sob o manto de uma legalidade aparente, cuja abrangência total expõe intenção genocida”.

Em escala, não vimos um ataque aos palestinos dessa magnitude, mas todas essas medidas — o assassinato de civis, o desapossamento de terras, detenção arbitrária, tortura, desaparecimentos, restrições impostas a cidades e vilarejos palestinos, demolições de casas, revogação de permissões de residência, deportação, destruição da infraestrutura que mantém a sociedade civil, ocupação militar, linguagem desumanizadora, roubo de recursos naturais, especialmente aquíferos — têm há muito tempo definido a campanha de Israel para erradicar os palestinos.

A ocupação e o genocídio não seriam possíveis sem os Estados Unidos, que dão a Israel US$ 3,8 bilhões em assistência militar anualmente e agora estão enviando outros US$ 2,5 bilhões em bombas, incluindo 1.800 bombas de 1 tonelada MK84, 500 bombas de 250 kg. MK82 e aviões de combate. Isso, também, é nosso genocídio.

O genocídio em Gaza é a culminação de um processo. Não é um ato. O genocídio é o desenlace previsível do projeto colonial de assentamento de Israel. Está codificado no DNA do Estado de apartheid de Israel. É onde Israel queria acabar.

Os líderes sionistas são francos sobre seus objetivos.

O ministro da defesa de Israel, Yoav Gallant, após 7 de outubro, anunciou que Gaza não receberia “nenhuma eletricidade, nenhum alimento, nenhuma água, nenhum combustível”. O ministro das relações exteriores de Israel, Israel Katz, disse: “Ajuda humanitária para Gaza? Nenhum interruptor elétrico será ligado, nenhuma hidrante de água será aberta.” Avi Dichter, o ministro da Agricultura, referiu-se ao assalto militar de Israel como “a Nakba de Gaza”, referindo-se à Nakba, ou “catástrofe”, que entre 1947 e 1949, expulsou 750.000 palestinos de suas terras e viu milhares massacrados por milícias sionistas. O membro do Likud da Knesset israelense Revital Gottlieb postou em sua rede social: “Derrubar prédios!! Bombardear sem distinção!!… Arrasar Gaza. Sem misericórdia! Desta vez, não há espaço para misericórdia!” Para não ficar para trás, o ministro do patrimônio Amichai Eliyahu apoiou o uso de armas nucleares em Gaza como “uma das possibilidades”.

A mensagem da liderança israelense é inequívoca. Aniquilar os palestinos da mesma forma que aniquilamos os nativos americanos, os australianos aniquilaram os povos das Primeiras Nações, os alemães aniquilaram os herero na Namíbia, os turcos aniquilaram os armênios e os nazistas aniquilaram os judeus.

Os detalhes são diferentes. O processo é o mesmo.

Não podemos alegar ignorância. Sabemos o que aconteceu com os palestinos. Sabemos o que está acontecendo com os palestinos. Sabemos o que acontecerá com os palestinos.

Mas é mais fácil fingir. Fingir que Israel permitirá a entrada de ajuda humanitária. Fingir que haverá um cessar-fogo. Fingir que os palestinos voltarão para suas casas destruídas em Gaza. Fingir que Gaza será reconstruída. Fingir que a Autoridade Palestina administrará Gaza. Fingir que haverá uma solução de dois Estados. Fingir que não há genocídio.

O genocídio, que os EUA estão financiando e sustentando com envios de armas, diz algo não apenas sobre Israel, mas sobre nós, sobre a civilização ocidental, sobre quem somos como povo, de onde viemos e o que nos define. Diz que toda a nossa moralidade autoexaltada e respeito pelos direitos humanos é uma mentira. Diz que pessoas não brancas, especialmente quando são pobres e vulneráveis, não contam. Diz que suas esperanças, sonhos, dignidade e aspirações por liberdade não têm valor. Diz que garantiremos a dominação global por meio de violência racializada.

Essa mentira — que a civilização ocidental é baseada em “valores” como respeito pelos direitos humanos e pelo Estado de direito — é uma que os palestinos, e todos aqueles no Sul Global, bem como os povos originários americanos e os afro-americanos e latinos, conhecem há séculos. Mas, com o genocídio de Gaza transmitido ao vivo, essa mentira é impossível de sustentar.

Não interrompemos o genocídio de Israel porque somos Israel, infectados pelo supremacismo branco e intoxicados por nossa dominação da riqueza global e o poder de obliterar outros com nossas armas industriais. Lembre-se do colunista do The New York Times, Thomas Friedman, dizendo a Charlie Rose na véspera da guerra no Iraque que os soldados americanos deveriam ir de casa em casa de Basra a Bagdá e dizer aos iraquianos “chupem aqui”! Esse é o verdadeiro credo do império dos EUA.

O mundo fora das fortalezas industrializadas do Norte Global está ciente de que o destino dos palestinos é o destino deles. À medida que a mudança climática ameaça a sobrevivência, à medida que os recursos se tornam escassos, à medida que a migração se torna um imperativo para milhões, à medida que as colheitas agrícolas diminuem, à medida que as áreas costeiras são inundadas, à medida que as secas e incêndios florestais proliferam, à medida que os Estados fracassam, à medida que movimentos de resistência armada surgem para lutar contra seus opressores junto com seus representantes, o genocídio não será uma anomalia. Será a norma. Os vulneráveis e pobres da terra, aqueles que Frantz Fanon chamou de “os deserdados da terra”, serão os próximos palestinos.

Gaza. Motaz Azaiza fotografa seu próprio bairro destruído.

 

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