No IHU
Moni Ovadia é muitas coisas. Ator, cantor, músico, escritor. Acima de tudo, é um espírito livre, uma consciência crítica que sabe ir contra a corrente, contra o pensamento único veiculado pela comunicação dominante. Sobre Israel, por exemplo. Contra o sionismo. “Como judeu, digo: o que está sendo cometido contra o povo palestino é um etnocídio”.
A entrevista é de Umberto de Giovannangeli, publicada por l’Unità, 02-04-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Salomone ‘Moni’ Ovadia é um ator, músico, cantor e autor teatral italiano nascido na Bulgária. Suas apresentações teatrais lembram o mundo perdido da cultura judaica oriental, seu núcleo iídiche, com seu profundo “fardo de dor, sabedoria e loucura”, como era antes das devastações do Holocausto cancelá-lo e assassinar quase metade dos falantes mundiais de iídiche (1).
Eis a entrevista.
Quem define como genocídio o que está acontecendo em Gaza é acusado de antissemitismo.
Isso é uma bobagem colossal. Uma acusação vergonhosa. O antissemitismo é um crime grave que consiste nisto: odiar os judeus porque são judeus. Não pelo que fazem, mas por quem são. Essa é a diferença. Os nazistas deportaram também heróis de guerra alemães da Primeira Guerra Mundial porque eram judeus. Isso é antissemitismo. Mas criticar alguém pelo que faz é algo completamente diferente.
É o caso de Gaza?
Absolutamente sim. O governo de Israel está levando a cabo uma operação que alguns consideram ter uma natureza genocida. Eu estou entre eles. E é a consequência de sempre ter pensado num etnocídio.
Explique essa grave acusação.
Etnocídio significa apagar pessoas como povo. Os governos israelenses queriam apagar a identidade dos palestinos como povo. Eles permaneceriam em Israel como párias, nos bantustões. Agora o etnocídio está assumindo um aspecto genocida. Porque não se pode deixar morrer pessoas, idosos, mulheres, crianças de fome e de sede. Sem remédios. Mulheres que se submetem a uma cesariana sem anestesia. Com um cinismo, uma ferocidade, uma brutalidade. Tudo isso, dizem, seria a continuação de 7 de outubro. Mas a história não começou naquele dia. Isso é uma falsificação. Um monte de mentiras que circulam na grande mídia. Eles sabem onde podem colocar a acusação de antissemitismo. Se me acusarem de antissemitismo, poderia reagir de forma descontrolada.
Como ousam! Eu sou judeu como os outros judeus. Os sionistas são outra coisa.
O que significa?
Comecei a me chamar primeiro de não sionista e agora me defino como antissionista. O sionismo está levando à destruição do status ético-espiritual do judaísmo. Se o judaísmo é reduzido a um nacionalismo furioso, histérico, que idolatra uma terra, isso é contra o espírito do judaísmo.
O que está acontecendo em Gaza tem aspectos de uma crueldade aterradora. Alguns ministros israelenses, verdadeiros fascistas, declararam-no abertamente. O dedo acusador é apontado para aqueles que ousam pronunciar a palavra genocídio. Enquanto isso, matam-se crianças aos milhares, são deixadas morrer de fome, mas falar genocídio, minha senhora, que vergonha… Um horror sem limites. Com os soldados circulam fotos e vídeos, que depois de combater, descansam, postam selfies em poses triunfantes, com roupas íntimas femininas expostas como troféus de guerra. Com alegria.
Se um dia um tribunal da história perguntar o que vocês fizeram lá, o que dirão os soldados israelenses, estávamos obedecendo ordens? Mas como se pode fazer algo assim? Quanto ao 7 de outubro, não houve uma investigação independente. Declarações partidárias. É preciso que seja realizada uma investigação independente, mas o governo israelense faz de tudo para evitá-la. O governo liderado por Benjamin Netanyahu. Penso o pior possível sobre ele, mas não que seja uma excrescência tumoral num corpo saudável. Uma maçã podre em uma cesta de frutas suculentas. Não, não é isso. Netanyahu é a verdadeira face do sionismo. Não é uma deriva. Digo isso porque a Nakba foi realizada por Ben Gurion, não por Netanyahu. E a Nakba foi o primeiro ato de limpeza étnica, documentado por respeitados historiadores israelenses como Ilan Pappé.
Os israelenses movimentaram-se com uma gigantesca propaganda, a hasbara, com um monte de mentiras que nunca vi na minha vida. Já no tempo de Ben Gurion houve uma votação em que os israelenses optaram por não definir as fronteiras do Estado. Por que não fazer isso?
Pergunta pertinente. E que resposta foi dada?
Evidentemente porque se deseja ampliá-las, certamente não restringi-las. Já então pensavam em explorar todas as situações possíveis para tirar as terras aos palestinos, como tinham feito com a Nakba: casas, oliveiras. Violaram todas as resoluções internacionais. Todas. Aquelas da ONU, as convenções de guerra, as regras do direito humanitário… E depois chegaram, sem vergonha, a definir os territórios palestinos como territórios disputados. Mas desde quando!
E a comunidade internacional?
Três quartos da comunidade internacional pensam assim. Mas não conta. Conta somente o Ocidente. O Ocidente é totalmente cúmplice, porque permitiu que Israel pisoteasse a legalidade internacional. Aquela legalidade que os governos israelenses sempre demonstraram desprezar. O único líder israelense que perdeu a vida foi Yitzhak Rabin. Por ter ousado tentar uma paz, ainda que imperfeita, foi morto por um extremista israelense. Não era antissemitismo quando aqueles do Likud, Netanyahu na frente, representavam Rabin com o uniforme de SS e a braçadeira com a suástica!!! Mas não ouvi nenhum grito de antissemitismo.
Lamento dizer que, com exceção de alguns grupos extraordinários, como o B’tselem, os refusnik, o Breaking the Silence, pelos quais tenho um respeito sagrado, não houve nenhuma verdadeira oposição em Israel. Viveram cinquenta anos com um povo, o palestino, submetido a um regime aterrador. Quem está dizendo isto não sou eu, Moni Ovadia, que não conta nada. Quem o diz é Gideon Levy, o jornalista israelense mais informado, de quem meritoriamente L’Unità publica artigos corajosos e esclarecedores que colocam em crise a convicção, própria também dos chamados moderados de esquerda, que Israel ainda seria uma democracia.
Uma democracia não sujeita um povo àquilo a que o povo palestino foi obrigado: intimidações, humilhações, prisões arbitrárias, torturas… Estou furioso. E Israel, quem o governa, diz que representa todos os judeus. A mim de forma alguma me representa! Eu sou um judeu da diáspora, estou ligado à cultura e à espiritualidade judaicas, mas o sionismo é um nacionalismo idólatra e, como tal, antijudaico. E não sou o único que pensa assim. Pensam assim também rabinos e até judeus ortodoxos. O exército israelense deve ser obrigado a se retirar imediatamente. Não se trata de deixar passar as ajudas humanitárias: bloqueiam os alimentos e fazem-no de forma engenhosa, porque o seu objetivo é cancelar os palestinos como povo. E por trás disso há razões também econômicas…
Quais seriam?
Há gás no mar de Gaza. E já começaram as especulações para definir lotes ao longo do mar de Gaza.
A acusação de antissemitismo tornou-se um porrete para silenciar pessoas respeitáveis, honestas, que falam apenas porque cultivam sentimentos de humanidade e justiça. Falo por mim, falo de mim. Que interesse eu tenho? Pelas minhas posições de apoio o povo palestino, só sofri prejuízos. Agora na televisão têm medo de me convidarem. Porque é assim que eu falo. Num debate na televisão, por exemplo, fui chamado até de antissemita. Uma pessoa que provavelmente nunca leu uma linha sequer dos grandes ensaios que descrevem as coisas, a começar por Chomsky e Pappé. E, além disso, tenho que ouvir jornalistas na televisão que repetem, meio incrédulos meio escandalizados, mas o que se quer imputar a Israel? O quê?
O direito internacional pode responder a isso! Com Israel, o Ocidente destruiu o direito internacional. Não somos extremistas. Somos simplesmente humanos. Algo que outros começam a não ser mais, a não ter mais aquele status que atribuíamos ao homem, na minha opinião erroneamente, a famosa humanidade.
Mas o que a humanidade deveria te dizer? Que o teu próximo tem a tua mesma dignidade. Os israelenses estão cometendo um dos maiores crimes que podem ser cometidos: punições coletivas. A destruição do princípio mais elementar do direito. É possível que estejamos todos tão cegos, tão acovardados a ponto de não gritar? Pessoas como eu não podem falar, ou se as convidam acidentalmente, colocam um bando de buldogues em volta delas que tentam silenciá-las a golpes de “aqui está o antissemita”, “o amigo do Hamas”. E agora criminalizam também os estudantes que, diante do massacre de Gaza, têm a coragem e a determinação de se mobilizar, manifestar-se, transformar a indignação em luta. Estou com eles. E com aqueles docentes e com as universidades que se recusaram a participar de um edital para a cooperação científica com Israel num campo em que a aplicação militar está em pauta. Onde estaria o escândalo? Ao recusar-se a assistir em silêncio ou até cooperar no etnocídio de um povo? Além disso, há outra vergonha sobre a qual se fica em silêncio.
Qual?
O que fazem os cerca de meio milhão de colonos na Cisjordânia? Não há o Hamas lá. São todas desculpas. Armados até os dentes. Cospem nas crianças, assaltam os vilarejos palestinos, queimam as oliveiras. A humanidade realmente fechou os olhos. E o Ocidente enche a boca com a palavra direitos. Direitos de quem? Quando a guerra estourou, hospedei três ucranianos na minha casa. Ficaram oito meses e agora virão passar as férias conosco, enfim estabeleceram uma relação familiar.
Eu disse isso na televisão: os refugiados sírios, por que vocês não os deixaram acolher? Vocês se comportam assim porque são racistas, porque não são de raça branca caucasiana. Os sírios, com tudo que sofreram. A retórica de um Ocidente que já está podre. Lembremos que 60% da humanidade está do outro lado. E é contra o Ocidente, esse Ocidente hipócrita, como mostrou a África do Sul que levou Israel à Corte Internacional de Justiça, de Haia. Há alguém que possa falar mais sobre apartheid do que os sul-africanos? No futuro, o Ocidente não terá mais o direito de abrir a boca. Com os estadunidenses que continuam a bancar os mocinhos. Porque ninguém os sancionou quando mataram um milhão entre iraquianos e afegãos numa guerra ilegal. Agora chega, com uma narrativa miseravelmente presunçosa do Ocidente bom e justo, em apoio à sua ramificação no Médio Oriente, Israel, chega da insuportável política de dois pesos e duas medidas, com a inversão dos papéis entre vítima e carrasco. Realmente chega. Grito isso como uma pessoa que ainda possui um pingo de humanidade. Eu grito isso como judeu antissionista.
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Jovem palestina presa sob os escombros de sua casa bombardeada por Israel, no campo de refugiados de Al Nusairat, Gaza. Foto de Motaz Azaiza premiada como uma das melhores de 2023 pela revista Time.