Nota do Cimi: solução para crise Guarani e Kaiowá é demarcação de terras, como manda a Constituição

Sem mencionar demarcação de terras indígenas, presidente Lula propôs ao governador do Mato Grosso do Sul que comprassem áreas para alocar famílias Guarani e Kaiowá

Cimi

Em discurso proferido nesta sexta-feira (12) em um evento realizado em um frigorífico da JBS, em Campo Grande (MS), Lula propôs ao governador ruralista Eduardo Riedel que comprassem “em sociedade” uma terra para “salvar aqueles Guarani que vivem perto de Dourados, na beira da estrada”. Basta, nas palavras do presidente, que o governador lhe telefone quando encontrar as fazendas para serem adquiridas para alocar os indígenas em situação de extrema vulnerabilidade.

O discurso do presidente Lula imediatamente provocou revolta nas lideranças indígenas e em uma ampla gama de aliados dos povos originários. O presidente propôs a compra de terras tradicionalmente ocupadas para os Guarani, no lugar da demarcação de terras nos moldes que determina a Constituição Federal. É fato que Lula sabe que essa possibilidade, além de ser explicitamente vedada pelos incisos 1 e 6 do artigo 231 da Constituição, jamais será capaz de atender às necessidades básicas e essenciais dos Kaiowá e Guarani. Inclusive tendo em vista, por exemplo, todas as problemáticas existentes nas oito reservas criadas pelo antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI).

Em 2004, em discurso realizado durante cerimônia de homologação de terras indígenas, o presidente Lula demonstrou estar plenamente consciente da dívida histórica junto aos povos Kaiowá e Guarani e dos interesses políticos e econômicos que  mantêm estes povos sob uma constante, perversa e intencional crise humanitária no estado do Mato Grosso do Sul.

Vinte anos depois, agora em seu terceiro mandato, o presidente Lula realizou um discurso que abre margem para interpretações que invertem a ordem constitucional, no que diz respeito ao direito originário que os povos indígenas têm à demarcação de suas terras tradicionalmente ocupadas.

Ao invés de propor a compra de terras para indígenas, Lula poderia propor, como fez há vinte anos, a aquisição de terras não tradicionais para assentar os não indígenas de boa fé que eventualmente tenham recebido títulos do Estado e que serão impactados pela demarcação das terras indígenas. Conforme destacado por Lula, o governo federal já promoveu o reassentamento de famílias impactadas e tal solução está totalmente protegida pela legislação.

Seu interlocutor direto, o ex-presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Mato Grosso do Sul (Famasul), um dos idealizadores do “Leilão da resistência” – que pretendia armar fazendeiros contra as comunidades indígenas – e atual governador do estado, Eduardo Riedel, aproveitou a fala de Lula para reforçar seu apoio à proposta inconstitucional e inviável. Em vídeo divulgado nas redes sociais, Riedel também reforçou a necessidade de se dar uma “sequência definitiva” para esta proposta no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Legislação.

De fato, como já afirmou Lula, os Kaiowá e Guarani resistem há séculos, e sua dignidade se assenta, sobretudo, em seu sentido de pertencimento à terra. Em defesa de tal necessidade, os Guarani já enfrentaram incontáveis episódios de guerras e conflitos – inclusive, em defesa de suas terras, lutaram contra as duas maiores potências mundiais do período colonial, Espanha e Portugal. Essa resistência não é coisa do passado. Ela se manifesta no tempo presente com o mesmo ímpeto, e sobre exatamente os mesmos territórios outrora defendidos e habitados. Portanto, para os Guarani e Kaiowá, como povos, a resistência manifestada através de autodemarcações e retomadas de terras não é uma novidade.

Os Kaiowá e Guarani nos ensinam que sobre as terras que tradicionalmente sempre ocuparam existe o “ore rekohaty”, isto é, que o sentido de sua existência e identidade enquanto povos distintos se constitui em pertencer a uma terra determinada, inalienável, imprescritível e cujo vínculo jamais se perde. Ao contrário dos não indígenas e a lógica de propriedade da terra que tentam impor, os Guarani pertencem à terra, e não o contrário. Isso é um elemento constitutivo social que interliga povos indígenas do mundo todo.

Lula, seu governo, todos os fazendeiros e todos os empreendimentos sobre terras tradicionais dos Guarani deveriam compreender que a reivindicação deles não será jamais momentânea. Que mesmo distantes de seus territórios, seu sentido de pertencimento a eles é incondicional, inegociável e transmitido de geração em geração. E que basta uma mínima mudança na correlação de forças para que sua resistência e suas ações autodeterminadas se manifestem e confirmem seu caráter permanente. Portanto, a experiência histórica confirma que a única solução para acabar com os conflitos causados aos Guarani é a total e definitiva devolução dos territórios que seu sentido existencial de pertencimento histórico reivindica.

Uma solução efetiva da crise humanitária intencionalmente imposta aos Kaiowá e Guarani passa pelos seguintes passos:

  1. Demarcar de todos os territórios tradicionalmente reivindicados e ocupados pelos Kaiowá e Guarani. Levantamentos preliminares da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) apontam que essas terras somarão menos de 3% (cerca de 900 mil hectares) do atual território do Mato Grosso do Sul (que possui 35 milhões de hectares), e que representam menos de 10% do que um dia foi o território desses povos, que habitam milenarmente essas terras e conformam o segundo maior povo indígena do país. Cabe ressaltar que o setor da pecuária, representado pelo frigorífico onde Lula discursou, ocupa mais de 60% das terras do estado;
  2. Agir, por meio das múltiplas possibilidades políticas e jurídicas do poder Executivo, junto ao poder Judiciário, para tornar inconstitucional toda a Lei 14.701/2023, conhecida como “Lei do Marco Temporal”, e adotar como parâmetro para a demarcação de terras indígenas a Constituição Federal e a decisão do STF no Tema 1031, de repercussão geral, em que a Corte julgou inconstitucional a tese do marco temporal;
  3. Garantir os recursos financeiros e técnicos necessários para realizar a identificação, declaração e homologação de todas as terras Kaiowá e Guarani há décadas pendentes, cuja negligência tem sido um dos fatores determinantes para o genocídio sofrido pelo povo. Lembrando que este planejamento é de plena consciência da Funai e foi reafirmado pelos próprios Kaiowá ao órgão indigenista e ao Ministérios dos Povos Indígenas (MPI) ainda no início do governo;
  4. Ordenar ao ministro Ricardo Lewandowski a declaração imediata da Terra Indígena Ypoi – Triunfo, que se encontra há um ano sem sinal de andamento junto ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJ), depois de décadas negligenciada no âmbito da Funai. Da mesma maneira, garantir a célere tramitação, da Funai para o MJ, dos territórios Kaiowá e Guarani cujas contestações já foram analisadas;
  5. Providenciar os meios e garantir recursos e terras necessários para o realocamento de pessoas de boa-fé, não envolvidas em conflitos armados contra os Guarani e Kaiowá e que foram impactadas pelo processo de demarcação.

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) reafirma seu compromisso irrestrito com os povos Kaiowá e Guarani na defesa de suas vidas e territórios, bem como de todos os povos indígenas do país, que aguardam que o governo federal avance de forma efetiva e significativa na demarcação de suas terras tradicionalmente ocupadas.

Brasília (DF), 15 de abril de 2024

Conselho Indigenista Missionário – Cimi

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