Uma pesquisa feita com obstetras e residentes de um hospital escola ajuda a compreender qual o ponto de vista da classe em relação ao tema. Formação para o procedimento é muito escassa, e moralismo contribuiu para travar a garantia do direito
por Gabriela Leite, Outra Saúde
O debate sobre descriminalização do aborto no Brasil em todos os casos segue extremamente relevante. Mas o avanço do moralismo conservador está provocando derrotas até para a garantia da interrupção da gravidez em casos já previstos em lei. É o caso da resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) do início de abril, que na prática, inviabiliza que o aborto seja feito em mulheres vítimas de estupro, se a gestação passa de 22 semanas. Mas o CFM não está acima da lei brasileira, como bem lembrou Angela Freitas, coordenadora da campanha Nem Presa Nem Morta, em entrevista ao Outras Palavras TV na quinta-feira (16/5).
Na última sexta, o ministro do STF Alexandre de Moraes tomou decisão que vai ao encontro da fala de Angela e da defesa do direito ao aborto legal. Ele suspendeu a resolução que restringe o procedimento, até que a questão seja julgada no plenário da suprema corte, no dia 31/5. Sua ação foi provocada por uma proposição do Psol e da Anis, Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. Moraes entende que o CFM ultrapassou sua competência, pois a lei brasileira não determina prazo para realizar o aborto nos casos de estupro, risco à vida da gestante ou anencefalia fetal.
Para entender melhor a situação da não garantia de um direito legal, recomendamos enfaticamente um artigo recém-publicado na Cadernos de Saúde Pública (CSP), parceira editorial de Outra Saúde. “O aborto legal em casos de gravidez decorrente de violência sexual: percepções e vivências de médicas e médicos obstetras”, de pesquisadoras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), dá subsídios de peso para a compreensão de como a classe médica encara essa questão – e quais os entraves para a garantia de fato do aborto em casos de estupro.
O artigo descreve um estudo realizado em uma maternidade escola federal, referência em medicina fetal. Teve como objetivo ouvir os médicos responsáveis pela realização de aborto nos casos previstos em lei, para analisar suas percepções sobre o tema. Responderam a um questionário inicial 36 profissionais, sendo 12 obstetras e 24 residentes. Eram 83% mulheres, em sua maioria brancas e de até 30 anos. Mais de 80% declararam seguir alguma religião, embora apenas 29% destes admitam ser de fato praticantes.
Entre os ginecologistas e residentes consultados, 5 afirmaram não ter tido nenhum contato com o aborto em sua formação profissional. Outros 58% informam que tiveram contato insuficiente até o momento. Todos declaram já ter prestado assistência a mulheres em situação de violência sexual, e 32 já realizaram ou se envolveram diretamente no procedimento de interrupção da gravidez. Para um aprofundamento, seis dos médicos que participaram do questionário foram entrevistados.
A questão da formação para a realização do aborto é uma falha percebida pelos médicos e pode ser um ponto importante a ser abordado, se queremos evitar o sofrimento de mulheres que buscam os serviços de saúde. Entre os entrevistados, foi unânime a percepção da ausência de aprendizado sobre o procedimento durante a graduação em ginecologia – eles só aprenderam sobre a prática durante a residência. Os médicos afirmam sentir falta dessa formação, não só para a técnica, mas também para o manejo do atendimento – algo essencial, considerando que as pacientes foram vítimas de violência sexual e estão em uma posição muito vulnerável no momento em que buscam o hospital.
O estudo chama a atenção também para outra barreira muito delicada na relação médico-paciente. Seja por objeção moral ou por medo de infringir alguma lei, alguns dos entrevistados mostraram-se impelidos a ocupar o papel de investigadores: estará a vítima falando a verdade sobre ter sido estuprada? Não é algo que cabe a eles: apenas a palavra da mulher deveria ser suficiente para a realização do aborto. Mas o que acontece é que muitas delas veem-se na obrigação de ter de convencer a equipe médica do abuso que passaram. Um dos entrevistados para a pesquisa mostrou-se especialmente desconfiado, afirmando inclusive que as mulheres chegariam ao hospital “treinadas” para mentir e garantir o procedimento. Mais um argumento para a legalização do aborto em todos os casos, diga-se.
O aspecto moral é bastante discutido no artigo. Isso porque é algo que atravessa os profissionais, na hora de atenderem as pacientes. É aí que entra a discussão sobre o papel da “objeção de consciência”, dispositivo presente no Código de Ética Médica que diz respeito ao “direito do médico não praticar condutas que estejam em desacordo com seus valores individuais”. Mas o artigo discute que não se trata de um direito absoluto, que pode se sobrepor ao direito das pacientes de terem acesso a um procedimento médico. “Por essa perspectiva”, argumentam as autoras, “pode-se pensar em estratégias, como medidas administrativas de acomodação interna dos serviços de saúde e arranjos institucionais das equipes, que visem escutar e acolher o sofrimento e as angústias dos profissionais que declaram objeção de consciência, sem negligenciar a assistência à mulher vítima de violência sexual”.
A objeção de consciência costuma ter como justificativa um suposto “direito à vida” do feto, mas estudos apontados pelo artigo indicam que a questão é muito mais profunda. Está enraizada nas estruturas patriarcais da sociedade – o que, inclusive, ajuda a explicar o motivo pelo qual muitos médicos não se opõem a fazer o aborto em casos de anencefalia ou risco à vida materna. Autores citados pelo artigo argumentam que “a pouca discussão do tema no campo da saúde e da formação diz respeito à naturalização da violência contra a mulher no país, e mais especificamente sobre a invisibilidade da violência sexual”.
No contato médico-paciente, é necessário também destacar que há uma relação de poder, em que um lado pode legitimar ou não o discurso do outro. O artigo pondera que a decisão do médico não será baseada apenas “na história objetiva dos fatos, mas do que se espera socialmente de uma vítima de violência sexual”. É por isso que as autoras defendem uma reformulação dos serviços de aborto legal no Brasil, sob uma ótica feminista – que começa na escuta das pacientes. “No contexto dos serviços de aborto legal, podemos entender que se oferecer em posição de escuta às mulheres vítimas de violência sexual compreende uma estratégia de humanização do cuidado, que visa se aproximar das vivências de mulheres muitas vezes estigmatizadas nos serviços de saúde”, conclui.
Qualificar os serviços de aborto legal no Brasil é de extrema importância, mas também é preciso que eles sejam expandidos. O artigo cita algumas pesquisas de mapeamento do serviço no país, feitas em anos diferentes, e a situação é bastante preocupante. O acesso é, em geral, restrito às grandes cidades, em especial na região Sudeste. Mais da metade das mulheres em idade fértil do território brasileiro estão em municípios sem serviços de aborto legal. Os próprios entrevistados do estudo têm a percepção de que “há poucas instituições de saúde prestando esse tipo de intervenção” e muitas mulheres precisam passar por “uma peregrinação por diversos serviços de saúde” até conseguir realizar um aborto.
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Imagem: Mulheres fazem protesto no Rio de Janeiro pela legalização do aborto. Créditos: Fernando Frazão/Agência Brasil