Pré-Fospa: Amazonas e Roraima se preparam para XI edição do Fórum Social Pan-Amazônico que acontecerá na Bolívia

Os Pré-Fospas realizados em Manaus e Boa Vista reuniram representantes de 80 organizações da sociedade civil; os temas serão abordados nessa e em outras reportagens

POR LÍGIA APEL, DA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CIMI REGIONAL NORTE 1

“Sabendo que a união faz a força, desde 2002 pessoas e grupos criaram um espaço de articulação para proteger o que tem sido chamado de ‘pulmão’ do Planeta”, essa foi a perspectiva de criação do Fórum Social Pan-Amazônico (FOSPA) que se consolidou como um espaço de articulação, ação e reflexão relacionado à bacia amazônica que atravessa Brasil, Peru, Bolívia, Equador, Colômbia, Venezuela, República Cooperativa da Guiana, Suriname e Guiana (francesa), países que compõe o grande e diverso bioma amazônico.

Desde a sua criação, o Fospa foi realizado no Brasil, Venezuela, Colômbia, Peru e Bolívia. Esse ano, em sua 11ª Edição, o Fospa 2024 acontecerá nas cidades bolivianas de Rurrenabaque e San Buenaventura, no departamento de La Paz, nos dias 12 a 15 de junho, deste ano.

“Sabendo que a união faz a força, desde 2002 pessoas e grupos criaram um espaço de articulação para proteger o que tem sido chamado de ‘pulmão’ do Planeta”

Sempre que um Fospa é agendado, as regiões e estados amazônicos se mobilizam em Comitês nacionais ou regionais compostos por diferentes instituições, organizações, movimentos sociais e comunidades, e realizam os Pré-Fospas em seus países e localidades para preparar, articular, socializar e divulgar o Fospa e os temas que cada rincão da Amazônia levará para o grande debate. Dessa forma, o Fospa “não se reduz a um encontro internacional de poucos dias, mas envolve todo um processo de preparação tanto do país anfitrião como para os demais países participantes”, explica sua coordenação.

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Norte I participou dos Comitês que organizaram os Pré-Fospas em Manaus (AM) e Boa Vista (RR), ambos realizados no dia 11 de maio, último. Em Manaus, o evento aconteceu no auditório do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPA) e trouxe os temas: povos indígenas e territorialidades amazônicas, mulheres, comunicação para a Amazônia e Mãe Terra. Em Roraima, se realizou na Casa das Pastorais Sociais e discutiu sobre povos indígenas e territorialidades amazônicas, mãe terra, extrativismo e alternativas, e mulheres.

Contando com 80 organizações e mais de 150 pessoas representantes da sociedade civil, os participantes dos dois Pré-Fospas traçaram as linhas mestras que estruturam soluções para as necessidades urgentes de proteção da Amazônia.

“Fospa não se reduz a um encontro internacional de poucos dias, mas envolve todo um processo de preparação tanto do país anfitrião como para os demais países participantes”

Conhecimentos entrelaçados

Para o Comitê Local de Manaus, “o Pré-Fospa é mais que um evento. É um espaço de diálogo e reflexão, onde diferentes vozes se unem em busca de uma Amazônia justa”, afirmaram ao acolher organizações indígenas e indigenistas, mulheres, negros, comunicadores, pastorais e a comunidade científica.

O INPA recebeu o encontro buscando a união dos conhecimentos científicos e tradicionais, todos com suas válidas formas de ser e fazer ciência e que ecoam suas vozes em defesa da Amazônia e seus povos, como destaca Henrique dos Santos Pereira, diretor do Instituto.

“É um encontro necessário dos movimentos sociais que fazem o enfrentamento, a luta em defesa dos direitos territoriais”

“É um encontro necessário dos movimentos sociais que fazem o enfrentamento, a luta em defesa dos direitos territoriais com o INPA. Abrigar o Pré-Fospa é dar um sinal para os dois lados desse diálogo possível e necessário, a ciência e os movimentos sociais, e dizer que a ciência que se quer fazer aqui é para a Amazônia e é para os amazônidas”.

Essa também é a opinião do cacique Jonas Gavião, da Terra Indígena Gavião, localizada em Silves (AM) e que está sendo impactada pela empresa Eneva, que sem consulta ao povo, chegou e se instalou na região, para extração de petróleo e gás natural sem considerar as Terras Indígenas que ali estão. Jonas entende que a união das lutas fortalece os povos porque há compartilhamento de conhecimentos e informações sobre a realidade de cada um.

“A união das lutas fortalece os povos porque há compartilhamento de conhecimentos e informações sobre a realidade de cada um”

“Que a gente possa se unir mais e focar um trabalho coletivo em defesa não só do meu território, mas daqueles territórios que estão na mira da exploração, que nem o potássio lá em Autazes, que nem a exploração de minérios lá na região de Maués. Se a gente se espalhar, vai ficar difícil, mas se a gente se unir vamos ter uma boa oportunidade de falar lá fora e buscar apoio para podermos combater essas coisas dentro do nosso território”, reforça o cacique.

Sem consulta aos povos indígenas da região e com licenciamento do governo do estado do Amazonas, por meio do Instituto de Proteção Ambiental da Amazônia (Ipaam), a Eneva iniciou na quinta-feira, dia 13, a produção de gás natural no chamado campo do Azulão, na Bacia do Amazonas.

“Que a gente possa se unir mais e focar um trabalho coletivo em defesa não só do meu território, mas daqueles territórios que estão na mira da exploração”

Essa situação está incluída no tópico “não proliferação de combustíveis fósseis” que discute Transição Energética no Eixo Temático Extrativismo e Alternativas que, entre outros, será debatido no XI Fospa. A constatação é de que o Estado brasileiro é conivente com os impactos sociais e ambientais, altamente destrutivos, que esse tipo de matriz energética traz. É o que mostra os licenciamentos liberados para empresas como a Eneva, Potássio do Brasil e o banco canadense Forbes & ManhattanBelo Sun (Pará), Mineração Taboca/Mamoré, entre outros conglomerados empresariais que se instalam na Amazônia.

“Se a gente se unir vamos ter uma boa oportunidade de falar lá fora e buscar apoio para podermos combater essas coisas dentro do nosso território”

Mudanças climáticas

Tão danoso quanto a desenfreada exploração de combustíveis fósseis é o avanço de outros setores econômicos sobre a Amazônia, como a mineração, a agropecuária e o transporte que, com suas formas mercantilistas de ver e entender a natureza, têm colocado o bioma no centro mundial das atenções sobre mudanças climáticas.

“A Panamazônia com suas dimensões continentais e diversidade biológica única, tornou-se o epicentro das discussões sobre emergência climática”, afirma o diretor do INPA, que trouxe esse debate para o Pré-Fospa, apontando que as mudanças no clima “representam uma ameaça existencial, com impactos devastadores que já são visíveis em todo o mundo”, evidenciou Henrique com a situação de seca extrema vivida na Amazônia – Amazonas no ano passado e em Roraima, início de 2024.

“A Panamazônia com suas dimensões continentais e diversidade biológica única, tornou-se o epicentro das discussões sobre emergência climática”

Apontando que a Amazônia tem “papel crucial na regulação do clima global”, o pesquisador analisa que a região é vista como solução para um problema que é global e que exige ações coletivas e coordenadas. “O enfrentamento da emergência climática exige abordagem multifacetada, que englobe mitigação e adaptação. A mitigação requer um esforço global coordenado e enfrenta o dilema da ação coletiva em que os países se recusam a assumir compromissos mais ambiciosos de redução das emissões, ou seja, um problema local que requer uma ação global”, preconiza.

Uma das soluções que vem sendo apontadas, Henrique elucida, são os projetos de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD+) e mercado de carbono, mas que enfrentam resistência nas populações da Amazônia. “Soluções baseadas no mercado enfrentam críticas substanciais devido aos riscos de violação dos direitos territoriais e sociais das populações tradicionais e povos indígenas da Amazônia. Esses projetos muitas vezes desconsideram as práticas e conhecimentos tradicionais das comunidades locais, resultando em deslocamentos forçados e marginalização”, apresenta.

“Soluções baseadas no mercado enfrentam críticas devido aos riscos de violação dos direitos territoriais e sociais das populações tradicionais e povos indígenas da Amazônia”

Na bagagem, os representantes do Amazonas e Roraima levam para o Fospa uma série de recomendações. Henrique enumera algumas: 1. Reconhecimento e respeito pelos direitos territoriais e sociais das populações da floresta; 2. Políticas de conservação ambiental; 3. Estratégias de adaptação que considerem necessidades específicas; 4. Combate ao desmatamento e degradação florestal com monitoramento, fiscalização e promoção de atividades econômicas sustentáveis.

Para o diretor do INPA, o Fospa será a oportunidade de “amplificar as vozes e impulsionar a ação coletiva em prol do bem-estar de toda a região”, concluiu.

Conhecedora dessas desconsiderações, a coordenadora da Articulação das Organizações Indígenas do Amazonas (APIAM), Mariazinha Baré, é contundente em seus protestos quando fala dos discursos dos governadores da Amazônia sobre transição da economia amazônica para uma economia com projetos sustentáveis.

“Há alternativas que são sustentáveis do ponto de vista socioambiental, mas não quando o governo do Amazonas vende sonhos em Conferências”

“Há alternativas potenciais que são sustentáveis do ponto de vista socioambiental, sim. Mas, quando o governo do Amazonas vende sonhos em uma Conferência do Clima, em Dubai, fala de bioeconomia, mostra projetos no papel, é bonito, mas são soluções falsas”, protesta, alertando para a contradição do discurso com o apoio do estado a “projetos de exploração dos recursos que são danosos ao meio ambiente”, reforça Mariazinha.

No Fospa, diz a Baré, “vamos denunciar essa contradição”, informa e exemplifica com os projetos de exploração de petróleo e gás que há anos são desenvolvidos na Amazônia e que são predadores socioambientais.

“Vamos denunciar as contradições dos projetos de exploração de petróleo e gás que há anos são desenvolvidos na Amazônia”

“Temos visto o governo apostar em mineração, mas essa atividade no Amazonas não teve sucesso. É só olhar Coari, que 38 anos depois da exploração do petróleo, continua com uma série de problemas básicos, com muita pobreza. Agora esse mesmo ‘desenvolvimento’ está sendo prometido para Silves, onde se explora gás, e em Autazes, no caso do potássio”, afirma.

Representando 66 povos indígenas do Amazonas, Mariazinha é confiante quando afirma que a população indígena sabe o que e como fazer para viver na Amazônia sem depreda-la.

“Somos o berço da civilização nas Américas, o território é nosso, somos originários desse lugar. Estamos com insegurança jurídica sobre nossas terras e precisamos continuar lutando. Precisamos, além da terra preservar a água, os peixes, os animais e a floresta que é de onde a gente retira nossa subsistência”, explicitou.

“Temos visto o governo apostar em mineração, mas essa atividade no Amazonas não teve sucesso”

Para a indígena, “os governos precisam entender que terra e território pra nós, indígenas, tem outro significado. Tem o significado da existência. Por isso, os indígenas são os que mais protegem as florestas e, por isso também, os que mais diminuem os impactos das mudanças climáticas. Portanto, desenvolvimento acompanhado do mercantilismo tem passado por cima dos direitos das pessoas”, denunciou.

Mariazinha está confiante no encontro Pan-Amazônico que reunirá povos e ‘parentes’ de outros lugares da Amazônia para a construção de soluções conjuntas. “Vamos nos unir, compartilhar realidades e nos fortalecer para o enfrentamento”, finalizou.

“Os governos precisam entender que terra e território pra nós, indígenas, tem outro significado. Tem o significado da existência.”

Extrativismo com olhar em outra economia

As recomendações do diretor do INPA, longe de serem utopia, são perfeitamente possíveis de se concretizar. Basta pesquisa, ação, reconhecimento e zelo pelos diversos conhecimentos tradicionais e científicos acumulados e vivos sobre a Amazônia. Essa, também, foi a colaboração que o consultor geógrafo e mestre em Ecologia Carlos Durigan, que trabalha na Amazônia há mais de 20 anos, trouxe para o Pré-Fospa, apontando para realidades que perpassam toda a Pan-Amazônia.

“Nos últimos anos a gente vê uma evolução não só no Brasil, mas em outros territórios amazônicos nesse conceito de fortalecimento da governança territorial e de manejo de recursos, estabelecimento de cadeias produtivas sustentáveis e com protagonismo das bases e até, inclusive, estabelecendo mercado para produtos que antes não tinham mercado ou eram escamoteados por preconceito, por tabu”, afirma, elencando as diversas fontes de possibilidades para um “contraponto à agropecuária industrial invasiva”.

“Nos últimos anos a gente vê uma evolução não só no Brasil, mas em outros territórios amazônicos nesse conceito de fortalecimento da governança territorial e de manejo de recursos”

“Com cultivos amazônicos, extrativismo florestal, seja madeireiro ou não madeireiro, incluindo frutas amazônicas, agricultura familiar amazônica, como a mandioca, o açaí, cacau e muitos outros produtos amazônicos que mudam o conceito do extrativismo e que atende demanda externa para construção de oportunidades com protagonismo da base para geração de renda e melhoria da qualidade de vida”, conclui.

Pensando e concretizando essa outra economia, esteve presente no Pré-Fospa de Manaus, através de sua representante Larissa Pires, a Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara, que é uma inciativa com base nos princípios fundamentais para uma Economia que “traz vida, não morte, que é inclusiva e não exclusiva, humana e não desumanizadora, que cuida do meio ambiente e não o despoja“ de acordo com o chamado do Papa Francisco.

“Não dá para continuar produzindo sem respeito ao meio ambiente, sem respeito à natureza e sem ter o planeta Terra como a nossa casa comum”

“A economia de Francisco e Clara tem a certeza de que não dá para continuar produzindo sem respeito ao meio ambiente, sem respeito à natureza e sem ter o planeta Terra como a nossa casa comum. E quando falamos de Amazônia, esse ecossistema tão fundamental, precisamos de outra economia. De uma economia que leve em conta todas as vidas, não só as nossas, as humanas, mas também as dos animais, das plantas, e de como a gente precisa de tudo isso para ficar vivo”, afirmou convicta.

O documento final do Pré-Fospa de Manaus contém as linhas temáticas do estado do Amazonas. Assim como, os Pré-Fospas de Manaus e Roraima trabalharam outros temas que serão explanados em outras reportagens.

Pré-Fospa realizado em Manaus (AM). Foto: Valter Calheiros

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