Luis Felipe Miguel: “Regulação não é censura exatamente porque liberdade não equivale a irresponsabilidade”

“O que a direita quer é carta branca para mentir. E as plataformas querem salvo conduto igual para continuar lucrando com as mentiras.”

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Está circulando na bozosfera o vídeo de uma entrevista bem antiga de Caetano Veloso, desenterrado por Carluxo, em que o cantor baiano evoca Olavo de Carvalho para defender uma tese reacionária de “responsabilização individual” que deságua na redução da maioridade penal.

Caetano é um grande artista, mas ninguém tem obrigação de justificar as merdas que ele já disse na vida. Ele gosta de escolher referências para causar “impacto” no momento; afinal, nem só de estacionar no Leblon se vive. Um dia é o bufão de Richmond, no outro pode ser um youtuber “anticapitalista”. Caetano que depois cuide de seus BO’s.

O interessante é o enquadramento que eles estão dando ao vídeo. Trata-se de um exemplo do motivo pelo qual “a esquerda” luta tanto para “censurar a internet”.
É isso mesmo. O objetivo final do combate às fake news é livrar a cara do Caetano Veloso.

Nas palavras sempre esclarecedoras do próprio Carluxo:

“Não é à toa que queiram regular a Internet hoje. Sem regulação, sem exercer controle sobre o fluxo de informações na rede, quem não quer uma Internet livre não consegue impedir que pérolas como esta circulem livremente e escancararem a hipocrisia atual de certos sujeitos que fecham com agendas petistas e psolistas, muitas da vezes, em tese, em função da ostensiva liberação de dinheiro do pagador de impostos, mesmo que sob a forma de renúncia fiscal. O quê mudou, o mais idiota de todos consegue perguntar, dessa entrevista pra cá, porquê o sujeito, hoje, fecha com a agenda da esquerda que acha que o marginal pode roubar para quem sabe”tomar uma cervejinha” ou vê no assalto uma forma justificável de vida? Nada mudou além dos dígitos a mais nas contas da classe artística. Simples assim. O PT só não consegue comprar aquilo que não está à venda. Por fim, cuidado com a propalada “direita sensata”, pois nada mais são que aqueles que corroboram com a agenda imposta pelo sistema, usando sua inocência para tentar crescer e voltar ao cenário”.

Esse é o ponto de partida da estratégia da direita no debate sobre as redes. De forma independente ou em parceria com suas cúmplices, as big techs, promove uma série de equivalências espúrias com o propósito de impedir o debate:

Regulação = censura.
Fato = opinião.
Liberdade = irresponsabilidade.
Liberdade de expressão = lei da selva informacional.
Mentira de pescador = disseminação profissional e deliberada de inverdades com o intuito de conturbar o processo político.

Começo pelo último ponto, que foi brilhantemente ilustrado pela deputada Bia Kicis, em discurso do ano passado, em que esbravejava contra o PL das Fake News, então em tramitação. Disse ela: “Mentir não é crime”.

Parece ingênuo, mas ela age deliberadamente para misturar os canais, como se não existisse diferença entre mentiras. Como se elogiar a comida ruim para agradar ao amigo cozinheiro fosse o mesmo que vender um produto falsificado. Ou se gabar nas redes de que malhou três horas quando não aguentou trinta minutos fosse o mesmo que insuflar desconfianças infundadas nas urnas eletrônicas para melar o processo eleitoral. O caráter criminoso das manobras golpistas desaparece e tudo vira uma brincadeira.

Regulação não é censura exatamente porque liberdade não equivale a irresponsabilidade. Políticos fraudam – a palavra é exatamente essa – resultados eleitorais disseminando mentiras. Big techs ganham milhões veiculando conteúdo que sabem ser falso, de golpes em consumidores a teorias da conspiração. Regular significa fazer com que aqueles que produzem e aqueles que se beneficiam sejam responsabilizados, prevenindo a perpetuação do problema.

Em nome de que leitura enviesada da “liberdade de expressão” se pode falar em censura aqui?

O que a direita quer é carta branca para mentir. E as plataformas querem salvo conduto igual para continuar lucrando com as mentiras.

A defesa da “liberdade de expressão” não pode fazer com que o debate público seja regido pela lei da selva – quem tem o controle dos meios, quem tem dinheiro, fala o quer e os outros que se virem.

A liberdade de expressão é requerida não apenas, nem mesmo principalmente, em favor do emissor. Ela é necessária para o público – para que todos nós tenhamos, ao menos em potencial, acesso a diferentes visões do mundo, para chegarmos às nossas próprias conclusões a partir do embate entre elas.

O mercado não nos garante isso. É preciso regulação para garantir pluralidade, impedir que os mais fortes calem os mais fracos, evitar que o ânimo de lucro se sobreponha sempre ao interesse público.

Por isso é importante garantir que o alvo central da regulação das plataformas seja a disseminação de mentiras relativas a fatos, não de opiniões, por mais abjetas que possam parecer.

Opiniões só devem ser restritas quando se puder demonstrar com clareza que elas têm o poder de causar danos injustificáveis e reais (para além da “angústia moral”, que Stuart Mill impugnava como motivo de restrição à liberdade de expressão já no século XIX) a indivíduos ou grupos.

Este alerta é importante quando se vê que pequenos coletivos à esquerda, empolgados com seu (ilusório) poder de “cancelamento”, avançam o sinal e querem banir discordantes. Com isso, servem de justificativa para o fabricado pânico contra o “politicamente correto”. Em suma, levam água para o monjolo da reação.

Não é fácil – mas o fato de não ser fácil não justifica a inércia.

As defesas clássicas da liberdade de expressão partiam da ideia de que todos estavam interessados em obter a verdade. Mesmo que a suposição fosse falsa, como de fato frequentemente era, servia para garantir algum tipo de compostura no debate público. Hoje, pelo contrário, temos que partir da constatação de que muitos atores políticos têm interesse apenas em tumultuar e impedir o debate.

As velhas divisas – não restringir nenhum discurso e punir a posteriori os que se provam criminosos – não dão conta de evitar a degradação completa do debate público, dada a velocidade e fragmentação de uma transmissão de informações (ou desinformações) turbinada pelo poder econômico.

Carla Zambelli, Damares Alves, Magno Malta, Nikolas Ferreira, Bia Kicis, a família Bolsonaro inteira… Há uma legião de políticos, toda a fina flor da nossa extrema-direita, que não seria capaz de se sustentar por 10 segundos no debate público se fosse abolida a faculdade de dizer mentiras.

Eles têm razão de priorizar essa pauta. É o futuro deles que está em jogo.
Mas é o nosso futuro também, de todos nós. E é preciso reagir antes que seja tarde demais.

Imagem: blog do Sakamoto

 

 

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