Talvez a principal crise que vivemos não seja da esquerda, mas sim do arranjo tecnocrático neoliberal. Nesse contexto, Lula necessita do apoio social. E esta base precisa de sinalizações positivas do governo
por Moysés Pinto Neto, em Outras Palavras
O governo Lula assumiu com a vitória mais difícil de todo período democrático da Nova República. Sua eleição foi produto de uma intensa mobilização social, da revolta dos de baixo contra a austeridade liberal – com seu arrocho social – e das lutas por sobrevivência e dignidade capitaneadas pelas mulheres, pelas pessoas negras, pelos povos indígenas e a população LGTTQIA+.
A “Frente Ampla” foi composta por praticamente todos os setores com o mínimo de decência republicana e democrática no país, entendendo que o adversário representava um arranjo que não deveria ser uma alternativa nos quadros constitucionais brasileiros. Adversário que, aliás, fez uso da maior manipulação da máquina pública vista no século XXI, indo desde a criação de benefícios aleatórios em período eleitoral – que são, obviamente, proibidos –, táticas de intimidação e ameaça de morte de quem expressasse sua preferência por Lula até a repressão direta e ilegal, inclusive contra ordem judicial, da Polícia Rodoviária Federal.
Por isso a vitória esmagadora de Lula foi transformada numa minguada diferença, chegando-se ao ponto de viver, em 8/1, uma tentativa de golpe de Estado protegida pelos militares.
Foi nesse cenário que Lula assumiu. Seu apoio institucional, ainda mais com o 8/1, foi geral. Até mesmo a mídia tradicional, usualmente antipetista, freou seu ímpeto e focou a artilharia no golpismo bolsonarista.
Mas, de uns tempos para cá, os ventos mudaram.
O primeiro ano do governo foi tenso, mas partidos do Centrão de forte vocação oposicionista aceitaram se aliar e assumir ministérios, Haddad foi razoavelmente admitido pelo mercado e pautas centrais como o arcabouço fiscal e a reforma tributária foram aprovadas. Como era previsto, os programas sociais vitaminaram a economia e melhoraram as taxas de emprego e renda. Os índices “surpreenderam” os pessimistas, estando ainda hoje quase sempre acima das expectativas.
Tudo começou a mudar quando Haddad começou a implementar pautas redistributivas de corte de privilégios para equilibrar as contas públicas. Lobismos implícitos, como os promovidos pelas próprias empresas de comunicação que adotaram um discurso ambíguo em relação aos cortes, uma vez que beneficiárias das desonerações, começaram a aparecer. Além disso, Lula também começou a adotar uma posição agressiva na política externa em relação à invasão da Ucrânia pela Rússia – com uma postura de conciliação, e não apoio –, flertou com o “Sul Global” e criticou o genocídio em Gaza.
Ao mesmo tempo, ia-se consolidando um novo consenso. Ele começou no mercado financeiro, com agências de rating publicando relatórios em que Tarcísio de Freitas era aplaudido como gestor alinhado com os interesses privados e potencial candidato à Presidência em 2026. Uma famosa consultoria, por exemplo, já em março sintetizava a fórmula de Tarcísio como um “Bolsonaro melhorado” capaz de contemplar a centro-direita, além dos seus naturais habitats na direita e extrema direita. E então foi a vez do bastião do conservadorismo, Estadão, assumir a posição em editorial, para algum tempo depois ser seguido por Folha e Globo.
Ou seja, o establishment adotou Tarcísio. Com uma vantagem: ao estar no interior do bolsonarismo, ele tem ainda apoio da base fascista que herda de Bolsonaro. Assim: confluência entre mercado financeiro, latifundiários (totalmente alinhados ao bolsonarismo), empresários arrivistas (boa parte da grana nacional), e alinhamento entre a mídia estabelecida e o “partido digital” bolsonarista. No primeiro ano de governo, a atitude de Campos Neto chegou até a ser escrutinada pela mídia alinhada com o neoliberalismo, o que é surpreendente. No segundo, as coisas mudaram. O alinhamento ocorreu por duas vias: críticas da falta de “confiança” na parte fiscal do governo, com o evitamento do corte de gastos, e ataque ao STF, que estaria se excedendo ao investigar e tomar medidas contra a extrema direita.
Lula estava preparado para sofrer uma enxurrada de projetos absurdos no fim da gestão de Lira. Afinal, Lira não é mais que Presidente do Sindicato, e seu poder deriva diretamente da caneta. E, assim como Cunha, ele tem aquela marca do Poderoso Chefão, arbitrário e negociador, forte e poroso. (Aliás, recentemente ouviu-se falar de interferência direta do próprio Cunha no Congresso). Com o fim do mandato, Lira iria desaparecer. Por isso, era bem provável um último bombardeio como tentativa de se perpetuar por meio de um sucessor.
Mas a expectativa de Lula era um 0-0. Ou seja, o Congresso aprovaria algumas coisas, mas manteria a pauta econômica intacta, e a partir de julho se dispersaria para as eleições municipais. Aí, o governo voltaria ao jogo e poderia marcar seus gols.
O problema é que tinha uma pedra no caminho. Lula não contava com uma reaglutinação tão rápida da extrema direita, e com o apoio midiático a ela, causando pressão sobre seu governo e as expectativas. A mídia abandonou Lula, deixando na condição que já viveu durante seu primeiro governo, isto é: narraremos seus contras; se, depois, os prós ficarem explícitos, a gente muda de novo a linha editorial.
Antes, Lula era capaz de influenciar a mídia local por meio da mídia mundial. Como pode um líder celebrado no mundo inteiro ser tratado como um pária pela mídia brasileira? Com isso, produzia um efeito de fora para dentro.
E podemos perceber que essa era a intenção de Lula agora também. Não é apenas “preguiça” de atuar internamente, ficando como chefe de Estado: Lula sabe que a elite brasileira não o engole e, por isso, vai em busca de apoio internacional.
Só que o mundo não é mais o mesmo (ele sabe disso) e hoje existem polarizações no âmbito internacional. Entre 2002 e 2010, houve uma pax generalizada regada pela globalização. Portanto, Lula não pode mais contar com essa guinada de fora para dentro.
O que resta, então?
Bem, a eleição de Lula foi apoiada sim, pelo establishment liberal, mas vamos lembrar que o establishment esteve com Tebet no primeiro turno e teve que engolir Lula com certo desgosto. Portanto, a fração realmente existente de representativa desse “centro democrático” é pequena. É um caso óbvio de sobre-representação. Aliás, o mesmo centro que cobra de todos autocrítica e invoca a tese da “polarização” como diagnóstico é o mais condescendente consigo mesmo: será que a principal crise que vivemos não é da esquerda, mas do arranjo tecnocrático neoliberal centrista que se considera como destinado pelas forças divinas a governar para sempre?
Mas Lula precisa, urgentemente, de apoio social. E isso se faz como? O jeito de mostrar força nas democracias hoje ocorre por duas vias: pressão digital, especialidade do bolsonarismo, e pressão nas ruas, que era nossa especialidade, hoje também mais para o lado deles.
Vejamos o caso das universidades. Muitos governistas criticam os professores pela greve em função dos maiores investimentos que o governo está levando a cabo em relação ao anterior. Mas é preciso lembrar o papel estratégico que têm as universidades no debate público: assim como os jornalistas da mídia tradicional, professores ocupam o lugar de intelectuais públicos e têm, por isso, a possibilidade de influenciar no enquadramento dos problemas – o que é muito superior a simplesmente já se posicionar dentro de uma polêmica. Além disso, o movimento estudantil é hoje a forma de organização que consegue colocar mais jovens juntos para lutar por direitos, correndo em paralelo a igrejas e outros meios usados pelo bolsonarismo.
A atitude de desmerecer as lutas é um erro tático, porque o que o governo precisa é exatamente de uma sociedade mobilizada. Afinal, o agro, as igrejas, a bala, enfim, todo mundo do lado de lá está permanentemente mobilizado.
A primeira coisa que a esquerda precisa é de um “partido digital”. Mas isso deixo para outro texto. Vamos ao que dá para fazer nos quadrantes tradicionais.
Primeiro, aquecer os partidos. Existe um problema geracional nos partidos de esquerda brasileiros que consiste no seguinte: a geração pós-Lula do PT é formada de quadros que operaram de cima para baixo, sem grande vocação popular. E o PSOL, nos seus quadros fundadores, tampouco era um partido popular, sendo muito mais um partido esquerdista. Temos, no PT, figuras como Gleisi, Rui Costa, Padilha, Camilo Santana e o próprio Haddad – seu melhor quadro. Vejam os quadros do PT para disputa no Sudeste e no Sul: vou citar o exemplo de Maria do Rosário em Porto Alegre, hoje claramente disfuncional. São quadros com lutas importantes, mas com pouca adesão popular. No PSOL, entre seus quadros fundadores, tínhamos Plínio, Luciana Genro, Babá e Heloísa Helena. Ainda temos outros que parecem ter trilhado um caminho mais ousado, mas ainda assim têm o mesmo problema: Marcelo Freixo e Alessandro Molon, por exemplo.
O PSOL percebeu isso e está fazendo a transição com mais velocidade: hoje seus nomes são Erika Hilton, Sâmia Bomfim, Guilherme Boulos, Henrique Vieira. Já o PT, anda a passos de tartaruga. Há nomes fortes, como Renato Freitas, que esperam mais espaço no partido. O que Lula fez muito bem em São Paulo, forçar a aliança com o PSOL de Boulos, tem que ser radicalizado. Não é questão apenas de alianças: o PT pode continuar na cabeça quando for o melhor. O problema é de abrir espaço. É preciso formar novos quadros com vocação popular e linguagem digital para ontem, sob pena de o PT tornar-se, muito rapidamente, um Partido Trabalhista britânico com seus Tonys Blairs. Se Lula não tomar parte nisso, as máquinas vão continuar no automático.
Os partidos, além disso, são máquinas de organização. Ok, muito burocráticas, cheias de vícios, comandadas por feudos. Sim, concordo. Mas eles conseguem colocar gente nas ruas quando dirigidos de forma mais popular, assim como associações sindicais (CUT) ou movimentos organizados (MTST, MST). Assim, é preciso juntar esse orgânico com o espontâneo que pode ser propulsionado pelo movimento indígena, pelo movimento negro, pelo movimento feminista e pelo movimento LGTQIA+, assim como alianças surpreendentes com fandoms, torcidas, coletivos de trabalhadores uberizados.
Não se trata da burrice patológica dos esquerdo-machos contra o “identitarismo”. É preciso que haja uma grande coalizão. Mas ela só acontecerá quando houver um aquecimento dos movimentos, e os partidos são meios para aproveitar uma organização já existente e permitir que as manifestações sejam maiores e maiores. Somente uma mobilização popular cacifa o governo para enfrentar, com base na sociedade civil, o Congresso mafioso que temos. Lembremos que foi isso que aconteceu em 2022. Os mafiosos preferiam Bolsonaro, fomos nós, a sociedade civil, que impediu que isso acontecesse.
Em segundo lugar, parece que Lula terá que calcular muito bem a sucessão de Lira. Vale a pena continuar com essa base frágil e chantagista? Talvez mediante uma reorganização partidária seja possível encontrar parlamentares que topem no mínimo a “estratégia Rodrigo Maia”: pausa nas pautas de extrema direita (“costumes”), avanço nas econômicas.
Vale lembrar que um dos ideólogos do renascimento do Centrão foi, segundo consta no noticiário político, Aloizio Mercadante, então ministro da Casa Civil, quando estimulou a criação de PSD e outros novos partidos com o intuito de desidratar o MDB. Talvez o caminho agora seja o inverso: reaglutinar a dispersão, para enfraquecer o troca-troca, e negociar um apoio mais sólido.
Além disso, o governo precisa usar a caneta – se algo fez Dilma perder politicamente, foi ter muito ameaçado e pouco executado. Na prática, a direita não perdia nada; o discurso ficava cada vez mais “antigolpe”, ao mesmo tempo em que as medidas caminhavam cada vez mais à direita.
Uma reforma ministerial radical quando o impeachment já estava em vista (por exemplo, após a aprovação na Câmara, naquele espetáculo hediondo), por exemplo, nunca ocorreu.
Há múltiplos meios de o governo usar poder, e ele precisa ser usado porque esta é a única linguagem que o Centrão entende.
Finalmente, voltando ao caso das universidades, mas pensando também nas demarcações indígenas e na política da Petrobrás, o governo precisa parar de atacar a sua base. Para que a base esteja viva e resistente, como é o caso do momento, é preciso que haja sinalizações positivas – e isso envolve que Lula se decida sobre algumas coisas.
Quando Lula assumiu em 2023, eu acreditava que a era Dilma, de negacionismo climático e política antiambiental, havia ficado para trás. Mas hoje a gente vê o mesmo Lula de 2008 (Pré-Sal): ainda trata a pauta ambiental de modo oportunista. Com Marina Silva e Sonia Guajajara, Lula tem uma equipe sólida para tocar as questões que são fundamentais para sua base. Se continuar jogando olhando só para os inimigos, talvez no final não tenha mais ninguém na sua retaguarda – o que, aliás, foi o que ocorreu com Dilma.
Aquecer os partidos, reorganizar a base institucional, conter a dispersão clientelista, reforçar suas questões fundamentais – esses são alguns pontos que acredito poderem ajudar um governo que, sob forte artilharia, ainda pode oferecer uma perspectiva de melhora.
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REUTERS/Adriano Machado