Golpes, resistência e jornalismo: por que precisamos prestar atenção na Bolívia? Por Lucas Estanislau

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“A democracia se respeita”. Foi assim que o presidente Luis Arce denunciou, na tarde da última quarta-feira (26), o que, a princípio, chamou de “movimentações irregulares” de tropas do Exército, que acabaram se revelando uma tentativa de golpe de Estado na Bolívia.

Já passava das 14h (horário local) quando o general Juan José Zuniga decidiu levar um destacamento de policiais militares e tanques blindados à Praça Murillo, no centro de La Paz. Ali, em frente à sede do governo, o então comandante geral do Exército iniciou uma intentona golpista que pretendia derrubar Arce.

Dias antes, o militar já havia dado declarações contra o ex-presidente Evo Morales, ameaçando se sublevar ou até mesmo prender o socialista se ele voltasse a se candidatar à Presidência. Ato contínuo, Zúñiga foi destituído do comando do Exército por suas falas.

Ao ficar claro que se tratava de um movimento golpista, manifestações de rechaço começaram a surgir de várias partes do mundo. Chefes de Estado e organismos multilaterais condenaram os atos e pediram a manutenção da ordem constitucional no país.

Para reagir ao golpe, o presidente Luis Arce rapidamente se dirigiu à nação convocando movimentos populares e apoiadores às ruas para defender a legalidade. Ao mesmo tempo, nomeou uma nova cúpula militar, cujo primeiro ato oficial foi determinar a volta de todos os batalhões golpistas às suas respectivas bases.

Com um novo comando das Forças Armadas e com o povo nas ruas, o golpe foi derrotado. Zúñiga terminou preso e, agora, a Justiça boliviana conduz investigações contra todos os participantes.

As horas de tensão vividas no dia 26 evidenciam o fato de que, cada vez mais, a política interna boliviana se complexifica e que o país se apresenta como um importante palco de disputas globais.

No plano interno, o governo Arce vem sofrendo há meses com uma crise econômica disparada pela ausência de dólares na economia, levando vários setores a realizarem bloqueios de vias em protestos.

Por outro lado, uma grave crise política assola o próprio partido de governo, o MAS (Movimento ao Socialismo), que divide Arce e Evo. Ambos já manifestaram desejo de concorrer nas eleições presidenciais marcadas para 2025 e, até o momento, não parecem ter chegado a uma posição unificada.

Já em termos geopolíticos, as grandes reservas de lítio bolivianas constituem elemento obrigatório a ser considerado quando se analisa a política do país. A Bolívia tem as maiores reservas do recurso no mundo, com cerca de 23 milhões de toneladas concentradas no sul do país.

O mineral é cada vez mais cobiçado por sua importância estratégica na produção de baterias de equipamentos eletrônicos e veículos elétricos e, nos últimos anos, os governos de Evo e Arce avançaram em busca de parcerias com potências do chamado Sul Global, como Rússia e China, para aumentar a capacidade de processamento da matéria-prima.

Não à toa, o lítio esteve no centro do mais recente golpe de Estado na Bolívia, que ocorreu em 2019 e terminou derrubando o governo de Evo Morales. À época, o ex-presidente havia acabado de vencer as eleições presidenciais e conquistar o quarto mandato quando tropas golpistas da polícia e do Exército, apoiadas por partidos de direita e setores empresariais, deram um ultimato a Evo e forçaram sua renúncia.

O golpe daquele ano levou ao poder a então desconhecida senadora Jeanine Áñez, que se autoproclamou presidenta. Ela foi responsável por ordenar diversos atos de repressão a movimentos de resistência ao golpe. Os mais reconhecidos foram os de Senkata e Sacaba, que deixaram diversos mortos e mais de 50 feridos, episódio classificado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos como um massacre endossado pelo governo.

Após a derrubada de Evo, o bilionário Elon Musk foi ao antigo Twitter para dizer que daria “um golpe de Estado em quem quisesse”, após ser questionado sobre uma suposta participação por interesse no lítio.

Os conflitos que se manifestam na Bolívia são representações dos dilemas colocados, em certa medida, para toda a América Latina: a região rica em recursos naturais tem potencial para fazer a diferença nos rumos do planeta e nas disputas de classe em escala global.

Passada a quartelada fracassada do dia 26, as questões que permanecem para os bolivianos — e todos nós latino-americanos — são a importância da capacidade de mobilização e resistência popular e os efeitos de punição aos golpistas.

Seria possível barrar a intentona sem mobilização? Quais os limites de um triunfo apenas nas urnas? O que vai garantir a proteção dos direitos fundamentais dos trabalhadores, seja na Bolívia, na América Latina e em todo o planeta? E, principalmente, como certificar ou, pelo menos, inibir que atos golpistas de extrema direita voltem a acontecer?

Parecem perguntas incontornáveis se quisermos nos preparar para a próxima vez que o perigo do fascismo se apresentar.

Por enquanto, seguimos no exercício do bom jornalismo, registrando os fatos, ouvindo os envolvidos, interpretando concretamente a realidade e defendendo o direito dos bolivianos de decidir o seu próprio futuro.

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