Pensamento das mulheres pretas avança nas livrarias e universidades. Mas sua grande força – e o que vai muito além da gramática acadêmica – é a experiência vivida no corpo e nas comunidades. Só ela pode vencer a captura pela plantation cognitiva
Por Fátima Lima em entrevista a Berenice Bento e Helena Vieira, na Cult / Outras Palavras
A antropóloga Maria de Fátima Lima Santos é professora associada do Centro Multidisciplinar Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e colaboradora da Casa das Pretas, uma organização feminista negra que atua em comunidades, escolas, instituições e famílias. Nesta entrevista, ela debate a emergência do pensamento feminista negro na Academia, a categoria gênero dentro do movimento negro e a experiência das mulheres pretas como componente indissociável da teoria e práxis política.
Qual a importância da categoria “experiência” para o feminismo negro?
Eu começaria já pluralizando o próprio feminismo negro, porque não tem como falar em um feminismo negro, mas em feminismos negros. Muitas vezes, o jeito com o qual a gente olha ou toma os feminismos negros requer, de alguma maneira, também a suspensão, inclusive, do tempo cronológico como nós o conhecemos, ou a conjuração de um tempo cronológico. Então, ler o feminismo negro pela singularidade e por uma ordem cronológica de uma primeira onda, de uma segunda onda, de uma terceira onda, é algo insuficiente para a gente entender, realmente, a potência, ou as potências, dos feminismos negros na dimensão de um tempo espiralar. Por que estou colocando isso? Porque a noção de experiência é fundamental nisso tudo. Não tem como dissociar os feminismos negros da noção de experiência. A noção de experiência é uma noção vital. É a espinha dorsal do que a gente pode pensar como práticas feministas negras e como produções epistemológicas feministas negras, entendendo que são indissociáveis. E o que é a experiência no sentido dos feminismos negros? É uma experiência vivida através do corpo, de um processo de subjetivação, de uma relação corpo-subjetividade que forja em uma maquinaria muito perversa a ideia de negra ou a ideia da mulher negra. Então, essa experiência é inseparável da hidráulica racista que produz a ideia do que é ser ou do que é vir a ser uma negra, uma mulher negra, e das relações que elas estabelecem entre si e também com as outridades. Então, essa experiência indissociável do corpo, indissociável da maquinaria e da hidráulica racial, indissociável da história do texto moderno, indissociável da história do texto moderno que se assenta sobre a violência racial e colonial, é indissociável de um Estado-capital racial. É a experiência vivida a partir de um corpo e de uma subjetividade, que ao mesmo tempo que ganha uma inteligibilidade dentro da ideia de ser negra, comporta a produção de uma não sujeita. A tensão entre essa zona do ser e essa zona do não ser na produção dessa inteligibilidade que nós entendemos como mulheres negras. A experiência vai ser atravessada por todas as violências raciais interseccionalizadas. E são essas violências raciais interseccionalizadas a espinha dorsal, o leitmotiv, a lufada, o sopro vital do que, no sentido mais profundo, mais amplo, são os feminismos negros. Uma experiência vivida, racial, calcada na antinegritude, mas também em experiências que são respostas de resistências, de persistências, de teimosias das mulheres negras, como sendo o ventre do mundo, seja para as coisas mais difíceis que a gente possa pensar, como a própria violência, o feminicídio, o extermínio, seja para as formas mais profundas de ser uma outra sociedade, um outro mundo, um outro futuro e a própria ideia de liberdade.
A categoria “gênero” é suficiente para nos ajudar a compreender as múltiplas feminilidades ou, talvez, “mulheridades”, a exemplo das reflexões sobre “mulherismo africano”, que têm se recusado a utilizar a categoria gênero e feminismo? Como você acredita que esses movimentos se desdobrarão e as consequências não apenas para os feminismos negros, mas para outros feminismos?
Essa é uma questão precisa, no sentido necessário, porque toca em uma coisa que eu acho fundamental, que não é sobre a não pertinência ou a não utilidade, eu diria assim, mas sobre a suficiência ou a insuficiência de determinadas categorias. Então vocês me perguntam se a categoria gênero é suficiente para compreender as múltiplas feminilidades, mulheridades, enfim, e a resposta é não: não é suficiente, pode até ser uma categoria útil, uma categoria historicamente produzida. Mas não é uma categoria suficiente, porque as possibilidades de produção, do que a gente pode pensar em feminilidades, em mulheridades, nas diferentes possibilidades em torno daquilo que se constitui como as experiências das mulheres negras, ao mesmo tempo antecedem e, eu diria, sucedem as questões de gênero. Antecedem e sucedem os processos de genderização ou generificação dos corpos e, consequentemente, também das subjetividades das mulheres negras e das mulheres indígenas. Como diz Denise Ferreira da Silva, o corpo da nativa/escravizada se faz através de um processo de subjetivação em que não há nenhuma outra experiência cuja violência tenha atingido o máximo como atingiu esses corpos/subjetividades. Inclusive, se dialogarmos com Hortense Spillers, e também com outras pensadoras, vamos perceber uma própria desgenerificação dos corpos das mulheres negras. Por exemplo, nos negreiros, eram todas mercadorias, e o espaço milimetrado da carga era medido pelo peso, pela dimensão que aquela mercadoria ocupava dentro dos espaços dos navios. Penso que essa discussão precisa ser feita. Há algo aquém e além da genderização que toca profundamente as vidas e a subjetividade das mulheres negras, e que passa, antes de tudo, pela capacidade de anulação, de extermínio e de animalização de suas dimensões enquanto sujeitas. Entendo que isso é fundamental. Quando Sojourner [Truth] pergunta “e não sou eu uma mulher?”, por que ela não pergunta “e não sou eu uma negra?”? Por que ela pergunta pelo processo de genderização, pelo reconhecimento a partir do gênero? Porque há algo ali que já está dado aquém e além dessa própria experiência de genderização, que é a qualificação da vida e dos corpos a partir da dimensão da melanina, da cor da pele, do preconceito da cor, da melanização enquanto uma dimensão política. Não passa por uma questão do que veio primeiro, o ovo ou a galinha, o gênero ou a raça – acho que é uma pergunta infrutífera. Se eu tomo a racialização e as racialidades subalternizadas, e penso a partir da categoria de antinegritude, as mulheres negras estarão atravessadas, no mínimo, por uma dupla opressão: não estão nem no âmbito da categoria mulheres (marcado pela hegemonia das mulheres brancas), nem no âmbito da categoria negros (marcado pela hegemonia masculina negra). Então, isso é fundamental para a gente entender que a categoria de gênero é insuficiente. Outra coisa que eu tenho apontado nos últimos anos é a intensificação de uma política da tradução que necessariamente não é encampada pelas grandes editoras, mas foi encampada, principalmente, pelas mulheres negras ativistas que foram as primeiras a começar a traduzir textos ligados ao que podemos chamar do mulherismo africano. Então, isso começa a ganhar peso nos movimentos de mulheres, nas organizações de mulheres, como a própria obra de Oyèrónké Oyěwùmí, na qual ela vai passar a contrapelo a própria noção de gênero, como algo imprescindível para a inteligibilidade de uma certa gramática social. Então tudo isso traz um repensar não apenas para os feminismos negros, não apenas para os feminismos em geral, mas um repensar de categorias que, até então, eram vitais dentro da gramática colonial. A gramática colonial se mantém assim, se mantém e se mantém. Como é que eu vejo todas essas tensões que estão aí? Para além daquilo que elas podem guardar enquanto tensões moleculares, eu acho que elas ficam, antes de tudo, num certo campo conceitual, colonial, em que parte considerável dos estudos de gênero se constituiu. Talvez seja o momento de ao menos começarmos a reconhecer isso e reconhecer que essas outras produções de possibilidades de arranjos sempre estiveram aí. Podemos começar a apostar em possibilidades mais contracoloniais, para refletir, discutir, traçar o que podemos chamar de uma gramática racial, genderizada, interseccionalizada. Quiçá isso possa trazer desde as feministas passando pelas feministas negras, pelos mulherismos, por todas as discussões que existem, no fundo, uma crítica ao texto colonial moderno e as possibilidades de fazer ver e dizer outros possíveis. Acho que esse, para mim, é o ponto vital. E admitir a insuficiência da categoria de gênero é jogar a categoria fora? Não. Pensar também na insuficiência do biopoder, por exemplo, diante da noção de necropolítica, é, no mínimo, a convocatória política e ética que nos põe frente a um compromisso, realmente, com as formas de vida. Tomamos as opressões como lugar de reflexão. Então não tem como fazer uma reflexão de gênero sem levar em conta, antes de tudo, que a raça é filha do racismo e que essa maquinaria racista é cruel e fundamental para forjar, inclusive, a ideia de mulher negra.
Qual o lugar que as pensadoras negras ocupam atualmente na academia? Temos observado que há uma crescente tradução de textos de pensadoras negras e, ao mesmo tempo, um aumento considerável de adesão na academia a essas formulações. No entanto, infelizmente o diálogo, em grande medida, ainda permanece fundamentalmente restrito às pessoas negras que pesquisam questões raciais.
Nossa, muitas perguntas e uma pergunta só. Acho que há várias coisas nessa questão. Primeiro, precisamos perceber que o pensamento intelectual de mulheres negras é muito maior do que os feminismos negros. Nem toda grande pensadora negra está no âmbito da produção feminista negra. E há uma intensificação, eu diria, tanto de pensadoras negras quanto de pensadoras feministas negras. Óbvio que isso é comprovado pelas mudanças curriculares, pela produção de monografias, de dissertações e teses, pela multiplicação de grupos de pesquisas, pelo aumento considerável de traduções. Concordo plenamente com Jota Mombaça, ainda estamos dentro do que podemos chamar de uma plantation cognitiva, mas há essa intensificação, sim. E penso que essa intensificação tem coisas extremamente interessantes, mas outras desinteressantes também. Há uma denúncia muito grande, já feita pela própria bell hooks, e posta também por Patricia Hill Collins, de como, muitas vezes, os feminismos negros, que a base é a própria coletividade, a base é a comunidade, a base é o chão, quando ele é traduzido para dentro da academia, e a academia é voraz para transformar as coisas em representação, há nesse processo uma perda. Então, ao mesmo tempo que eu penso que temos um ganho com a circulação, com a publicação de textos, inclusive datados, as traduções chegam muito atrasadas no Brasil (de Angela Davis, Patricia Hill Collins, bell hooks, Audre Lorde, entre outras), e ainda faltam muitas traduções. Onde estão os feminismos de negros latino-americanos, por exemplo? Onde estão os outros feminismos negros fora desse circuito mais conhecido? Onde estão os feminismos africanos? Os mulherismos? Então, também a própria política de tradução precisa ser interpelada: o que, quem e por que traduzir? Há, sim, um aumento na academia, mas, ao mesmo tempo, também o esvaziamento de muitas coisas. Mais uma vez eu digo: feminismos negros são uma questão de experiência, de prática, de práxis, de movimento. Então, penso que a gente precisa pensar nisso. Entender isso dentro dessa maquinaria perversa da captura, da pilhagem etc. E, agora, quem se apropria desse discurso e como se apropriar desse discurso dentro da academia é outro ponto de atenção. Se a gente for pensar o tal do lugar de fala, ninguém fica sem falar no lugar de fala. Só se você não tiver nada a dizer. O lugar de fala não fala sobre quem fala ou quem não fala. O lugar de fala é sobre quem fala, como fala, e como na gramática, como no diagrama da política da fala e da escuta, quais são os lugares que os sujeitos ocupam, que as sujeitas ocupam nessa posição. Os feminismos negros estão aí para todo mundo. São uma possibilidade de enxergar, de poder projetar uma saída nesse fim deste mundo. São uma possibilidade de forjar uma perspectiva de futuro e de liberdade para as mulheres negras, para as mulheres não negras, para todes nós. Agora, dentro da gramática da academia, acho que há uma outra discussão. Depende muito mais de como as pessoas que não são negras estão se posicionando frente ao escopo do feminismo ou dos feministas negros do que necessariamente o contrário. Eu acho que as pessoas negras que pesquisam questões raciais ligadas ou atravessadas pelos feminismos negros não têm nada a ver, ou muito pouco a ver, com as pessoas que não são negras, com o que fazem ou não fazem, ou deixam de fazer, em relação tanto aos feminismos negros quanto ao próprio pensamento de intelectuais negras. Eu penso que o movimento é o contrário, e a pergunta que deveria ser feita é: não sendo pessoas negras, e que pesquisam também questões raciais, que pesquisam também os feminismos negros, como é que elas têm conversado, pesquisado e orientado a partir das epistemologias e metodologias negras? As questões raciais são de todo mundo, todos nós temos o dever de nos posicionar frente à implicação racial, genderizada, interseccionalizada. Talvez a diferença esteja no lugar no qual nós nos colocamos neste tempo de assombro e ruínas na academia brasileira e que os feminismos e pensamentos de mulheres negras são rotas de fugitividades. Àṣẹ!