Quando oligarquias de SP tentaram restaurar a República Velha

Mitologia construída em torno do levante, tratado como ‘revolução’, busca apagar caráter elitista e reacionário

Por Estevam Silva, Opera Mundi

Há 92 anos, em 9 de julho de 1932, tinha início em São Paulo o levante do Movimento Constitucionalista. O conflito armado — um dos maiores do Brasil no século 20 — opôs o governo de Getúlio Vargas às elites de São Paulo, que intencionavam restaurar a velha ordem oligárquica derrotada dois anos antes.

Articulada desde o governo Campo Sales, a “política do café com leite” consolidou o domínio das oligarquias rurais do Sudeste sobre a governança nacional. Os candidatos do Partido Republicano Paulista (PRP) e do Partido Republicano Mineiro (PRM) se revezavam na Presidência da República, instrumentalizando a máquina do Estado em favor da proteção dos interesses de suas elites agrárias — beneficiadas por fartos subsídios e múltiplas formas de apadrinhamento.

Ao longo da década de 20, a insatisfação dos setores negligenciados pela distribuição desigual de recursos operada pela “política do café com leite” tomou vulto, levando ao surgimento do movimento tenentista — sublevação de jovens oficiais de baixa e média patente das Forças Armadas que reivindicavam a reforma do sistema político. Em 1922, eclodiu a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana. Em 1924, os militares se insurgiram na Revolta Paulista e na Comuna de Manaus. Em 1925, teve início a Coluna Prestes.

Após a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, o arranjo institucional da “política do café com leite” tornou-se insustentável. A crise derrubou os preços do café no mercado internacional, impactando o poder político dos grandes produtores de São Paulo. Visando conservar o aparelho do Estado em suas mãos, os barões do café decidiram romper o acordo político com a oligarquia mineira, lançando Júlio Prestes para suceder a Washington Luís na Presidência da República.

O governador mineiro, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, uniu-se então à Aliança Liberal, coligação que apoiou a candidatura do oposicionista gaúcho Getúlio Vargas. Prestes venceu a eleição, mas a Aliança Liberal se recusou a reconhecer a legitimidade do pleito, dando início ao movimento armado denominado “Revolução de 1930”. Washington Luís foi deposto, Júlio Prestes foi impedido de assumir a Presidência e Vargas tornou-se chefe do governo provisório.

Em sua gestão, Vargas instituiu uma série de medidas de centralização política, minando a autonomia federativa da República Velha. Os estados foram proibidos de contrair empréstimos externos sem autorização do governo federal. Instituiu-se o monopólio de compra e venda de moeda estrangeira pelo Banco do Brasil, dando à União o controle sobre o comércio exterior. O governador paulista, Heitor Penteado, foi deposto e substituído pelo tenente João Alberto Lins de Barros, interventor nomeado pelo governo federal.

Militar pernambucano ligado ao movimento tenentista, Lins de Barros reabilitou os ex-combatentes da Revolta Paulista de 1924 e aproximou-se das organizações sindicais, instituindo novas leis trabalhistas. Sua nomeação irritou profundamente a elite de São Paulo, que se referia ao interventor com expressões xenofóbicas como “forasteiro” e “plebeu nordestino”. Posteriormente, Vargas nomearia outros dois interventores ligados ao movimento de 1930: Laudo Ferreira de Camargo e Manuel Rabelo.

O fim dos subsídios aos cafeicultores e a priorização do projeto de industrialização também desagradaram enormemente os interesses das oligarquias rurais.

Inconformada com a perda do poder político e com a limitação de seu poder econômico, a elite de São Paulo passou a insuflar a oposição popular ao governo Vargas. Para camuflar a intenção reacionária de restaurar a velha ordem oligárquica, a burguesia instou seus aparelhos ideológicos a iniciarem uma campanha pela constitucionalização do país. Os jornais paulistas começaram a publicar editoriais apregoando o discurso de que o governo federal tratava São Paulo como “terra conquistada” e que a “Revolução de 1930” fora feita “contra” São Paulo.

A nomeação de Pedro de Toledo como interventor do estado não bastou para acalmar os ânimos da burguesia paulista, que passou a patrocinar o golpismo explícito. Em fevereiro de 1932, o Partido Democrático de São Paulo se juntou ao Partido Republicano Paulista para criar a Frente Única Paulista (FUP), que reivindicava o fim da “ditadura de Getúlio Vargas”, a “constitucionalização do Brasil” e a “restauração da autonomia paulista”.

A FUP logo obteve apoio irrestrito do patronato paulista, das oligarquias rurais do estado, da maçonaria e dos setores militares conservadores. Lideranças políticas vinculadas à organização começaram a convocar manifestações antigovernistas, incitar a agitação social e preparar o movimento armado. O interventor Pedro de Toledo aderiu ao movimento constitucionalista e, desafiando o governo Vargas, formou um novo secretariado composto exclusivamente por opositores ligados à FUP.

Visando sustar o movimento golpista, Vargas enviou Osvaldo Aranha a São Paulo. A vinda do emissário foi contestada por uma grande mobilização popular organizada no centro da cidade em 23 de maio de 1932. O protesto foi interrompido por um grande tumulto que se formou graças à presença de membros da Legião Revolucionária — organização paramilitar ligada ao Partido Popular Paulista, legenda da base de apoio do governo Vargas. O confronto entre as forças legalistas e os manifestantes resultou na morte de quatro estudantes — Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo — dando à elite paulista os mártires que faltavam para potencializar o clima de agitação social.

As iniciais dos estudantes, M.M.D.C., passaram a designar o movimento armado que se articulou para derrubar Vargas. O discurso antigovernista tornou-se extremamente virulento e os jornais do estado passaram a instigar abertamente a deflagração de uma guerra civil. Nas semanas seguintes, as autoridades de São Paulo deram início a um verdadeiro esforço de guerra, mobilizando a indústria local para produção de artefatos bélicos e exortando a população a contribuir com a coleta de fundos para o levante. Iniciou-se igualmente o recrutamento de batalhões formados por voluntários civis. A esses, somavam-se os combatentes da Força Pública (atual Polícia Militar do Estado de São Paulo) e unidades rebeladas do Exército da 2ª Região Militar.

O levante armado foi deflagrado em 9 de julho de 1932. As forças da chamada “Junta Revolucionária” somavam 60 mil combatentes, sob a liderança de Francisco Morato, Bertoldo Klinger, Antônio de Pádua Sales e Isidoro Dias Lopes. Na capital paulista, as tropas rebeldes tomaram o Campo de Marte, as estações ferroviárias, os quartéis e os prédios públicos, além das estações de telégrafo, emissoras de rádio e as sedes dos jornais. O movimento reverberou imediatamente no interior, com a sublevação de grupos militares nas cidades de grande e médio porte.

Movimentos análogos foram registrados em Minas Gerais (sob a liderança de Artur Bernardes) e no Rio Grande do Sul (capitaneado por Flores da Cunha), mas não contaram com adesão significativa e foram neutralizados já no início. Na parte meridional do antigo estado do Mato Grosso, aliados do movimento constitucionalista chegaram a proclamar a criação do “estado de Maracaju”, governado por Vespasiano Martins, e se juntaram ao levante.

As principais batalhas ocorreram em três grandes frentes, ao leste e ao sul do estado de São Paulo e no Vale do Paraíba. Os rebeldes paulistas pretendiam concretizar um avanço relâmpago em direção ao Rio de Janeiro, então capital federal, para tomar o Palácio do Catete e forçar a deposição de Vargas. Não obstante, as tropas federais, lideradas pelo general Góis Monteiro, eram muito mais bem equipadas e numerosas, contabilizando mais de 100 mil homens, e logo começaram a obrigar os paulistas a recuarem. Um navio repleto de armamentos trazidos dos Estados Unidos para os combatentes de São Paulo também foi aprendido pela Marinha do Brasil, deixando os rebeldes inteiramente dependentes da capacidade produtiva local.

Malgrado os contratempos, a oligarquia paulista radicalizou ainda mais o seu discurso, passando até mesmo a flertar com as ideias separatistas defendidas por parte dos intelectuais ligados ao movimento constitucionalista, tais como o jurista Costa Manso, os escritores Monteiro Lobato, Mário de Andrade e Alcântara Machado e o historiador Alfredo Ellis Júnior.

O conflito se prolongou por três meses, mas São Paulo nunca chegou perto da vitória. A neutralização das alianças com Minas Gerais e Rio Grande do Sul isolou os paulistas, que se viram obrigados a enfrentar 18 estados da federação. O porto de Santos foi bloqueado pela Marinha e a capital paulista foi submetida a uma intensa campanha de bombardeios estratégicos que prejudicaram sua capacidade de colaborar com o esforço de guerra.

O fechamento das fronteiras impediu a aquisição de suprimentos junto a outros mercados. As condições econômicas do estado se deterioraram rapidamente graças ao cerco militar e isolamento comercial. As tropas legalistas logo começaram a assegurar o domínio do interior. Em setembro, a Força Pública se rendeu. Os voluntários seguiram lutando por mais algumas semanas até a capitulação final, ocorrida em 2 de outubro de 1932 na cidade de Cruzeiro.

Após a derrota, a cidade de São Paulo foi ocupada por tropas do Rio Grande do Sul sob comando do general Valdomiro Castilho de Lima. Vargas preferiu utilizar uma estratégia de contemporização e evitou o revanchismo com a elite de São Paulo, nomeando um paulista civil para chefiar o governo do estado — o empresário Armando de Sales Oliveira, cunhado do dono do jornal O Estado de S. Paulo, Júlio de Mesquita Filho. Estima-se que mais de mil combatentes paulistas tenham morrido no conflito.

As urnas funerárias de 713 desses soldados estão hoje depositadas no Obelisco-Mausoléu, construído junto ao Parque do Ibirapuera, bem como os restos mortais dos quatro estudantes que serviram de estopim à revolta armada. Nunca houve divulgação do número oficial de mortos das tropas legalistas.

Malgrado sua derrota, o Movimento Constitucionalista de 1932 converteu-se em um dos principais elementos de uma narrativa histórica romantizada, cultuada pela elite paulista como evidência da suposta “excepcionalidade” do povo de São Paulo. Essa narrativa é criada a partir da manipulação e da reescrita da própria história. Difundiu-se, por exemplo, a ideia de que São Paulo, embora tendo perdido a guerra, teria obtido a vitória moral com a convocação da Assembleia Constituinte — ignorando o fato de que Getúlio Vargas já havia marcado a convocação da Constituinte três meses antes do início do conflito e que a legislação eleitoral aprovada por seu governo era muito mais progressista do que os processos eleitorais da República Velha.

A mitologia construída em torno do levante paulista, oficialmente tratado como uma “revolução”, busca apagar seu caráter elitista e reacionário, ao mesmo tempo em que apropria-se de elementos do bandeirismo e de outros discursos ufanistas para afirmar o protagonismo de São Paulo, evocando a ideia de que a elite paulista é o grupo habilitado a gerir o país e traçar os melhores rumos para o futuro do Brasil — a ideia de uma São Paulo como locomotiva da nação, arrastando vagões obsoletos, incapazes de chegar a qualquer lugar por conta própria.

Não por acaso, o movimento tornou-se referência cultuada por diversos grupos conservadores e reacionários, de separatistas a fetichistas de fardas e apologistas da ditadura militar.

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