Analfabetismo religioso empurra o povo para a extrema direita. Por frei Gilvander Moreira

Em Contagem, MG, de 02 a 04 de agosto de 2024, aconteceu o VII Encontro Mineiro de Fé e Política, melhor dizendo, de Fé Política, com participação de lideranças religiosas e populares de muitos municípios do estado de Minas Gerais. Foi muito bom. Eis uma questão central discutida no Encontro: a questão religiosa no Brasil, especificamente, e de forma geral em todo mundo, se tornou uma brutal questão política que não pode mais ser ignorada, sob o risco da extrema direita retomar em breve o controle do Poder Executivo federal, nos municípios e nos estados, e abocanhar também o Poder Legislativo nos municípios, nos estados e ampliar ainda mais sua presença hegemônica na Câmara Federal e no Senado.

Se a parte das Igrejas que buscam ser libertadoras, os Movimentos Sociais Populares, os Partidos Políticos de Esquerda e as pessoas cidadãs, enfim, a militância que luta pela superação da barbárie cada vez mais brutal nos dias de hoje perpetrada pelos capitalistas, não levar a sério os desafios que a Questão Religiosa está nos impondo, estaremos acelerando as mudanças climáticas com eventos extremos cada vez mais frequentes e letais, a “queda do céu” na linguagem do xamã ianomâmi Davi Kopenawa, o Apocalipse final da humanidade será adiantado com muita velocidade, pois o negacionismo e o egocentrismo da extrema direita darão as últimas punhaladas no planeta Terra, que já está quase todo despelado e na UTI[1] por estar sendo sacrificado no altar do mercado idolatrado, puxado pelo ogronegócio que mata indiscriminadamente de muitas formas.

Atualmente a maioria hegemônica dos mais de 26 mil padres e milhares de pastores (neo)pentecostais existentes no Brasil seguem o paradigma religioso fundamentalista, espiritualizante e moralista, o que na prática nega a encarnação de Deus na história, ignora a dimensão social do Evangelho do mestre Galileu e vira as costas para o ensinamento revolucionário e o compromisso de Jesus Cristo com as pessoas violentadas pelo sistema escravocrata do império romano, pelos saduceus (os ricos piedosos da época) e exploradas pelo legalismo do sinédrio dominado pelos saduceus.

Eis uma pergunta crucial: Por que e como se construiu este contexto religioso fundamentalista, espiritualista e moralista, que na prática nega os avanços promovidos pelo Concílio Vaticano II, de 1962 a 1965, sob a liderança dos papas João XXIII e Paulo VI, e ridiculariza a Opção pelos Pobres batizada pelos bispos latino-americanos em Medelín, na Colômbia, em 1968, confirmada em Puebla, no México, em 1979, consagrada em Santo Domingos, em 1992, e referendada em Aparecida, em 2007?

Também no seio das Igrejas evangélicas, mesmo as históricas, o Conselho Mundial de Igrejas, com sua orientação aberta e na direção da Paz, Justiça e cuidado com a criação, tem sido ignorado e combatido pelos setores mais espiritualistas das Igrejas.

Estamos vivendo atualmente no Brasil, na América afrolatíndia, na África e no mundo capitalista ocidental as consequências brutais de dois projetos político-religiosos muito bem arquitetados. Um que está muito bem descrito no livro Os Demônios descem do Norte, de Délcio Monteiro de Lima, 1ª edição de 1987. Quando a Teologia da Libertação, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e as Pastorais Sociais[2] estavam de fato sendo sementeiras de Movimentos Sociais Populares e contribuindo decisivamente na construção do Partido dos Trabalhadores (PT, fundado em 10/02/1980), da Central Única dos Trabalhadores (CUT, fundada em 28/08/1983), do sindicalismo combativo no meio do campesinato e nas fábricas nas grandes cidades, contribuindo na criação do Movimento dos Trabalhados Rurais Sem Terra (MST, criado em janeiro de 1984), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI, criado em 1971), fortalecendo a luta por direitos dos Povos Originários (Povos Indígenas), a Comissão Pastoral da Terra (CPT, criada em junho de 1975), animando e assessorando a criação de Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs) combativos e oposição sindical aguerrida na luta pela terra e Reforma Agrária, em contexto de efervescência de milhares de Movimentos Sociais Populares lutando por direitos dos povos nas periferias das cidades e no campo brasileiro, os ideólogos do imperialismo dos Estados Unidos fizeram análise da conjuntura internacional e alertaram o Governo dos EUA e a elite do capitalismo mundial que se a Teologia da Libertação com a prática das dinâmicas CEBs, em perspectiva libertadora, continuasse se desenvolvendo no Brasil e na América Latina, os povos colonizados da América Afrolatíndia estariam gestando sua emancipação e deixariam de ser colônias, iriam parar de pagar dívida externa e iriam frear a truculência das empresas transnacionais que sufocavam as empresas nacionais.

Este modelo fundamentalista, espiritualista e moralista de igreja está funcionando há mais de 40 anos a todo vapor e estilhaçando os esforços de lutas coletivas por direitos no Brasil e na América Afrolatíndia. Há teses de doutorado que demonstram o estrago que estas igrejas (neo)pentecostais têm feito no meio dos Povos Indígenas, Quilombolas e em Assentamentos de reforma agrária, por exemplo. Ao primar pela relação eu-deus, “cada um por si”, individualização da bênção de Deus, o espírito e a mística que anima lutar em conjunto são desvalorizados. Assim, fazem o jogo que interessa aos capitalistas, pois quanto mais individualizadas e isoladas as pessoas, mais os capitalistas exploram a todos/as. Atrair o povo para o interno das igrejas e propor cultos várias vezes por semana é uma forma de impedir a participação do povo sofrido nas lutas coletivas por direitos. Muitos alegam “não posso ir participar de uma reunião, de uma assembleia ou de uma luta concreta por direitos, porque tenho que ir para o culto na minha igreja.”

Outro projeto político-religioso, do qual estamos sofrendo as consequências dramáticas aconteceu nos 34 anos de pontificados de João Paulo II e Bento XVI, de 16/10/1978 a 28/02/2013, que foram dois papas que incensaram e fomentaram aos quatro ventos os movimentos religiosos espiritualistas, moralistas, fundamentalistas, tais como Legionários de Cristo, Comunhão e Libertação, Renovação Carismática, que desaguaram na aparição de um grande número de “Novas Comunidades” com estilo medieval e Institutos bancados economicamente por empresários e que se dedicam a fazer apenas caridade aos empobrecidos. Criaram as chamadas “TVs católicas”, como a TV Rede Vida e a TV Canção Nova, que tiveram apoio econômico do banqueiro José Eduardo Andrade Viera, dono do Banco Bamerindus, que chegou a ter mil agências no Brasil.

Papas conservadores nomeavam padres conservadores para serem bispos, que escolhiam padres conservadores para serem reitores de seminários, que acolhem jovens vocacionados que vêm de famílias integrantes de movimentos espiritualistas e fundamentalistas. Assim, em efeito dominó se disseminou o paradigma religioso fundamentalista, espiritualista e moralista na igreja católica e de modo parecido nas igrejas (neo)pentecostais.

Nesta aliança não confessada entre o imperialismo dos EUA, os papas João Paulo II e Bento XVI e os grandes bispos das igrejas (neo)pentecostais, o povo chicoteado diariamente pela horripilante injustiça socioeconômica foi empurrado para os braços da extrema direita política, os fascistas. Isto pavimentou o caminho para a eleição de um presidente que “só sabia matar”, não tinha empatia pelo povo que sobrevivia asfixiado pelo capitalismo e pela pandemia da Covid-19.

A esquerda tradicional ou clássica deixou de ser a referência primordial para o povo empobrecido, porque via de regra ignora a dimensão religiosa das pessoas, considerando “religião como ópio do povo” e justifica a luta por direitos apenas com argumentos filosóficos e sociológicos das ciências humanas, mas o povo simples se rege pelas pré-compreensões religiosas que definem grande parte das suas opções na vida.

Eis dois exemplos concretos: Nas cinco Marchas que fizemos da Ocupação Dandara, na região norte de Belo Horizonte, 28 km a pé até o centro da capital mineira, observei um fato interessante ao animar a Marcha, ao lado do carro do som no microfone; enquanto o povo marchava, mais de 1000 pessoas, eu ia chamando as lideranças das Brigadas Populares, advogados populares, militantes da Rede de Apoio, para se revezar no microfone e animar a caminhada. Enquanto falavam os militantes dos Movimentos Sociais Populares, a argumentação para animar a Marcha de luta por terra e moradia adequada era exclusivamente sociológica, filosófica e jurídica. Diziam “nós estamos na luta por moradia, porque está escrito na Constituição de 1988 que a propriedade tem que cumprir a função social, que temos direito à terra, à moradia e a muitos outros direitos.” Após todas as lideranças falarem no microfone, eu disse: “Povo de luta, irmãos e irmãos, quem quiser usar a palavra aqui no microfone, venha pra cá, por favor.” As pessoas da Ocupação Dandara começaram a falar e o que mais foi ecoado foram hinos religiosos, orações pedindo para Deus impedir o despejo, desabafo tipo “Deus, não aguento mais a cruz do aluguel, tenho quatro filhos para criar e meu companheiro está preso. Deus, socorre-nos! Senhor Deus, toca no coração do juiz para não autorizar o despejo. Senhor, abranda o coração do prefeito”.

Em uma Assembleia com o Povo na Ocupação Rosa Leão, na Izidora, uma pastora pegou o microfone e começou a cantar: “Quando nós aqui ocupamos, o Senhor já estava na ocupação. Quando nós aqui chegamos, o Senhor já estava passeando na Ocupação…” Enfim, com profunda fé, o povo animava a luta por terra e moradia. Aprendemos a gritar juntos: “Com luta e com fé as casas ficam em pé!”

Todas as ciências humanas são imprescindíveis, inclusive a teologia. Em uma sociedade religiosa não dá para ser analfabeto religioso. A Teologia da Libertação já demonstrou que quanto mais a pessoa está sufocada, desempregada, superexplorada, adoecida, quanto mais crucificada, humilhada, mais ela sente a necessidade de recorrer à dimensão espiritual. Os povos indígenas são doutores nesse assunto porque nas lutas eles cantam o tempo todo, invocam seus ancestrais. O cacique Arapowanã do Povo Xukuri-Kariri gosta de dizer: “Lutemos 30%, pois o Grande Espírito lutará os outros 70% por nós”. A mística e espiritualidade das Religiões de matriz africana – Candomblé, Umbanda etc. – reconhecem e celebram a sacralidade da natureza. Mística e espiritualidade animam as lutas dos povos Originários e Tradicionais.

Ao observar os sinais dos tempos e dos lugares, vejo que este megaprojeto de dominação está todo podre e começando a se desintegrar, porque suas contradições estão vindo à tona. Apenas no primeiro semestre de 2024, mais de 80 pastores foram presos porque tinham cometido crimes: corrupção, pedofilia, feminicídio etc.

Enfim, é hora de superarmos o analfabetismo religioso, o que passa para quem é pessoa cristã por não abrir mão da ética e de nenhum princípio originário libertador ensinado e testemunho por Jesus Cristo, que combateu o bom combate, foi bom samaritano, mas também enfrentou os opressores e os exploradores dos poderes político, econômico e religioso. É assustador e muito preocupante o que está acontecendo por influência das práticas religiosas fundamentalistas, a serviço da extrema direita. Suas lideranças estão ocupando espaços públicos significativos. De fato, não se sustentam. Entretanto, é fato também  que a religião é identidade mobilizadora do nosso povo e isso deve ser, de alguma forma, considerado na construção de narrativas, mobilizações no campo popular, a serviço de melhor compreensão do mundo, da história, como alfabetização política mesmo.

Notas:

[1] Unidade de Terapia Intensiva.

[2] Comissão Pastoral da Terra (CPT), Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Pastoral Operária (PO), Pastoral Carcerária, entre outras.

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