Um Sertão saudável com o reuso da água

Após o programa de 1 milhão de cisternas, Articulação do Semiárido propõe os “200 mil sistemas de reuso”. Histórias de Zé Nosso, Zé Lito e Luzia mostram: o tratamento hídrico melhora a produção agrícola e mitiga a insegurança alimentar. Assistência técnica foi essencial

Por Inácio França, no Marco Zero

Durante as duas décadas em que foi dono de uma loja, José Nilton Pereira de Souza, de 57 anos, nunca deixou de sonhar com o dia em que voltaria a morar na roça. Com o tempo, juntou as economias e comprou um sítio de oito hectares com uma casinha mal cuidada na comunidade do Frade, não muito longe do Riacho Seco, distrito do município de Curacá, no sertão do São Francisco, onde vivia e trabalhava em sua revenda de peças de motos.

No início, a propriedade era quase um passatempo, onde José Nilto, que é conhecido pelos vizinhos pelo sugestivo apelido de Zé Nosso, passava os finais de semana mais dedicado aos reparos na casa do que a cuidar da incipiente lavoura. Mudar-se em definitivo estava fora de questão, tanto pela impossibilidade de produzir sem contar com um fonte d’água, tanto para a agricultura quanto para consumo da família, além do desconforto que seria viver sem saneamento básico.

Tudo mudou durante a pandemia. Para escapar do coronavírus, Zé Nosso levou toda a família para o sítio. Apresentado pelos vizinhos agricultores à equipe técnica do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA), organização não governamental que atua na região desde os anos 1990, primeiro ele instalou cisternas para captação de água da chuva.

Quando soube da existência do sistema de reúso de água, vendeu o negócio no distrito e investiu todo o dinheiro na propriedade. O hidrômetro instalado pelo IRPAA informa que, após três anos, 280 mil litros da água utilizada pela sua família de quatro pessoas no banheiro e na cozinha foram reutilizados. “Essa água serve para fertilizar e irrigar ao mesmo tempo. A gente evita usar nas verduras e legumes, para não contaminar, então ela irriga os pés de tangerina, mamão, algodão, cana-de-açúcar, capim e palma”, explica Zé Nosso.

De acordo com o zootecnista e assessor técnico do IRPAA, André Rocha, “o hidrômetro não é um componente essencial dos sistemas de reúso mas, se faz importante em unidades experimentais ou de fins didáticos, por gerar dados sobre o volume de água reutilizados. Isso favorece o convencimento acerca da importância dessa prática para as famílias que tem dificuldade obter água para produção agrícola, e consequente determinação da relação custo-benefício, considerada boa, para a inserção dos mesmos nas futuras políticas públicas de Estado”.

Segundo Rocha, apesar do reaproveitamento rudimentar, sem tratamento, ser feito há bastante tempo por famílias do semiárido que deixavam escoar as “águas cinzas” – usadas no chuveiro, lavanderias e pias – para áreas do quintal, ainda há estranheza quando os técnicos propõem a adoção de sistemas de reúso da água.

Da estranheza à maravilha

Foi o caso de Zé Lito e dona Luzia, um casal de idosos que vivem no Esfomeado, outra comunidade rural de Curaçá.

“Quando o agente de saúde chegou aqui falando de reúso, a gente não entendeu nada. Aí, depois, quando veio a técnica agrícola explicando que tinha de arrancar um bocado da palma plantada, achei mais esquisito ainda”, conta Joselito Borges da Silva, de 79 anos, o Zé Lito. A necessidade de retirar a palma foi para garantir espaço para a construção do sistema de reúso, na verdade, pequenas estações de tratamento d’água que requerem algumas dezenas de metros quadrados para serem implantadas.

Dois anos depois, Zé Lito celebra: “eu duvidei, mas hoje eu tô vendo que é uma maravilha!” O hidrômetro do equipamento marca que, em dois anos, o casal reaproveitou 125 mil litros de água.

Sua esposa, Luzia Ventura da Silva, de 70, relembra como era o quintal antes da instalação do sistema. “A água se perdia toda, corria pela valeta aquela água preta, juntava mosca e fedia demais. A gente nem matava as galinhas para comer porque elas viviam bicando aquela nojeira”, explica.

O casal divide as tarefas no manejo do sistema. Ela é quem faz a limpeza da caixa da gordura e cuida das fruteiras, enquanto ele limpa o filtro e opera uma peça que os técnicos chamam de “reator biológico”, um grande recipiente coberto por uma tela onde as bactérias fazem o “serviço sujo” de transformar a água usada nos banheiros em uma “bioágua”, limpa o bastante para ser usada sem sustos na agricultura.

Presidente da associação dos agropecuaristas do Frade, Viviane Costa Paiva também é a agente de saúde que atende a comunidade. Em sua rotina de acompanhar os casos de doença nas famílias dos sítios, principalmente em crianças e pessoas idosas, ela não tem dúvidas dos impactos do reúso. “É muito grande a diferença porque aqui não tinha banheiro, então a gente degradava o solo na questão de não ter banheiro, ser tudo esgoto a céu aberto. As residências que conseguiram obter o reúso, hoje elas têm um tratamento, a água tá lá guardadinha, não é aquela coisa que fica a criança na sujeira”, explica.

Viviane tem certeza que a melhoria na saúde da sua vizinhança também está relacionada à alimentação. “A desnutrição aqui não era total, não, mas tinha famílias que passavam por mais dificuldades porque a casa era cheia de filhos e o alimento era pouco. Eu mesma comia muito xique-xique assado, mas minhas filhas não sabem nem o que é”, comenta Viviane, acrescentando que, “naquela época não tinha Bolsa Família, não tinha esses programas sociais que também ajudam as famílias daqui”.

Meta: 200 mil sistemas

Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), a rede de entidade que, no início do século, criou a bem sucedida campanha pela construção de 1 milhão de cisternas, deu o pontapé inicial para articular a implantação de 200 mil sistemas de coleta e tratamento de esgoto e reúso de água como aqueles que mudaram os roçados da família de Zé Nosso e do casal Zé Lito e Luzia, no sertão baiano.

De acordo com André Rocha, que também faz parte do grupo de trabalho da ASA que busca a universalização do saneamento básico rural, esse seria a quantidade mínima “para dar escala de atendimento à demanda potencial, mas a necessidade é bem mais ampla”. Tal como aconteceu no caso das cisternas, o objetivo é mobilizar sindicatos e associações no âmbito dos municípios para, na esfera dos governos estaduais e Governo Federal, incluir o tema na elaboração das políticas públicas. “Vários ministérios, secretarias e instituições estão sendo procuradas”, revela.

Rocha estima que, atualmente, o IRPAA já implantou cinco mil sistemas familiares, além de dois que tratam o esgoto em escala comunitária e, ao menos, 30 em escolas rurais. “Com exceção do Maranhão, todos os estados do Nordeste, bem como no semiárido de Minas Gerais, há sistemas de reúso em operação”, explica. No Ceará são três mil, além de dezenas de unidades nos outros estados.

“As organizações que promovem a difusão do reúso de água não são apenas as que fazem assistência técnica rural, como o IRPAA, mas várias outras ligadas à luta por acesso água, instituições de ensino, ambientalistas do segmento de agricultura familiar, agroecologia e Convivência com o Semiárido”, explica.

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

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