Ao contrário do que o paradigma neoliberal afirma, uma saída para a encruzilhada do aquecimento global passa pela construção de políticas públicas capazes de ir na contramão do consumo desenfreado e de uma economia dependente dos combustíveis fósseis
Por: IHU e Baleia Comunicação
O estímulo a atividades econômicas baseadas em combustíveis fósseis, incentivadas por meio de políticas públicas, é mais um dos fatores que agrava a crise ambiental planetária. “O desequilíbrio climático é fruto de políticas públicas”, afirma o professor João Pedro Schmidt. Isto significa que “a correção de rumos necessariamente passa por políticas públicas. Isso porque a ação individual, mesmo que meritória, tem pouco efeito para conter o aquecimento global que resulta do modo de produzir e de viver de 8 bilhões de pessoas”, complementa o pesquisador.
Schmidt, que acaba de lançar o livro Mudanças climáticas: por que o mais grave problema da humanidade não se tornou o problema político nº 1?, coloca que “o desflorestamento da Floresta Amazônica, por exemplo, foi impulsionado pela construção da Transamazônica, visando a ocupação dessa região”, exemplifica. Assim como, “o aumento dos agrotóxicos e fertilizantes químicos foi incrementado a partir de políticas inspiradas na ‘revolução verde’ das décadas de 1960 e 1970”, complementa.
Na entrevista a seguir, concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU por e-mail, João Pedro Schmidt frisa que a solução não está no individualismo e na lógica da acumulação infinita, mas na “indispensável visão colaborativa”. Para ele, “o nó da questão é o capitalismo, as engrenagens mundiais assentadas na lógica do lucro, da acumulação de riquezas, da natureza como um mero insumo do processo econômico”, esclarece. “Esta lógica vem atrasando mudanças que poderiam e deveriam ser céleres e articuladas sistemicamente”, pontua.
A crise climática e o Estado de bem-estar, segundo o autor, constituem uma questão política que precisa ser trabalhada. Para sair desse imbróglio, ele propõe um novo projeto ideológico para a esquerda, a partir do “abandono do objetivo do crescimento econômico ilimitado”. Segundo aponta, “o discurso da esquerda ainda é majoritariamente de inclusão dos pobres pela via do consumo, deixando aberta a porta à ideia de que a utopia socialista consiste na socialização do consumismo”. E deixa claro que “o ideal do crescimento permanece válido apenas para bens imateriais, presentes na educação, na ciência, nas artes”, assinala.
João Pedro Schmidt é graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Imaculada Conceição (1982), mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1988) e doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2000). Em 2016, fez pós-doutorado na The George Washington University (Washington, D.C.). É professor titular da Universidade de Santa Cruz do Sul – Unisc, atuando no PPG em Direito (Mestrado e Doutorado).
Confira a entrevista.
IHU – Eu gostaria de começar a entrevista pelo subtítulo do seu livro recém-lançado: por que o mais grave problema da humanidade, as mudanças climáticas, não se tornaram nosso problema político nº 1?
João Pedro Schmidt – Busquei colocar no subtítulo uma das mensagens centrais do livro: estamos diante da mais grave ameaça à humanidade, mas esta ameaça é tratada como um problema entre outros. É um problema social que já se tornou um problema político, pois vem chamando a atenção das autoridades há décadas, mas vem sendo tratado como um problema entre outros. Não deveria ser tratado como um problema político entre outros porque, pois, de forma semelhante à ameaça nuclear, ele representa um risco existencial à espécie humana. É um problema que afeta a todos os demais e que, se não for resolvido, nenhum outro poderá ser resolvido.
IHU – De um ponto de vista científico, o que são as mudanças climáticas? Quais evidências a sustentam e porquê esses fenômenos não são naturais?
João Pedro Schmidt – Mudanças climáticas constituem um desequilíbrio do clima vigente. Segundo os paleoclimatólogos, a Terra, ao longo de seus 4,3 bilhões de anos, teve muitas mudanças climáticas, com temperaturas extremamente altas e extremamente baixas. No passado remoto, as mudanças climáticas ocorreram lentamente, ao longo de milhões de anos. As atuais mudanças são totalmente distintas. Em cerca de 250 anos, desde a revolução industrial, o clima está sendo alterado rapidamente em função da emissão de gases de efeito estufa com origem em atividades humanas, oriundas especialmente da indústria petrolífera, do desmatamento e do uso inadequado do solo.
As evidências de que as atuais mudanças climáticas não são naturais assentam-se especialmente na constatação científica da correlação entre duas variáveis: a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera e as temperaturas médias do planeta. Mais concentração de gases de efeito estufa levam a maiores temperaturas. Os primeiros experimentos científicos feitos no início do Século 19 vinham indicando esta correlação. No final do Século 20 já havia amplo consenso científico em torno desta correlação, corroborada pelo aumento da temperatura global, mensurada por instrumentos meteorológicos cada vez mais sofisticados, e das seríssimas consequências do aquecimento global. Porém, o negacionismo climático impediu que este consenso científico se tornasse um consenso social.
IHU – Em termos de legislação ambiental, como o tema foi tratado no Brasil desde o começo do desenvolvimentismo, nos anos 1930, até hoje?
João Pedro Schmidt – Uma coisa é a legislação, outra coisa é uma política pública efetiva. A legislação ambiental não foi ignorada no período desenvolvimentista. Na década de 1930, foram instituídos o Código de Águas e o Código Florestal. Nos anos 1960, a Lei de Proteção à Fauna e o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal. Em 1981 foi aprovada a Política Nacional do Meio Ambiente e criado o Sistema Nacional do Meio Ambiente. A partir da redemocratização, diversos novos instrumentos jurídicos foram criados. Mas, na prática, a legislação foi insuficiente para evitar o desmatamento da Mata Atlântica e da Floresta Amazônica, o aumento da poluição, o uso de fertilizantes químicos e de agrotóxicos. Isto se aplica também à questão climática. Desde 2009 temos o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima e a Política Nacional sobre Mudança do Clima, mas nossas emissões aumentaram em boa parte das últimas décadas.
IHU – Há políticas públicas que contribuem para o desequilíbrio climático? Quais são e como elas funcionam?
João Pedro Schmidt – As emissões de gases de efeito estufa provêm de atividades econômicas baseadas no uso de carvão, petróleo e gás mineral, no desmatamento e queimadas, no uso inadequado do solo, incluindo a agricultura e pecuária convencionais, e em técnicas construtivas convencionais. Todas essas atividades econômicas são impulsionadas por políticas públicas. O desflorestamento da Floresta Amazônica, por exemplo, foi impulsionada pela construção da Transamazônica, visando a ocupação dessa região. O aumento dos agrotóxicos e fertilizantes químicos foi incrementado a partir de políticas inspiradas na ‘revolução verde’ das décadas de 1960 e 1970. A expansão da indústria automobilística em lugar do transporte ferroviário, a obsolescência planejada e o consumismo, em tudo há ações ou omissões políticas. Como pano de fundo dessas políticas está a ideia suicida do crescimento econômico ilimitado, difundida a partir da Grande Aceleração, deflagrada nos anos 1950 nos Estados Unidos.
IHU – Por outro lado não seria, justamente, papel das políticas públicas corrigir os rumos que nos levaram ao colapso climático?
João Pedro Schmidt – Certamente. O desequilíbrio climático é fruto de políticas públicas e a correção de rumos necessariamente passa por políticas públicas. Isso porque a ação individual, mesmo que meritória, tem pouco efeito para conter o aquecimento global que resulta do modo de produzir e de viver de 8 bilhões de pessoas. Somente ações coletivas em larga escala, coordenadas por autoridades com legitimidade pública, têm capacidade de reduzir a emissão de gases de efeito estufa e talvez reduzir a concentração atmosférica desses gases. São exemplos importantes os investimentos públicos em energias limpas, a repressão a desmatadores, o incentivo a agricultura e pecuária regenerativas, o estímulo ao uso de técnicas construtivas inovadoras e diversas outras formas sustentáveis de produzir e viver.
IHU – Qual deveria ser o novo projeto ideológico para a esquerda e os setores progressistas diante da crise climática?
João Pedro Schmidt – A grande marca do novo projeto ideológico da esquerda me parece está no abandono do objetivo do crescimento econômico ilimitado. Este objetivo é suicida e fonte de incompreensões entre a esquerda e os ambientalistas. A luta pela inclusão social não depende do crescimento econômico constante, depende de justiça social e de um novo ideal de vida marcado pela simplicidade, de foco no essencial, e este é o único ideal que me parece compatível com um planeta limitado. O discurso da esquerda ainda é majoritariamente de inclusão dos pobres pela via do consumo, deixando aberta a porta à ideia de que a utopia socialista consiste na socialização do consumismo.
IHU – Como a busca pelo bem-estar social, nos termos do pós-Guerra no norte global, conduziu-nos à destruição ambiental em larga escala e ao desequilíbrio climático planetário?
João Pedro Schmidt – O fim da 2ª Guerra Mundial possibilitou a consolidação dos Estados de bem-estar nos Estados Unidos, na Europa e em outros países, alicerçados no capitalismo da superprodução e do superconsumo. É o que vem sendo designado pela literatura das ciências sociais de Grande Aceleração, que consistiu em uma aceleração dramática e simultânea de vários indicadores socioeconômicos e ambientais a partir da década de 1950. Entre os indicadores sociais houve aumento notável na população total, na população urbana, no PIB, no consumo de água e de fertilizantes, no transporte, no papel, nas telecomunicações e no turismo. Entre os indicadores relacionados ao sistema Terra houve grande aumento na concentração de dióxido de carbono, de metano, de óxido nitroso e ozônio estratosférico, na temperatura de superfície, na acidificação dos oceanos, no nitrogênio em áreas costeiras, aumento de terras cultivadas, perda de florestas tropicais e degradação de biomas terrestres.
IHU – Pensando complexamente o tema, as consequências das mudanças climáticas e a responsabilidade pela interrupção dos processos que a colocam em marcha não são somente do Estado, mas também da sociedade civil e setor privado (mercado). Como articular todos esses entes em direção a um bem-estar sustentável?
João Pedro Schmidt – A tarefa é hercúlea e nenhum setor isoladamente dará conta dos desafios de em poucas décadas reverter o processo de degradação ambiental e desequilíbrio climático deflagrado a partir da revolução industrial. É indispensável uma visão colaborativa. Ao Estado cabe o papel de articular e coordenar as políticas climáticas, mas a comunidade (sociedade civil) e as empresas (setor privado) também são fundamentais. O aspecto positivo é que já conhecemos os principais caminhos: energias limpas e renováveis, substituir a dependência do automóvel particular por transporte público, ciclismo e caminhadas, reflorestamento em massa, técnicas construtivas inovadoras, agricultura e pecuária regenerativas. O nó da questão é o capitalismo, as engrenagens mundiais assentadas na lógica do lucro, da acumulação de riquezas, da natureza como um mero insumo do processo econômico. Esta lógica vem atrasando mudanças que poderiam e deveriam ser céleres e articuladas sistemicamente.
IHU – Como o comunitarismo e o decrescimento contribuem na busca de alternativas à encruzilhada ambiental (em última medida vital) que nos metemos?
João Pedro Schmidt – O comunitarismo responsivo ou liberal, especialmente na formulação do sociólogo Amitai Etzioni, com o qual desenvolvi estudos de pós-doutorado em 2016, tem um conjunto de formulações muito interessantes em torno da importância da vida comunitária e dos vínculos sociais para o bem-estar pessoal e social.
Sob a perspectiva comunitarista, o contentamento profundo vem da mutualidade, da vida comunitária e da espiritualidade. Esta abordagem está alicerçada em amplas pesquisas sociológicas, além de recuperar saberes da filosofia e de outras tradições milenares.
As teorias do decrescimento são convergentes quanto aos valores defendidos pelos comunitaristas, mas trazem contribuições de outra ordem: fazem a crítica radical ao objetivo do crescimento econômico ilimitado. É preciso parar de crescer já, em termos de produção material. O ideal do crescimento permanece válido apenas para bens imateriais, presentes na educação, na ciência, nas artes.
IHU – Quais são os cinco pilares do sistema socioeconômico sustentável que o senhor aborda no livro?
João Pedro Schmidt – Elenco no livro cinco pilares fundamentais.
• O primeiro é a redução seletiva da produção econômica: devemos produzir o que é importante para o bem-estar, assegurando um patamar de comodidades básicas a todos.
• O segundo é a durabilidade máxima planejada, ou seja, o oposto da obsolescência planejada.
• O terceiro é a redução seletiva do consumo, substituindo o consumo desregrado pelo foco no essencial ao bem-estar.
• O quarto é a redução da jornada de trabalho, um objetivo social afirmado já no Século 19 e que vem merecendo atenção reduzida nas lutas sociais recentes.
• O quinto é um novo modo de vida, caracterizado pela simplicidade sofisticada e elegante.
No seu conjunto, estes pilares possibilitam o bem-estar sustentável, viável em um planeta mais quente, desde que sejam adotadas medidas de redução das emissões de gases de efeito estufa e de redução da concentração atmosférica desses gases. Uma tarefa nada fácil, mas ainda viável.
IHU – Deseja acrescentar algo?
João Pedro Schmidt – O e-book do livro pode ser baixado gratuitamente aqui.
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Políticas públicas de impulso ao agronegócio fomentam a tragédia climática |Foto: José Medeiros/Sudeco