Após tragédia, clima entra nos planos de candidatos a Porto Alegre, mas com limitações

Enchentes fizeram assunto ganhar relevância na disputa eleitoral, mas especialistas apontam fragilidades

Por Rafael Oliveira | Edição: Giovana Girardi, em Agência Pública

As chuvas que atingiram Porto Alegre e o Rio Grande do Sul entre abril e maio deste ano deixaram um rastro de destruição e de mortes, expondo falhas no sistema de proteção contra enchentes da capital gaúcha e a incapacidade do poder público local de lidar com os efeitos da crise climática. Ao menos no papel, a dimensão da tragédia fez com que o assunto ganhasse relevância inédita na disputa eleitoral porto-alegrense, com a maior parte dos candidatos à prefeitura abordando ao menos uma parcela da pauta climática com centralidade em seus programas de governo.

Agência Pública leu os planos registrados na Justiça Eleitoral dos quatro candidatos ao comando da capital gaúcha mais bem posicionados nas pesquisas, além de acompanhar os debates promovidos pela Rádio Gaúcha, em 6 de agosto, e pela Rede Bandeirantes, dois dias depois. Também ouviu pesquisadores em hidráulica, comunicação de riscos e direito dos desastres, que avaliaram os pontos principais dos programas de governo dos candidatos com maior intenção de voto.

Os especialistas apontam que a maior atenção para a pauta climática é positiva, mas dizem que há limitações nas propostas apresentadas pelos candidatos. E que há dúvidas se as medidas serão efetivamente implementadas.

O foco de todos eles tem sido na reconstrução e modernização do sistema de diques de contenção e casas de bombas que protege Porto Alegre e que se mostrou insuficiente nas enchentes deste ano. As variações são sobre o tipo de obra defendida por cada candidato e há discordâncias sobre o fortalecimento ou a privatização do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae), órgão atualmente responsável pelo sistema.

As soluções técnicas para o sistema de proteção que aparecem nos programas dos candidatos – muitas delas formuladas junto a especialistas no tema – foram consideradas positivas por Guilherme Marques, professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mas ele pondera que essa política tem de ser pensada como algo a ser constantemente atualizado, conforme as condições climáticas forem mudando.

Por que isso importa?

  • Tragédia que afetou praticamente o Rio Grande do Sul inteiro e causou comoção nacional foi incorporada pelos candidatos à prefeitura da capital, que trazem propostas mais ou menos concretas para lidar com a mudança do clima.
  • Propostas, porém, não deixam claro como as medidas serão implementadas ou atualizadas conforme a piora do clima; planos trazem poucas medidas para reduzir as emissões de gases de efeito estufa.

Segundo Marques, falta atenção às ações mais ligadas à governança, como planos de contingência, revisão do Plano Diretor, criação de órgãos voltados para a questão do clima e implementação de sistemas de monitoramento e alerta.

“Neste segundo conjunto de medidas, as propostas tendem a ser mais genéricas, sem muitos detalhes sobre como serão implementadas e especialmente como serão financiadas e articuladas com a estrutura de governança já existente”, aponta o pesquisador, que é coordenador do Núcleo de Pesquisa em Planejamento e Gestão de Recursos Hídricos da UFRGS.

Na visão de Marques, antes de pensar em obras, o prefeito eleito vai precisar ter pessoal qualificado e recursos financeiros nos órgãos de governança. “[Sem isso,] não teremos, no futuro, os recursos necessários para manter e atualizar as soluções. Soluções precisam ser atualizadas porque sempre existem incertezas quanto ao clima e meio ambiente e porque nosso conhecimento é imperfeito”, afirma.

Fernanda Damacena, advogada e consultora especialista em direito dos desastres, meio ambiente e mudanças climáticas, também critica a pouca profundidade das propostas. “Precisamos de planos mais detalhados, que levem em consideração o gerenciamento de riscos e desastres de maneira ampla e tragam à população clareza em relação a questões como tempo de implementação e recursos financeiros que as tornarão efetivamente exequíveis”, afirma.

A professora Eloisa Beling Loose, da UFRGS, que pesquisa comunicação e mudanças climáticas, lembra que o estado já passou por outras situações de desastres, mas os governos anteriores tiveram poucas medidas efetivas para evitar que eles ocorressem novamente.

“Estamos em um momento em que a pauta tem apelo porque muitos ainda vivem os efeitos do desastre climáticos, mas é preciso ficar atento para ver o quanto as promessas associadas ao enfrentamento das mudanças climáticas serão, de fato, priorizadas na [próxima] gestão”, diz.

Até o momento, o prefeito Sebastião Melo (MDB) está à frente nas pesquisas eleitorais. Levantamento realizado pela Real Time Big Data e divulgado na última terça (3) aponta Melo com 40% das intenções de voto. Logo depois vem a deputada federal Maria do Rosário (PT), com 32%. A margem de erro é de 3 pontos percentuais. Juliana Brizola (PDT), também deputada federal, vem na sequência com 13%, enquanto o deputado estadual Felipe Camozzato (Novo) registrou 4%.

Melo nega responsabilidade pela tragédia e foca em ações já tomadas

Candidato à reeleição, Sebastião Melo dedica boa parte das 27 páginas de seu plano de governo a enaltecer os feitos de sua gestão. O candidato enfatiza as ações tomadas pela prefeitura no pós-enchente, incluindo o resgate e o acolhimento de moradores das áreas mais criticamente afetadas, medidas habitacionais e de socorro financeiro. Ele afirma ter destinado mais de R$ 800 milhões em ações em seis eixos, entre eles a reconstrução de equipamentos públicos destruídos pelas chuvas e uma série de medidas tributárias.

Nos debates promovidos pela Band e pela Rádio Gaúcha, Melo defendeu as ações de seu governo e fez críticas à atuação do governo federal, rechaçando as acusações de Maria do Rosário e de Juliana Brizola de que sua gestão tem responsabilidade na dimensão da crise que atingiu a capital gaúcha.

Segundo um grupo de 42 especialistas, no entanto, o sistema de proteção falhou porque não recebeu as manutenções permanentes necessárias por parte da prefeitura. O orçamento destinado para “melhorias no sistema contra cheias” foi de R$ 0 em 2023, como revelou o UOL – à época, a prefeitura alegou investimentos em outras áreas que se relacionam com o combate às enchentes. O município contabilizou cinco mortes e 46 bairros foram afetados, sendo que alguns deles ficaram debaixo d’água por mais de um mês.

Em seu plano de governo, o candidato à reeleição destaca o investimento em andamento de “um conjunto de R$ 510 milhões em obras de reconstrução de drenagem e segurança hídrica” e o desenvolvimento de um plano de ação climática que sua gestão está conduzindo em resposta às enchentes. Ele promete medidas junto à Defesa Civil, como a criação de um sistema de medição e alerta de riscos, a atualização do plano de contingência e a implementação de um centro de monitoramento e previsão do tempo.

Em Porto Alegre, o setor de energia, que inclui transportes, representa 58,3% das emissões de gases do efeito estufa – os responsáveis pelo avanço das mudanças climáticas. O setor de resíduos representa 32,9%, e a agropecuária e a mudança de uso da terra somam juntas 8,8%, segundo dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (Seeg).

O programa de governo do emedebista não fala diretamente das causas das mudanças climáticas, trazendo como principal proposta de redução de emissões a ampliação da frota de ônibus elétricos, sem especificar quanto. Há 12 veículos do tipo na cidade atualmente. Não há medidas relacionadas ao setor agropecuário. No setor de resíduos, o plano defende apenas parcerias público-privadas na coleta de lixo e na destinação de resíduos.

Para Eloisa Beling Loose, da UFRGS, pouco se fala das causas da crise climática, durante e fora do período eleitoral. “A população sabe o que são esses gases [do efeito estufa]? Onde eles estão? Quais atividades são mais emissoras? O que deve ser feito para reduzi-los ou evitá-los? Se queremos fugir dos piores cenários já traçados pelos cientistas do clima, falar sobre o que nos trouxe até aqui é relevante”, aponta.

Ainda que não dê “nome aos bois” da crise climática, a atenção dada à pauta no plano de governo de Melo em 2024 contrasta positivamente com o programa que ele registrou em 2020, quando venceu a eleição no segundo turno contra Manuela d’Ávila (PCdoB) com 54,6% dos votos.

Na época, o plano de Melo não fazia nenhuma menção aos recorrentes problemas da capital gaúcha com as chuvas. As únicas propostas relacionadas à questão climática eram recuperar as nascentes do Guaíba e dar descontos no IPTU para imóveis que adotassem medidas de sustentabilidade ambiental. Segundo monitoramento do G1, o prefeito cumpriu parcialmente o primeiro plano e integralmente o segundo.

Em seu programa de 2020, Melo defendia também o autolicenciamento ambiental. Nessa modalidade, o empreendedor se compromete a respeitar as normas ambientais e o poder público apenas atua como órgão fiscalizador, sem realizar análise prévia. A medida é criticada por especialistas por ir de encontro aos princípios da precaução e da prevenção, já que danos ambientais são frequentemente irreversíveis, e é necessário evitar que eles ocorram, e não apenas atuar quando eles já ocorreram.

Um projeto de lei instituindo a medida foi aprovado no final de 2020 – com voto favorável do candidato à prefeitura do Partido Novo, Felipe Camozzato, então vereador – e sancionado por Melo no início de seu governo. Medida semelhante foi sancionada pelo governo estadual de Eduardo Leite (PSDB) e há um projeto de lei com essa proposta tramitando no Congresso Nacional.

Rosário fala em “cidades-esponja” e defende transição energética

Favorita a enfrentar Sebastião Melo em um segundo turno da eleição de 2024, a deputada petista Maria do Rosário aborda a questão climática na maior parte das 57 páginas de seu plano de governo, denominado “POAção”. Logo na introdução, a candidata afirma que a tragédia foi construída pelo “negacionismo e imobilismo diante das mudanças climáticas” e pelo “desmonte da gestão pública, desvalorização de seus peritos, técnicos e engenheiros”.

Entre os planos de governo dos principais candidatos, o de Rosário é o que mais claramente reconhece as mudanças climáticas como “uma realidade”. Ela aponta que é fundamental a adoção de “medidas de mitigação, adaptação, proteção e também de recuperação” para que Porto Alegre se torne menos vulnerável a eventos climáticos.

A candidata defende a “modernização e manutenção do sistema de contenção de enchentes”, a adoção de estratégias como as das chamadas “cidades-esponja”, que usam soluções baseadas na natureza para absorver as águas da chuva, e medidas para fazer frente à nova realidade climática, como a recuperação de áreas verdes degradadas, educação ambiental e transição energética.

O programa de governo da petista propõe a formulação de um plano de contingência para enfrentamento de eventos extremos com participação da sociedade, a reestruturação do Dmae e a criação de uma estrutura pública dedicada à drenagem e proteção, nos moldes do Departamento Municipal de Esgotos Pluviais (DEP), extinto em 2017.

No campo da habitação, Rosário defende que haja a remoção de famílias de áreas de risco de maneira dialogada e, em casos específicos, com a adoção de medidas para evitar novas ocupações.

Nos debates, Rosário disparou contra a atuação do atual prefeito e defendeu a participação do governo Lula (PT) frente à tragédia climática que acometeu Porto Alegre, prometendo agir em conjunto com o governo federal na reconstrução da capital gaúcha. A candidata foi a única a falar em sustentabilidade, transição energética e em emissões de gases do efeito estufa ao longo dos debates.

Brizola e Camozzato discordam sobre futuro do Dmae

Terceira colocada nas pesquisas, Juliana Brizola (PDT) também abordou o tema de maneira recorrente ao longo de seu programa de governo, que tem 55 páginas. O programa da deputada federal para 2024 é bem mais focado na questão climática do que o de 2020, quando o problema dos alagamentos e propostas ambientais apareceram timidamente. Ela ficou em quarto na ocasião, com 6,4% dos votos.

O programa de Brizola para esta eleição traz propostas para a recuperação e modernização do sistema de proteção contra enchentes e a criação de um sistema de monitoramento e alerta integrado, de uma gerência do clima no Dmae e de um departamento de resiliência e proteção contra as cheias.

A pedetista defende ainda a atualização do plano diretor de drenagem urbana da capital gaúcha e a formulação de uma estratégia metropolitana de resiliência e adaptação às mudanças climáticas, em conjunto com municípios vizinhos a Porto Alegre, além de projetos de infraestrutura verde para redução de ilhas de calor.

A mitigação aparece somente em proposta de eletrificação da frota de ônibus. A candidata não aborda as causas das mudanças climáticas.

Um dos principais projetos de Brizola, defendido tanto no plano de governo quanto nos debates, é a criação de um fundo emergencial de R$ 50 milhões para socorrer micro e pequenos negócios afetados pelas enchentes, com crédito subsidiado e sem juros. Na área econômica, ela defende ainda redução de IPTU nos bairros mais afetados e repactuação de dívidas fiscais.

Já o candidato do Novo, Felipe Camozzato, tem como uma das principais bandeiras a privatização integral do Dmae, com a utilização dos recursos arrecadados na reconstrução e modernização do sistema de diques e bombas da capital, que ele considera mal executado. O deputado propõe ainda processar o governo federal “para buscar ressarcimento e atribuição de competência em relação ao sistema de proteção contra enchentes”.

Camozzato defende fortalecer a Defesa Civil municipal e a “capacitação de lideranças locais nas áreas de risco para atuar em conjunto” com o órgão, assim como a revisão e consolidação dos planos de contingência e de gestão de risco de Porto Alegre. Ele propõe investimentos em bacias de amortecimento de cheias, redução de impostos e a realocação de famílias que estão em zonas de risco. Defende também um sistema de monitoramento com alertas em tempo real.

O programa de governo do candidato do Novo reconhece que as mudanças climáticas são “ocasionadas por fatores como as ações antrópicas” e que isso tem provocado “um aumento da intensidade e da frequência de eventos extremos”. Camozzato não propõe, no entanto, ações de redução das emissões do município.

Outro lado

Pública contatou as assessorias de imprensa dos quatro candidatos. Até a publicação, apenas Felipe Camozzato e Maria do Rosário deram retorno.

O candidato do Novo afirmou que “o papel do prefeito é atuar tanto na prevenção quanto na mitigação dos riscos e dos impactos” e ressaltou que “é essencial colocar as pessoas certas nos lugares certos, garantindo uma administração focada em resultados”. Camozzato apontou também a importância de “se criar uma estrutura que vá além do nível municipal” no que diz respeito ao sistema de proteção contra enchentes, envolvendo governos estadual e federal.

Em relação a seu voto favorável ao projeto de autolicenciamento, defendeu a medida que, em sua visão, “não se contrapõe ao desenvolvimento sustentável, pois é aplicado para atividades de baixo risco ambiental”. Questionado sobre propostas na área da mitigação das mudanças climáticas, Camozzato defendeu medidas de adaptação, como parques e áreas verdes que acumulam água e diminuem os riscos de inundações. Leia a íntegra da resposta.

Já Maria do Rosário afirmou que “pensar um projeto de cidade com sustentabilidade socioambiental e qualidade desde o primeiro momento está no centro” suas preocupações como candidata, destacando medidas que tomou como deputada nessa seara. A candidata do PT afirmou que, caso eleita, vai trabalhar para efetivar as propostas relacionadas ao clima “desde a transição” e criticou a “irresponsabilidade na gestão financeira da atual administração”. Leia a íntegra da resposta.

Gustavo Mansur/Palácio Piratini

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