Ex-coach sabe engajar eleitorado por meio de emoções e implodir o debate público – tal como o ex-presidente. Seu desempenho nas eleições em SP será um termômetro para saber o quão despersonalizável é o sentimento (anti)político cultivado por Bolsonaro
por Caio César Pedron, em Outras Palavras
O que assistimos nas últimas semanas foi a expressão incivilizada de um postulante à liderança da extrema direita na cidade de São Paulo. Pablo Marçal apresentou ao grande público suas credenciais para concorrer à prefeitura da maior metrópole latino-americana como representante do sentimento político anti-establishment, memético e violento que outrora chamamos de bolsonarismo. Sabemos, desde o estudo seminal de Antônio Flávio Pierucci, que existe um reduto de direita na capital paulista, figuras díspares como Paulo Maluf, Jânio Quadros e até mesmo João Dória já se alçaram ao paço municipal com discursos fortemente alicerçados em uma moralização da política, na crítica seletiva a corrupção endêmica do Estado e no estímulo ao imaginário da insegurança pública generalizada.
O caráter singular do fenômeno bolsonarista é que ele conseguiu reativar a polarização política que foi anulada durante a hegemonia do lulismo, despertando novos e velhos anseios em diferentes estratos populacionais através de meios comunicacionais digitais. Enquanto o mainstream político – da esquerda ao centro – permanecia na dimensão analógica, os discursos fragmentados e incoerentes no meio virtual criavam um novo tipo de “corpo místico do rei”.
O carisma deste novo tipo de liderança estaria alicerçado em uma deslegitimação dos mecanismos de representação simbólica da democracia, portanto, procuraria desconstruir as regras de decoro e de convívio sem as quais não poderia haver qualquer tipo de espaço para o debate genuíno da Ágora. Contudo, mais do que apenas negar o direito de fala do outro, também colocaria em suspensão a própria crença na faculdade da representação política, tiranizando com suas intimidades a vida pública até que toda ela não passe de uma extensão da sua vida privada. Em outros termos, a alteridade republicana que marca a possibilidade de política, de relação entre iguais, é diluída em prol de uma que rememora mais uma dinâmica entre o senhor e o escravo.
O que estamos vendo nas eleições paulistanas e também em outras capitais do país é a disputa por esse espólio político cedido pelo ex-presidente, um fenômeno conhecido na literatura sociológica como rotinização do carisma, isto é, a .transmissão da legitimação carismática através de diferentes expedientes. O caso de Pablo Marçal é emblemático porque esse personagem corre por fora da aliança institucional celebrada entre o partido do ex-presidente e o atual prefeito da capital Ricardo Nunes, apresentando-se ao eleitorado como real representante do sentimento político bolsonarista. Marçal possui um grupo de seguidores radicais nas redes sociais, somado a um amplo domínio da expressão de si diante das câmeras e, além disso, tem capacidade de engajar emocionalmente seus adeptos de maneira bastante semelhante ou até mais competente do que o ex-presidente.
A imagem do debate ocorrido no dia 14 de agosto demonstra um tipo muito semelhante de quebra do decoro que assistimos durante todo o período em que Jair Bolsonaro governou o Brasil. Marçal está de boné em um ambiente fechado, usando um apetrecho que destoa do seu blazer – à semelhança do presidente salvadorenho Nayb Bukele. Empunha em sua mão o objeto que “exorcizaria” o seu oponente, uma carteira de trabalho, alusão a uma suposta aversão ao trabalho por parte do adversário. Tal imagem parece ser contraditória, quando pensamos na defesa que figuras como Marçal fazem de um suposto “empreendedorismo de si mesmo”, calcado em uma contraposição ao trabalho regido pela CLT.
A gestualidade truculenta e obscena serve como teste para ver o quanto de incivilidade o público poderia suportar, como quando Marçal sugere, através do seu movimento corporal, que dois dos candidatos que estavam à sua esquerda seriam usuários de drogas. A posição de franco atirador permite ao candidato explorar muitas formas de exposição ao público, testando a receptividade das redes a diferentes recortes e exposições de seus vídeos. Os cortes e as gravações com maior engajamento e circulação são financiados pela equipe do político, em uma espécie de livre concorrência dos memes. Nesse sentido, o candidato consegue alcançar o máximo de efetividade na estratégia de viralização de conteúdo nas redes sociais, técnica conhecida como ferramenta central da publicidade bolsonarista.
A campanha de Pablo Marçal serve como teste para percebermos o quão personalizável em Bolsonaro está esse sentimento (anti)político, pois seria possível identificar um deslocamento – rotinização – se a parcela mais radical da direita paulistana migrar para este novo candidato com ou sem a anuência do próprio Bolsonaro. Mais do que isso, seria possível, no caso da inelegibilidade do ex-presidente permanecer para as eleições presidenciais de 2026, que o campo da extrema direita fosse conflagrado por diferentes postulantes carismáticos do bolsonarismo, colocando em risco a própria continuidade do projeto de poder da família Bolsonaro. As eleições municipais de 2024 servirão como laboratório de experimentos para a extrema direita brasileira, dos seus “ensaios” sairão as receitas ideológicas e as personagens que aparecerão nas próximas eleições estaduais e nacionais.
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Imagem: Christopher Ulrich, O Tolo