Meu 8 de janeiro. Por Paulo Capel Narvai

Reféns de bolsonaristas, os passageiros éramos observados com curiosidade, como animais no zoológico

No A Terra é Redonda

Para votar no segundo turno em Fernando Haddad, candidato ao governo paulista, embarquei num ônibus de Brasília para São Paulo no final da tarde da sexta-feira, 28 de outubro de 2022. Começava ali um episódio que me deixaria refém, por cerca de cinco horas, de um comando bolsonarista que bloqueou a Via Anhanguera, em Limeira.

No desfecho dos acontecimentos eu me vi no salão de embarque do aeroporto de Goiânia, na noite da terça-feira, 1º de novembro, ao lado de próceres da elite que liderava politicamente – e bancava economicamente – a baderna nas rodovias, em todo o Brasil, após a vitória de Lula à presidência da República.

A viagem de ida foi tranquila. Votar em Sampa, também. Mas a volta, que deveria ter início às 10h da manhã da segunda-feira, só começou no cair da tarde.

Aqueles foram dois dias tensos; as noites, de infâmia.

Logo após sair de São Paulo, o ônibus seguia na escuridão da noite e tudo parecia bem. Até que, de repente, a velocidade diminuiu muito, a rodovia ficou para trás e se seguiram sucessivas mudanças de rumo. Eu percebi que havia algo estranho, pois as luzes que vinham das casas e dos postes de iluminação atravessavam a cortina de pano das janelas do ônibus. Estávamos em uma cidade, que imaginei ser Campinas, supondo que passageiros ainda embarcariam. Mas o ônibus seguia serpenteando as ruas e nada de uma estação rodoviária. Sem entender o que acontecia, mas perdido em pensamentos bons, deixei o estranhamento de lado, certo de que tudo se normalizaria logo.

Os pensamentos bons eram sobre meu pai, falecido havia mais de trinta anos. Por esses insondáveis mistérios da mente, eu me lembrava, naquele momento, do dia em que ele pisou o gramado do campo de futebol em que também estava Mané Garrincha, já aposentado do futebol profissional e fazendo exibições pelo interior do Brasil. Meu pai e Garrincha jogaram por pouco tempo, não mais do que uns trinta minutos cada um.

Mas aqueles minutos foram suficientes para o assunto nos acompanhar pelo resto do tempo em que meu pai viveu. “No dia em que jogamos contra o time do Garrincha…” dizia, brincando – e reconhecendo que sempre tinha sido “perna-de-pau” jogando futebol. Mas caçoava dos amigos, falando do jogo contra o Garrincha. Certa vez, um amigo dele disse que tinha jogado contra o Pelé, ainda menino, em Bauru. Então, como se pode imaginar, a conversa ficou animadíssima. Eu lembrava dessas histórias, que me atenuavam as saudades dele, e parecia flutuar na poltrona do busão. Memórias que me faziam bem.

Pensava nisso, em paz e já quase desmaiando de sono quando, subitamente, o clarão que vinha de fora para dentro aumentou e o ônibus parou. Estávamos a uns 100 metros da Via Anhanguera – conforme constatei minutos depois.

A porta da cabine de passageiros se abriu e o motorista avisou: “Tivemos que parar, pois a Via Anhanguera está bloqueada. Ninguém está conseguindo passar. Me avisaram pelo celular que atravessaram vários caminhões nas pistas. Estamos em Limeira. Aguardem um momento que eu vou lá ver o que está acontecendo e já volto”.

A porta ficou aberta e, atrás do motorista foram descendo vários passageiros – eu, inclusive. Saí e me pus a observar outros que estavam do lado de fora e os que desembarcavam. Havia várias pessoas com idade avançada, crianças levadas pelas mãos de pais e mães e uma mulher grávida, com uma barriga imensa. Logo os passageiros formaram um círculo em volta do motorista e dessa roda se aproximaram três pessoas que se separaram de um agrupamento maior, que se concentrava nas margens da Via Anhanguera.

Ao ver os homens se aproximando, o motorista perguntou algo que não pude compreender. Um homem baixinho, que parecia liderar o grupo que mantinha o bloqueio anunciou: “Daqui não passa. Tá vendo esses aí na frente? – perguntou apontando para uma fila de caminhões e carros parados nos dois lados da avenida – Eles também tentaram furar o bloqueio pela cidade, mas foram pegos aqui. Agora, vão ficar aqui parados. Vocês também não vão sair daqui”.

Ao descer do ônibus eu tinha me dado conta de que estávamos parados numa avenida que liga a cidade à rodovia e deduzi que o motorista, percebendo ou tendo sido informado dos vários bloqueios que fechavam a Via Anhanguera, tentou um desvio passando pela área central de Limeira. Mas sua estratégia não funcionou.

Os que acompanhavam o homem baixinho e magro não abriam a boca. Pareciam ter a função de apenas proteger o tipo que liderava a ação.

O motorista buscava diálogo e, frente à sua insistência, outro anúncio, demonstrando força: “Não, não. Nem pra frente, nem pra trás – disse em resposta ao motorista que perguntou se poderia dar meia volta no ônibus e retornar – Está bloqueado e daqui ninguém sai”.

Ao ouvir isso, vários passageiros se manifestaram ao mesmo tempo, criando-se um princípio de confusão.

“Eu já disse que não sai. Hoje e amanhã, não sai. Só sai daqui em menos de 72 horas, se o comandante autorizar. Estamos defendendo a liberdade, nossos direitos e o futuro dos nossos filhos! – disse, quase gritando”.

– Comandante? Que comandante?

“O PR é o nosso comandante. Só aceitamos ordens que venham dele”.

Ao ouvir “PR”, de “presidente da República”, me dei conta imediatamente de que estávamos nas mãos de um comando bolsonarista, disposto a fazer o que fosse preciso para rejeitar o resultado das urnas, anunciado na noite anterior pela Justiça Eleitoral.

O homem baixinho, magro e agressivo, ao que tudo indicava, falava em nome do comando golpista que bloqueava a rodovia.

Um passageiro indicou para a grávida que, de pé e atônita, parecia não acreditar no que lhe estava acontecendo e perguntou sobre o que fazer se algo acontecesse com a gestante. Alguém comentou, tentando sensibilizar o “homem do PR”: “Esse ônibus vai para Brasília. Mas, de lá, ela e o marido ainda vão pegar outro ônibus para o interior do Tocantins”. Outro disse que havia no ônibus pessoas que precisavam tomar remédios e que, para isso, tinha uma hora certa.

– E se alguém passar mal ou morrer, quem será responsabilizado? – eu perguntei.

O homem baixinho, magro, agressivo e autoritário lançou sobre mim um olhar fulminante e ameaçador: “Você é petista? Você é do Lula? Porque, se tiver algum petista nesse ônibus…”.

“Calma, calma, meu senhor – interveio uma passageira. Aqui não tem nenhum petista, não. Somos passageiros e só queremos saber o que fazer se alguém passar mal. Estamos nesta viagem desde as 10h da manhã. Muitos nem almoçaram, estão só com um lanche, e o ônibus ainda não parou para o jantar. Então, tem gente com fome aqui. E não temos água”.

O homem baixinho, magro, agressivo, autoritário e sem experiência para lidar com situações como aquela que tinha ajudado a criar, ficou confuso com as perguntas, mas assegurou que enviaria em seguida lanches e refrigerantes. Deu as costas ao grupo de passageiros e sumiu entre carros, caminhões, motos e curiosos que vinham ver o que estava acontecendo. Dentre os curiosos, em suas motocicletas embandeiras de verde-amarelo e com adesivos de Jair Bolsonaro, estavam muitos moradores de bairros próximos que, com camisetas da seleção brasileira e da campanha do candidato derrotado no segundo turno, se juntavam aos bloqueadores da estrada.

Reféns de bolsonaristas, os passageiros éramos observados com curiosidade, como animais no zoológico.

Resignados, vários passageiros voltaram para o interior do ônibus. Permaneci do lado de fora, fiz algumas fotos e comecei a gravar um vídeo no celular. Ao perceberem a gravação, alguns passageiros pediram-me para parar, pois “eles podem não gostar. E até tirar seu celular”. Tinham razão. Parei.

O alerta tinha o mesmo significado de outros que, tantas vezes, ouvi quando estudante universitário em Curitiba, nos anos 1970, ao participar de reuniões do movimento estudantil. “Nada de fazer fotos. E não se deixe fotografar, por ninguém”. A sensação asfixiante, de estar em ambiente privado de liberdade, era rigorosamente a mesma. A iminência de que algo ruim pode acontecer a qualquer momento era idêntica. A percepção de que alguém tem controle sobre você, e que sua margem para reagir é pequena, era igualmente assustadora. Mais de quatro décadas depois, eu estava, outra vez, imerso em uma situação similar àquela em que várias vezes eu me encontrara sob a maldita ditadura.

Temi e, outra vez, senti medo. O homem baixinho, magro, agressivo, autoritário, inexperiente e ignorante, estava disposto a resolver ali, a derrota eleitoral “do PR”, o único de quem aceitava ordens. Não havia possibilidade de diálogo, de argumentar. Se eu “fosse do Lula”, deveria estar preparado para o pior.

Pareceu-me que o interior do ônibus era um lugar melhor para aguardar as 72 horas, ou até o momento em que “o comandante autorizar” o desbloqueio da estrada. Acomodei-me na poltrona, pensando nos embates travados na luta pela democracia. Era inacreditável para mim que aquele homem baixinho, magro, agressivo, autoritário, inexperiente, ignorante e fanático, argumentasse para os passageiros daquele ônibus que o que ele e seus comparsas faziam ali, naquele momento, bloqueando aquela e dezenas de outras importantes rodovias em todo o país, era a “defesa da liberdade” de “direitos” e do “futuro dos nossos filhos!”.

Doeu-me constatar que, dentre os passageiros, alguns balbuciavam palavras de concordância, como “isso mesmo”, “muito bem” – havia, entre os passageiros, cretinos tão infames quanto o fundamentalista a serviço “do PR” e seus cúmplices.

Meia hora depois chegaram sanduíches de pão de forma, com fatias de queijo e mortadela. E garrafinhas de água.

Quase três horas depois, o motorista foi autorizado a manobrar o ônibus e se dirigir a um posto de gasolina em que havia um restaurante, nas margens da Via Anhanguera, para que os passageiros pudessem jantar. Recebeu a ordem de que ali permanecesse, “até segunda ordem”.

No posto, vários passageiros desistiram da viagem, pois conseguiram hospedagem em hotéis de Limeira, ou tiveram a ajuda de amigos que residiam na cidade.

Passava da meia-noite quando o motorista avisou que prosseguiria a viagem, pois a Via Anhanguera tinha sido aberta para alguns ônibus e o nosso era um deles.

Essa história começou, para mim, em Brasília, na noite do domingo, 2 de outubro de 2022, quando o Superior Tribunal Eleitoral comunicou que haveria segundo turno em São Paulo. Desde que me aposentei na Universidade de São Paulo, praticamente me mudei para Brasília. Mas, mantendo ainda muitas atividades em São Paulo, inclusive na USP, onde sigo colaborando como professor sênior, mantive domicílio eleitoral no Butantã, bairro onde mora minha filha.

Nas eleições 2022 eu tinha dois desejos que se frustraram: o de que Lula seria eleito no primeiro turno e o de que não haveria segundo turno em São Paulo. No primeiro turno, votei “em trânsito” no Distrito Federal e pensei que ali se esgotaria meu papel de eleitor naquele pleito. Ledo engano. Resignado, decidi ir a São Paulo votar em meus candidatos.

Na noite do domingo 30 de outubro, comemorei a vitória de Lula e lamentei a infeliz decisão dos eleitores paulistas quanto ao titular do Palácio dos Bandeirantes. Na manhã da segunda-feira, 31 de outubro, tomei o ônibus de volta para casa, ainda remoendo a tristeza por Fernando Haddad.

Nunca cheguei, porém, de ônibus, ao destino final daquela viagem.

Após várias paradas entre Limeira e Goiânia, em que passageiros foram abandonando o ônibus, menos de uma dúzia chegamos ao terminal rodoviário de Goiânia, por volta do meio-dia da terça-feira, 1º de novembro. Acreditei que a viagem prosseguiria, mas o funcionário da empresa foi taxativo: “O senhor tem de descer. A viagem acaba aqui. Tem mala?’.

Respondi que estava apenas com a mochila, mas que minha passagem era até Brasília.

“Sinto muito, mas o ônibus não poderá continuar. Tem uns 15 bloqueios em Anápolis e a ordem da empresa é segurar o ônibus aqui em Goiânia. O senhor tem de descer e ver o que fazer”.

Esperei a bateria do celular carregar e liguei para casa. Minha família estava sem notícias desde Limeira. Fiz contas, comprei uma passagem área e fui para o aeroporto. O avião sairia no começo da noite.

No salão de embarque, logo me chamou a atenção o número de grupos de homens, falantes, sorridentes, alguns com semblantes indisfarçáveis de comemoração. Suspeitando do que motivava o clima quase festivo, que contrastava com a tensão das estradas e das avenidas próximas ao aeroporto, com ruidosos grupos de apoiadores de Jair Bolsonaro invadindo parte das pistas e atrapalhando o trânsito, me aproximei de um daqueles grupos.

Sem se incomodar com quem estava por perto, provavelmente com a certeza de que todos ali compartilhavam sua opinião, um homem contava radiante a situação das paralisações de estradas em alguns estados. “Estamos conseguindo”, comemorava. A conversa prosseguiu com os interlocutores relatando sobre as paralisações de outras rodovias, em vários estados. Reagi com nojo e me afastei.

Cheguei finalmente em casa por volta das 23h.

Nos dias que se seguiram, busquei me informar sobre os bloqueios e quis esquecer aquela viagem e os aborrecimentos. Ao saber da indiferença de vários comandantes militares aos acampamentos em frente a quartéis em vários pontos do Brasil, do apoio de outros à baderna para tentar impedir a posse do presidente eleito, e do atentado terrorista que tinha o objetivo de explodir bombas na área de embarque do aeroporto de Brasília, compreendi que o homem baixinho e fanático de Limeira não era um, mas alguns milhares em todo o Brasil. E capazes de tudo o que o fanatismo é capaz.

Então, veio o 8 de janeiro de 2023 e a mais grave agressão não militar à República brasileira, seus símbolos e o Estado Democrático de Direito. Senti no rosto, dois meses antes, o bafo horroroso do monstro fascista que a engendrou e a agrediu.

*Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP. Autor, entre outros livros, de SUS: uma reforma revolucionária (Autêntica). [https://amzn.to/46jNCjR]

Ilustração: Mihai Cauli

 

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