Saúde, descolonização e o papel estratégico do Brasil

Uma série de artigos destaca: país ocupa posição de destaque para influir no contexto internacional, com a presidência do G-20 e a recepção da COP-30. Agora, será preciso ousadia para questionar a ordem neoliberal e avançar na construção de novos pactos

por Gabriel Brito, Outra Saúde

Após a retomada de certa normalidade institucional, o Brasil e seu governo se encontram diante de uma série de desastres climáticos que representam desafios históricos. Festejado mundialmente como símbolo de esperança para as democracias liberais, chega o momento de o governo Lula fazer jus ao apoio expresso às causas ambientais desde sua viagem à COP-28, no Egito, ainda no final do governo anterior. A passagem do país pela presidência do G-20 e a recepção da COP-30, em 2025, em Belém, se tornam momentos decisivos para a afirmação da liderança brasileira em um mundo que atravessa múltiplas crises.

Tal síntese é corroborada por diversos especialistas, que não hesitam em apontar a saúde pública brasileira como trunfo no avanço dessa liderança nacional. Pode-se dizer que o país é referência inclusive no tipo de multilateralismo que o momento histórico faz emergir. Um exemplo disso é o dossiê publicado por pesquisadores brasileiros no British Medical Journal, em julho, em edição especial denominada Decolonizing health and medicine [Descolonizar a saúde e a medicina], que contou com artigos de Deisy Ventura, Paulo Buss e Vitor Ido, auxiliado por outros pesquisadores brasileiros da área.

Essa tendência de tentar reduzir as desigualdades entre o Norte e o Sul globais, encampada pelos pesquisadores, está longe de ser uma visão alternativa e, em termos gerais, é defendida nos próprios espaços de discussão da OMS. A formulação do Tratado das Pandemias é um bom exemplo desse embate: as negociações reproduzem os impasses que emperram também as cúpulas climáticas e travam as metas de contenção ao aquecimento global. Em ambos os casos – saúde e ambiente –, fica evidente a polarização entre os países líderes do capitalismo e aqueles ditos em desenvolvimento, basicamente pela influência das grandes corporações sediadas nos países ricos.

“Como presidente do G20 em 2024, o Brasil tem a oportunidade de contribuir para a ampliação da agenda de descolonização da saúde global, ao ousar defender o SUS como um modelo universal de saúde a ser seguido e aperfeiçoado no sul global”, defende Ventura em seu artigo. Segundo ela, é o momento correto para expor como o ideário neoliberal, disseminado a partir do Norte, é o principal responsável pelas dificuldades que o SUS enfrenta persistentemente, “principalmente por meio de medidas de austeridade econômica e pela percepção da saúde como um mercado explorável”.

A pesquisadora evoca o momento em que o Brasil ousou desafiar o pensamento hegemônico ao estabelecer seu programa que garantia acesso universal ao tratamento para HIV/aids: “desafiou as recomendações de organizações internacionais e países ricos, provando que a equidade também era uma condição para a eficiência no combate à doença”.

Tal campo de disputa se torna ainda mais complexo no momento em que a OMS apresenta o projeto One Health [traduzido em português como “Saúde Única” ou “Uma Só Saúde”] como balizador de políticas de saúde. Em linhas gerais, trata-se da compreensão de que políticas de saúde humana, animal e vegetal são complementares e interdependentes. Resta saber como é possível cumprir os objetivos de uma noção ampliada de saúde num contexto onde o sequestro da política pelo capital atinge níveis insustentáveis – cenário em que o Brasil e seu agronegócio são exemplo ilustrativo.

“Em maio, inundações sem precedentes no estado do Rio Grande do Sul colapsaram a infraestrutura e os sistemas de saúde da região, destacando a relação intrínseca entre clima e saúde”, recorda Vitor Ido em seu artigo. Ele enumera alguns dos retrocessos que enfrentamos em termos de saúde pública: “o Congresso Nacional está discutindo um projeto de lei que concede às empresas farmacêuticas direitos exclusivos sobre dados de ensaios clínicos, o que reduziria a concorrência no setor farmacêutico e prejudicaria o acesso a medicamentos; aprovou um projeto de lei […] que desmonta a proteção para pessoas que participam de ensaios clínicos; e continua a debater um projeto de lei que tornaria mais difícil o acesso ao aborto seguro”.

Mas ele vê, como avanços, a atenção mais cuidadosa do governo à promoção da saúde digital e o lançamento de uma nova estratégia para o Complexo Econômico-Industrial da Saúde, “alinhada com as preocupações da fabricação local” de fármacos.

Ainda que seja percebido mundialmente como referência de novos pactos globais, na direção de um mundo menos desigual, o Brasil vive internamente sob ataques de sua elite econômica – tanto nas agressões ao território, simbolizadas nos incêndios que devastam o país, como na atuação de forças políticas diretamente associadas ao capital no Congresso Nacional e governos estaduais.

Para os autores do dossiê, cabe ao país ousadia para aproveitar sua posição internacional e avançar na construção de novos pactos, onde o conceito de descolonização tem um papel importante, inclusive no âmbito interno.

“O movimento pela descolonização da saúde global”, escreve Deisy, “deve ir muito além de criticar as dinâmicas internacionais de pesquisa e educação, ou de defender iniciativas limitadas para promover a diversidade. Deve apontar para a necessidade de reformas estruturais para combater as iniquidades em saúde, que foram negligenciadas nas últimas décadas pela predominância dos dogmas neoliberais. Nesse sentido, a descolonização e a luta por uma democracia real, que entendemos como a garantia do direito universal à saúde, exemplificada pelo SUS, devem caminhar juntas”.

Como explica Vitor Ito, mesmo após a pandemia e toda a tragédia humanitária, as disputas entre público e privado seguem na ordem do dia. Não só um acordo sobre pandemias não sai do papel, como novos campos de disputa se abrem, como na saúde digital. “A promoção de infraestruturas públicas digitais, proposta originalmente pela presidência do G20 da Índia em 2023, tem sido um pilar das atividades deste ano. No entanto, essas infraestruturas podem permitir que corporações privadas explorem os sistemas de saúde ao capturar seus dados. Além disso, preocupam os vieses algorítmicos no uso da IA e os riscos à privacidade de indivíduos e comunidades”, enumera.

Internacionalmente, cabe ao país fomentar a reconstrução da arquitetura de poder global, esforço que Paulo Buss resume em “três dimensões essenciais: atacar os determinantes sociais de saúde; transição ecológica; reforma do multilateralismo”. Em sua elaboração, ele compreende que um sistema de saúde como o SUS é, mais do que um serviço, um instrumento de concretização objetiva da democracia – o que inevitavelmente entra em diálogo com uma agenda política complexa, que efetivamente promova possibilidades de descolonização das relações internacionais.

“O Brasil também deve considerar em suas iniciativas ambiciosas o lançamento de uma estratégia de saúde como ponte para a paz”, sugere Buss. “ Além dos apelos da OMS, de outros organismos de ajuda humanitária da ONU e da sociedade civil global, essa estratégia visa proteger os serviços e profissionais de saúde, bem como a população civil, em áreas de conflito. Ela permitiria que pessoas feridas fossem tratadas ou removidas das zonas de conflito, assegurando a manutenção dos serviços essenciais de saúde e o fornecimento contínuo de água potável, alimentos, remédios e produtos básicos de higiene”, analisa.

E, como explica Vitor Ido, o tempo de conciliação entre projetos socioeconômicos e mesmo civilizatórios tão opostos está se esgotando. Uma ação tímida e incipiente do país cobrará um preço quase instantâneo: “de maneira mais geral, reformas estruturais de governança que abordem finanças, saúde e clima continuam sendo necessárias. A participação da sociedade civil nesse processo tem sido e continuará a ser particularmente bem-vinda. No entanto, mesmo no melhor cenário, isso não será suficiente. O aumento dos gastos com guerras e indústrias militares tem sido priorizado em detrimento da saúde. Geopoliticamente, o negacionismo político em relação às mudanças climáticas, à ciência, aos direitos humanos e à equidade está em ascensão. Esse contexto mais amplo pode contrabalancear quaisquer conquistas positivas na saúde global”, adverte.

Destaque: Parte do painel ‘Guerra e Paz’ de Cândido Portinari, que fica na sede da ONU em Nova Iorque

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