A Força Nacional do SUS perante a crise climática

Apenas em 2024, equipe criada para atuar em situações de emergência já teve de ser acionada duas vezes após desastres provocados pelas mudanças climáticas. Um de seus coordenadores reflete sobre como o governo encara esses novos cenários

Rodrigo Stabile em entrevista a Gabriel Brito, Outra Saúde

Pelo segundo ano seguido, a temporada de secas na Amazônia apresenta consequências inéditas. Estiagem e queimadas cujas proporções se tornaram nacionais mostram que o “novo normal” climático já chegou. A vida local já se altera com a baixa dos rios, escassez de água e isolamento geográfico de diversas cidades. Na saúde, o risco de uma crise é iminente, como explica Rodrigo Stabile, coordenador da Força Nacional do SUS, que passou os últimos dias visitando cidades amazônicas afetadas pelo fogo a fim de organizar a resposta do sistema de saúde.

“Não existe desassistência na rede de atenção à saúde, de modo que há condições de atendimento de emergência em todos os estados, que mesmo com aumento de internações não correm risco de colapso em sua oferta de leitos à população”, garantiu ele. Stabile situa que, embora tenha havido aumento nas internações, ”não existe a iminência de colapso nos leitos nesses estados”. A principal atingida, na verdade, é a atenção básica, pois as condições climáticas acabam isolando algumas populações, que dependem dos rios para se conectar à rede de saúde. Algumas estão há pelo menos 60 dias nessa situação.

De toda forma, Stabile é claro ao dizer que, apesar de ainda não haver um colapso sanitário, o Ministério da Saúde já trabalha com projeções de crises humanitárias e sanitárias de larga escala. Em algum momento, estruturas de saúde, logísticas de atendimento e despesas com atendimento médico terão de ser reorganizadas.

“As projeções do Cemaden [Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais] e do INPE [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], de onde consumimos dados, mostram que os eventos climáticos que deveríamos vivenciar daqui 20 anos já começaram. Os níveis dos rios não serão os mesmos, as chuvas não serão as mesmas”, adverte. Segundo ele, há um planejamento para, assim que os rios voltarem a níveis navegáveis, serem enviados equipamentos para perfuração de poços artesianos e para permitir a captação de água do rio.

E essas mudanças, é claro, afetarão o orçamento já insuficiente do SUS. As queimadas causam efeitos imediatos com o aumento de problemas respiratórios e coronarianos. Mas a falta de estruturas para captação de água também é algo preocupante. “A FUNASA tem mais de 2.500 filtros para poços artesianos, que serão distribuídos nesta região, a fim de se fazer a purificação de um volume de água adequado. O filtro tem a capacidade de fazer a purificação de 5 mil litros por hora, quantidade que acaba suprindo a necessidade de uma comunidade, sobretudo as ribeirinhas e distritos sanitários indígenas”, destacou.

Negacionismo e interesses privados

Ao falar em “novo normal”, é impossível não se lembrar da pandemia. E nesse sentido, o tema das mudanças climáticas já vive sua guerra de informação, como classifica Stabile. O tema ganha complexidade, uma vez que toda a crise é fruto evidente da ação humana e, sobretudo, do capital e seu modo de reprodução socioeconômica. E é daí que se alimenta o negacionismo, uma vez que será inevitável não colocar sob questionamento toda esta engrenagem e os poderosíssimos interesses que a resguardam.

Tal contradição entre preservação ambiental e livre ação do capital influenciará nas ações de saúde – pois fica cristalino que conter as mudanças climáticas não dependerá da mera boa vontade de profissionais de saúde. Duas iniciativas do governo federal mostram haver a devida compreensão da interdependência da política de saúde com outras áreas: o Plano Brasil Saudável, que visa o combate às chamadas doenças socialmente determinadas, e o Plano de Ação Uma Só Saúde, desdobramento do conceito One Health, defendido pela OMS, que, conforme abordado pelo Outra Saúde, tem a intenção de atualizar a compreensão do conceito de saúde coletiva e sua conexão direta com a saúde animal e vegetal. Ambas as políticas são interministeriais, o que significa que, em qualquer momento, vão se chocar com a influência de atores políticos como o agronegócio, responsável central de toda a crise climática nacional.

Como mostra Rodrigo Stabile, o governo atual parece compreender tudo isso. Ele próprio e a Força Nacional do SUS estiveram na linha de frente da catástrofe do Rio Grande do Sul. Cerca de três meses depois, o mesmo dispositivo excepcional é acionado e tudo indica que isso se repetirá cada vez mais. Assim, resta saber se haverá força política e social para uma mudança de paradigma tão profunda e inerentemente conflitiva. A considerar ainda a ação de governos estaduais, amplamente dominados pelo capital agrário e seu incentivo desbragado à exploração predatória da natureza, e um congresso nacional não menos sequestrado por esse mesmo poderio, o cenário parece desolador.

“O entendimento de que a gente precisa ter a preservação do meio ambiente e, com ele, garantir a sustentabilidade da raça humana é cada vez mais presente. Sobretudo, para a gente poder continuar segurando novas epidemias, pandemias e processos catastróficos, como essa emergência climática, não só no Brasil, mas no mundo, como se vê em fóruns globais como as COPs e as próprias assembleias da ONU”, complementou.

Leia a entrevista completa com Rodrigo Stabile.

Em primeiro lugar, quais as principais recomendações para o público lidar com a qualidade do ar afetada pelas queimadas, que chegaram a cobrir 60% do território brasileiro?

Estamos diante de uma emergência climática que pode desencadear uma grave crise humanitária em algumas regiões do país, que por sua vez pode desencadear uma emergência em saúde pública. Como até mencionou Lula em seu discurso na ONU, nenhuma esfera de governo, dentro de toda a dimensão do país, está preparada para fazer uma mitigação em tempo oportuno, dado que nós estamos conhecendo esse fenômeno agora.

É óbvio que nós tivemos outros fenômenos de estiagem no país. Na própria região norte, os seus rios não chegaram a sua vazante original (média histórica de nível de água) e tiveram cheias abaixo da média. Esse contexto já vinha sendo acompanhado pelo próprio governo brasileiro desde a última cheia, quando os rios não tiveram seus níveis históricos. Isso desencadeou, obviamente, um fenômeno de seca onde já deveria estar chovendo, inclusive nas regiões Centro Oeste e Sudeste, onde temos previsões de chuva só para o final do mês, enquanto no Norte apenas para novembro.

Primeiro, seca dos rios, o que em algumas regiões promove o isolamento da população de acesso à água, à comida, pois são populações que dependem do rio. Na Amazônia, onde a rua é o rio, no rio Negro não se tem navegabilidade, o que aumenta a complexidade da logística e da oferta de saúde à população.

Como o ministério e o SUS entram em ação nestes territórios?

Em junho, o ministério já tinha criado a Sala Nacional de Situação, que é orientada pela secretaria de Vigilância em Saúde e vários parceiros do ministério da Saúde. Essa sala acompanha a seca em todos os estados do país. Essencialmente, o ministério, ao se tratar de uma emergência climática, e não em saúde, orientou os municípios em relação ao manejo e organização da sua rede de atenção à saúde, para que não houvesse desassistência em caso de um aumento de procura da população.

O ministério também divulgou notas técnicas a orientar os profissionais de saúde do SUS no sentido de mudança do seu comportamento, a fim de ter a percepção clínica de agravamentos de uma condição que se apresenta nas unidades de saúde ocasionada pelo calor extremo. Coisas como desidratação, confusão mental, ou eventos ligados à fumaça, problemas respiratórios, aumento do risco de AVC, aumento do risco de infarto, de prematuridade de fetos… Tais orientações do Ministério da Saúde são feitas com suas contrapartes.

Há três semanas, a ministra Nísia, ao ver a grave situação em que se encontram sobretudo os estados que estão passando pela pior qualidade do ar, como os do Baixo Amazonas (Acre, Rondônia e parte do Amazonas), e o Sudeste do país, principalmente a cidade de São Paulo, chamou a responsabilidade da sala de situação e a colocou dentro de seu gabinete. Depois, solicitou atuação da Força Nacional do SUS nos estados onde se pudesse fazer um matriciamento crítico dada sua maior desassistência.

Há previsão de uso da Força Nacional do SUS por quanto tempo?

A princípio, ela irá fazer uma missão exploratória, onde se aplica uma metodologia chamada diagnóstico vivo, que significa entender a situação no território e a partir disso desenvolver estratégias para mitigar os eventuais níveis de desassistências. Começamos as missões por Acre, Rondônia e Amazonas, e já falamos, basicamente, com todos os estados amazônicos para também estar no território a partir da semana que vem.

A partir da visita a tais estados, o Ministério da Saúde pode ter uma noção importante do que está acontecendo do ponto de vista da saúde. Não existe desassistência na rede de atenção à saúde, de modo que há condições de atendimento de emergência em todos estes estados, que mesmo com aumento de internações não correm risco de colapso em sua oferta de leitos à população. Houve um aumento de internação, mas não existe a iminência de colapso nos leitos nesses estados. Sobretudo, temos um forte impacto na atenção primária, porque existem regiões nesses estados em que a população já está há pelo menos 60 dias isolada, porque só se transporta por meio do rio, e com a baixa navegabilidade instalada há semanas só se pode ter acesso a atendimentos de saúde por via aérea.

Assim, são mapeados esses municípios, comunidades indígenas, e com a sala interministerial desenvolvemos uma logística para acessar tais locais isolados e fazer o suprimento para a dignidade humana, com itens básicos como água potável, alimento e atendimento básico em saúde.

Considerando sua afirmação de que a emergência climática pode se tornar emergência de saúde, e também que tais eventos já ocorrem com frequência antes desconhecida, há projeções no Ministério da Saúde sobre possíveis sequelas na saúde coletiva, hospitais de campanha, aumento de despesas financeiras, estratégias de maior prazo sobre o próprio uso da Força Nacional do SUS, que também parece cada vez mais acionada? Enfim, o que a situação presente coloca na visão de longo prazo do ministério?

É um aspecto importante. Vivemos uma emergência climática que talvez nos leve a uma crise humanitária. Tem pessoas que estão ficando sem alimentos, que estão isoladas nos municípios. Isso pode levar a uma emergência em saúde. Mas ainda não é uma calamidade, apesar de alguns municípios, dada suas particularidades, por estarem em região de fogo, terem decretado calamidade.

Tecnicamente, calamidade é quando as condições de dignidade humana são atingidas, como no caso do Rio Grande do Sul. No país, apesar das crises climáticas, as pessoas ainda têm suas residências, por exemplo. Mas de fato podemos ter uma crise humanitária, com escassez de alimentos e água. Existem duas ações do Ministério: uma é mitigar os efeitos que já estão acontecendo; a outra é justamente o planejamento das ações estruturantes, que nós estamos chamando de um “novo normal” no clima do país.

As projeções do CEMADEN e do INPE, de onde consumimos dados, mostram que os eventos climáticos que deveríamos vivenciar daqui 20 anos já começaram. Os níveis dos rios não serão os mesmos, as chuvas não serão as mesmas. Tem aí um forte componente, obviamente, de conscientização humana que precisa ser trabalhado. Sabemos que estamos diante de resultado da ação de ordem humana.

Em relação ao planejamento da saúde, trabalhamos justamente para poder ter as previsões de gastos e as previsões do financiamento dos territórios aonde se terá uma exigência logística aumentada em relação a acesso. Isso já está sendo computado em vários cenários para que possamos trabalhar na previsão de gastos. Outro planejamento em que nós temos trabalhado é no acesso à infraestrutura, que precisa ser resiliente para que essas pessoas possuam a condição mínima de saúde.

Junto com a FUNASA, planejamos para, assim que os níveis dos rios voltarem a ter navegabilidade mínima na Amazônia, levar os equipamentos para a perfuração de novos postos artesianos e permitir captação de água do rio onde não é mais possível na atual situação.

Primeiro, é necessário ter entendimento do aumento dos gastos de saúde, porque muda a condição de saúde, com aumento, por exemplo, de problemas respiratórios, crônicos, coronarianos, tudo isso aumenta. E também a possibilidade de se garantir infraestrutura mínima. A água é o exemplo mais marcante. A Funasa tem mais de 2.500 filtros para poços artesianos, que serão distribuídos nesta região, a fim de se fazer a purificação de um volume de água adequado. O filtro tem a capacidade de fazer a purificação de 5 mil litros por hora, quantidade que acaba suprindo a necessidade de uma comunidade, sobretudo as ribeirinhas e distritos sanitários indígenas.

Isso se aplica também à infraestrutura de atendimento à saúde. Se, por exemplo, uma unidade básica se torna inacessível, precisa ser repensada e estar num lugar resiliente onde a comunidade possa chegar. Claro que isso tudo é muito mais simples de falar do que fazer. Mas nós já começamos esse exercício, porque o Ministério da Saúde entende que tais eventos são exemplo do novo normal da condição do país e teremos de encarar o desafio.

Com relação à Força Nacional, hoje uma força voluntariada, como a Força Nacional de Segurança Pública, há um efetivo mínimo de especialistas que atua principalmente nos diagnósticos situacionais, equipe mínima de aeromédicos e de especialistas. No caso de uma emergência em saúde pública, uma calamidade pública, entramos num processo de recrutamento. Se precisarmos de um efetivo de mil pessoas trabalhando nos eventos climáticos, nós vamos tentar conseguir tal força por meio de voluntariado. Os eventos de emergência em saúde são muito variados. Por exemplo, num surto infeccioso os especialistas necessários são diferentes daqueles que precisam lidar com queimadas, que são diferentes daqueles que precisam lidar com alagamentos ou deslizamentos de terra.

É por isso que trabalhamos com o mesmo decreto presidencial da Força Nacional de Segurança Pública, onde recrutamos diversos especialistas do SUS para atuar na Força Nacional quando precisamos atuar em uma emergência e sua respectiva natureza, com os perfis adequados de profissionais.

Já que você falou em novo normal, podemos nos remeter à pandemia, quando todo um negacionismo científico e sanitário foi operado por dentro do Estado, o que reverbera até hoje na sociedade. Há preparação de material de combate ao negacionismo climático? O governo se prepara para lidar com movimentos político-ideológicos de tipo semelhante ao que se viu na pandemia, inclusive pelo fato de que, ao tratar da mudança do clima em novos termos, interesses econômicos poderosos podem passar a ser questionados?

Já estamos no momento “transitivo direto”. Temos nos preparado e já combatido esse negacionismo. Sabemos que a conta de ter se negado algo tão importante mudou as características da sociedade contemporânea, como a última gestão fez na Covid-19.

A ministra Nísia opera uma gestão de reconstrução e fortalecimento do SUS, que foi depreciado pela gestão passada, com graves resultados, como a baixa da cobertura vacinal e a volta do risco de doenças imunopreveníveis. Obviamente, toda essa polarização reflete também nas ações de políticas públicas que temos de lidar no ministério da Saúde. Foi por isso que a ministra Nísia, no início da sua gestão, disse que o ministério da Saúde é o ministério da Ciência. E ciência aplicada ao benefício da população. Essa é a comunicação que foi feita pela ministra desde a sua posse, chamando um comitê científico para avaliar e balizar as políticas públicas que precisariam ser implantadas para o restabelecimento das políticas públicas do Sistema de Saúde do SUS e da sua dignidade.

Em minha visão, o maior presente que a Constituição brasileira nos deu depois da liberdade de expressão e do voto é um sistema de saúde universal e equânime para a sua população. Porém, o trabalho de comunicação é essencial nesse sentido, a fim de chegarmos à população. Estabelecemos agora com as comunidades que têm sofrido muito com a emergência climática uma extensa comunicação sobre o que deve ser feito pela saúde, proteção individual das pessoas, e pretendemos continuar com tal comunicação e estreitamento com a população.

Claro, com as eleições vemos diversos aventureiros que acabam relativizando consequências humanitárias de eventos extremos. O indivíduo é incentivado a botar fogo porque a mata não seria um valor econômico, não é um princípio ativo econômico, de maneira que ele põe fogo ali pra plantar. Mas ele acaba respirando o ar das próprias queimadas e agora sofre as consequências. Municípios que já não têm mais mata perderam o curso de vento e dos rios aéreos e agora veem a consequência da perda de cobertura mínima da vegetação.

Vivemos uma guerra de informação, mas devemos nos pautar nas evidências científicas e mostrar que é a partir de evidências científicas e da tecnologia que vamos conseguir melhorar a qualidade de vida da população.

Num sentido mais amplo e estrutural, vemos que neste ano o governo lançou pelo menos dois planos de ação em saúde de caráter eminentemente interministerial: o Plano Brasil Saudável, de combate a doenças socialmente determinadas, e o Plano de Ação Uma Só Saúde, que dialoga com o conceito One Health preconizado pela OMS. Os eventos climáticos deste ano não evidenciam que, grosso modo, toda a saúde coletiva estará cada vez mais subordinada à ação mais ampla deste e qualquer governo?

Sim, é certo. Vimos reuniões ministeriais da gestão passada, algumas catastróficas, conforme informações vazadas. Hoje, temos uma reunião de um colegiado onde as políticas se interconectam.

A política do One Health está dentro dos próprios gabinetes da presidência da República e tem sido articulado interministerialmente. A própria Organização Pan-Americana de Saúde, que é o braço da Organização Mundial da Saúde das Américas, tem trabalhado, nesses últimos dois anos, com o Ministério da Saúde, em iniciativas para convergir as políticas públicas a fim de mostrar sua integração cada vez maior.

Vivemos num único mundo, tanto para os seres humanos como animais e vegetais. O conceito One Health está mais presente agora porque sabemos que a interface entre meio ambiente e ser humano é tema de segurança mundial. Uma epidemia que acontece no Brasil pode não ficar contida no Brasil, a exemplo do surto que aconteceu na China em 2019.

Portanto, o entendimento de que a gente precisa ter a preservação do meio ambiente e, com ele, garantir a sustentabilidade da raça humana é cada vez mais presente. Sobretudo, para a gente poder continuar segurando novas epidemias, pandemias e processos catastróficos, como essa emergência climática, não só no Brasil, mas no mundo, como se vê em fóruns globais como as COPs e as próprias assembleias da ONU.

Imagem: Walterson Rosa

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