Produção e consumo de carne estão associados à desigualdade estrutural no Brasil. Entrevista especial com Aline Martins de Carvalho

Livro recém-lançado explica como a expansão da pecuária em larga escala está associada à exploração de trabalhadores em condições precárias, à violência no campo, à concentração de terras e à questão de classe

Por: IHU e Baleia Comunicação | 03 Outubro 2024

No Brasil há mais bois que pessoas. Vamos aos números. Em 2023 mais de 34 milhões de animais foram abatidos, segundo o IBGE, totalizando 8,91 milhões de toneladas de carne no período. Desse montante, 2,29 milhões, aproximadamente 25% da produção, foi destinada à exportação e o restante ao mercado interno. Considerado o segundo maior rebanho do mundo, com cerca de 235 milhões de animais (em 2022), ficando atrás apenas da Índia, o atual modelo de produção da pecuária brasileira possui muitas contradições.

O consumo de carne cumpre um papel nutricional relevante na dieta dos brasileiros. Ao mesmo tempo o hábito de se alimentar de proteína animal – carne vermelha – está associado a graves danos ambientais, como, desmatamento, emissões de gases do efeito estufa, monocultura de soja para ração, uso excessivo de água e queimadas. Contradições de um sistema alimentar e de um modo de produção que é discutido no livro Complexidades da Carne, organizado por Aline Martins de Carvalho (Sustentarea – FSP), Michelle Cristine Medeiros Jacob (Labnutrir – Universidade Federal do Rio Grande do Norte) e Sávio Marcelino Gomes (Labnutrir – Universidade Federal da Paraíba).

“A obra reúne diversas perspectivas interdisciplinares sobre a cadeia produtiva e o consumo de carne”, explica Aline. Segundo aponta a pesquisadora, o “livro aborda desde os impactos ambientais e de saúde pública até as dimensões econômicas, sociais e culturais do consumo de carne, especialmente no Brasil”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, a professora defende que é possível seguir uma dieta vegetariana, sem que isso impacte nos índices nutricionais, pois a ingestão de proteína animal está associada à exploração predatória e a comorbidades. “O consumo de carne está ligado à concentração de terras e à monocultura, que afetam às populações rurais, especialmente povos tradicionais e agricultores familiares […]e à violência no campo”, pontua. “Há, ainda, o impacto sobre a saúde […] relacionado a doenças crônicas, como diabetes, doenças cardiovasculares e câncer”, complementa.

Aline Martins de Carvalho é graduada em Nutrição, mestre e doutora em Nutrição em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Realizou estágios de pesquisa junto ao Department of Nutrition da Harvard School of Public Health e Department of Nutritional Sciences da University of Michigan. Atualmente é professora doutora junto ao Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública – FSP da USP, participa do Grupo de Estudos Epidemiológicos e Inovação em Alimentação e Saúde (GEIAS) da FSP/USP e do Grupo de Estudos em Saúde Planetária do IEA/USP, e é coordenadora do Núcleo de Extensão da USP Sustentarea.

Confira a entrevista.
IHU – Para contextualizar, pensando em um arco histórico de larga escala, como o consumo de carne saiu da posição de “herói” no processo de evolução da nossa espécie para a posição de um dos principais vilões da sobrevivência da nossa espécie?

Aline Martins de Carvalho – O consumo de carne teve um papel importante na evolução da nossa espécie, fornecendo nutrientes essenciais como proteínas de alta qualidade e gorduras para o desenvolvimento cerebral. Entretanto, o cenário mudou muito nos últimos séculos. Hoje, o consumo de carne é elevado por diversas partes do mundo, incluindo o Brasil e está associado a impactos negativos significativos, como a degradação ambiental, emissões de gases de efeito estufa, desmatamento, perda de biodiversidade e problemas de saúde relacionados ao consumo excessivo (como doenças do coração, diabetes e câncer). Não diria herói ou vilão, pois a alimentação é bem mais complexa e não pode ser restrita a um alimento para falar em desfechos.

IHU – A senhora é uma das organizadoras do livro Complexidades da Carne (Faculdade de Saúde Pública da USP, 2024). Do que se trata a obra?

Aline Martins de Carvalho – Complexidades da Carne é uma obra que reúne diversas perspectivas interdisciplinares sobre a cadeia produtiva e o consumo de carne. O livro aborda desde os impactos ambientais e de saúde pública até as dimensões econômicas, sociais e culturais do consumo de carne, especialmente no Brasil.

Nosso objetivo é proporcionar uma análise ampla e crítica sobre o papel da carne em nossa sociedade e levantar reflexões sobre práticas mais sustentáveis e saudáveis. Ele foi escrito em parceria com diversos pesquisadores e organizado por professores da USP, UFPB e UFRN. Pode ser baixado nesse link.

IHU – Considerando uma alimentação adequada à nossa necessidade de nutrientes, qual o papel da alimentação com carne em nossa saúde? Ela é totalmente substituível por outros alimentos?

Aline Martins de Carvalho – A carne é uma fonte importante de proteínas de alta qualidade, vitaminas, especialmente B12, e minerais como ferro e zinco, que são essenciais para o bom funcionamento do organismo. No entanto, uma dieta saudável e equilibrada pode ser construída sem carne, desde que haja uma combinação adequada de outros alimentos que fornecem esses nutrientes e que seja desejo do indivíduo.

Entretanto, em termos de saúde pública, uma dieta com menos carne já pode estar associada a menor impacto ambiental e oferecer esses nutrientes-chave para nossa saúde, com risco menor para doenças crônicas.

IHU – Como a carne impacta o meio ambiente atualmente?

Aline Martins de Carvalho – A produção de alimentos e o desmatamento no Brasil são responsáveis por 70% das emissões de gases de efeito estufa do país. Dentro do setor agropecuário, a produção de carne é uma das principais responsáveis pela emissão de gases de efeito estufa, sendo o metano gerado pelos ruminantes um dos mais preocupantes.

Além disso, a pecuária está associada ao desmatamento de grandes áreas para pastagens e cultivo de ração, como a soja, o que leva à perda de biodiversidade. O consumo intensivo de água e a contaminação de solos e rios por dejetos animais também são questões ambientais críticas.

IHU – Não é barato consumir carne no Brasil. Como a questão está associada à desigualdade? Até que ponto ela agrava ainda mais o abismo social?

Aline Martins de Carvalho – O preço da carne é um importante determinante de consumo, mas a cultura e hábito alimentar também influenciam nesse processo. Verificamos que grande parte da população consome carne regularmente.

Entretanto, devido à grande desigualdade no país, as famílias trocam os tipos de carne, os cortes e reveem as frequências e quantidades de carne, reforçando esse abismo social.

IHU – Além da desigualdade, que outros problemas sociais estão associados ao consumo de carne?

Aline Martins de Carvalho – O consumo de carne está ligado à concentração de terras e à monocultura, que afetam às populações rurais, especialmente povos tradicionais e agricultores familiares. A expansão da pecuária em larga escala também está associada à exploração de trabalhadores em condições precárias e à violência no campo, questões que refletem a desigualdade estrutural do Brasil. Há, ainda, o impacto sobre a saúde, já que o consumo excessivo de carne, especialmente as vermelhas e processadas, está relacionado a doenças crônicas, como diabetes, doenças cardiovasculares e câncer.

IHU – O problema é o consumo de carne ou a monocultura pecuarista de larga escala?

Aline Martins de Carvalho – Quando falamos em termos ambientais, o problema está mais ligado ao modelo de produção da pecuária, que é insustentável do ponto de vista ambiental e social. Quando falamos de saúde, o consumo elevado é responsável pelo aumento de risco de doenças crônicas. É preciso repensar o sistema produtivo e a quantidade de carne que comemos.

IHU – O debate em torno da redução do consumo de carne no Brasil não é novo. Não é novidade também que as soluções para este problema amplo e complexo costumam ser na perspectiva de que é responsabilidade da população diminuir o consumo. Contudo, o mercado externo tem grande participação na compra desse tipo de alimento e a redução interna nem sequer afeta o setor. Como sair desse ciclo de culpabilização das pessoas e enfrentar essa questão de maneira macropolítica?

Aline Martins de Carvalho – Ressalta-se que cerca de 70% da produção de carne no Brasil fica no mercado interno, mostrando a importância da população brasileira no escoamento desses produtos. Entretanto, a responsabilidade não pode ser atribuída apenas aos consumidores. A mudança precisa acontecer em nível político e econômico, com incentivos para práticas agrícolas mais sustentáveis, mudanças na cadeia produtiva e na regulação do mercado externo.

IHU – A senhora poderia do projeto “Sustentarea”? Quais são seus objetivos e qual público busca impactar?

Aline Martins de Carvalho – O Sustentarea é um Núcleo de Pesquisa e Extensão da USP que busca promover a sustentabilidade alimentar e a saúde pública através da conscientização e educação sobre os impactos da alimentação no meio ambiente e na saúde. Nosso objetivo é criar uma conexão mais clara entre o que comemos, como isso afeta o planeta e nossa saúde.

Atuamos principalmente com a produção de materiais educativos, como ebooks, podcasts e postagens semanais, além de cursos voltados para gestores e profissionais da saúde, e pesquisas sobre sistemas alimentares sustentáveis e a sindemia global de obesidade, desnutrição e mudanças climáticas no Brasil. Nosso público-alvo inclui tanto a população em geral interessada no tema quanto profissionais da área, assim como e gestores públicos.

Foto: Agência Brasil

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