Depois de sequestro do Orçamento, os reaças querem o Supremo como seu refém. Por Reinaldo Azevedo

No UOL

A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara perpetrou ontem um festim de inconstitucionalidades para tentar subordinar o Supremo Tribunal Federal à maioria parlamentar de ocasião. Votaram-se duas PECs e dois projetos de lei que buscam manietar o tribunal e manter seus integrantes sob ameaça. Se aprovados pelo Congresso, só terão algum efeito sobre a Corte se o tribunal deixar. Direi por quê. Antes, algumas considerações.

MAIOR CAIXA ELEITORAL DO PLANETA

A direita e a extrema-direita do Congresso foram sequestrando, ao longo dos anos, o Orçamento da União, numa apropriação estupidamente inconstitucional das prerrogativas do Poder Executivo.

Vocês acham que o Fundo Eleitoral é de “apenas” R$ 4,9 bilhões? Não!!! O maior Fundo Eleitoral do Planeta são as emendas parlamentares. Elas cevam a eleição de deputados federais, senadores, prefeitos e vereadores. O suposto fabuloso desempenho da direita e da extrema-direita neste ano — não foi substancialmente maior do que se viu no passado, diga-se —, que tem servido a tanta sociologia barata e a tantas antevisões cretinas, nada tem a ver com “a ideologia do brasileiro”. Fosse assim, o PT não teria vencido cinco de nove eleições diretas.

O ponto é outro. Entre 2021 e este 2024, foram empenhados em emendas parlamentares nada menos de R$ 131,69 bilhões, segundo o Portal da Transparência, e efetivamente desembolsados R$ 78,17 bilhões. Para onde vai esse dinheiro, à parte o desvio de rigor em muitos casos? Para os currais eleitorais de deputados e senadores, que, por sua vez, fazem os “seus” prefeitos e vereadores, o que impactará na futura composição do Congresso, cujos integrantes mandarão as emendas para seus redutos, o que vai facilitar a campanha e seus correligionários e assim por diante… Perceberam? Além da óbvia usurpação de competência de um Poder pelo Outro, cria-se um ciclo que garante que o poder permaneça nas mãos dos mesmos. Nesse caso, dinheiro é voto.

O colunismo conservador e o reacionário preferem fazer digressões a respeito do suposto e natural viés conservador dos brasileiros a reconhecer o óbvio: com as exceções de praxe, dinheiro significa voto porque ele azeita as máquinas políticas locais. Prova: levantamento feito pelo “Globo” nos 178 municípios indicados pela Controladoria-Geral da União (CGU) como principais destinos das emendas PIX aponta que, em cem deles, o prefeito foi reeleito, enquanto em outros 45 conseguiu fazer um sucessor do mesmo grupo político.

As emendas parlamentares — USURPAÇÃO ESCANCARADA DE COMPETÊNCIA — se transformaram num caixa fabuloso de campanha, que concorre para impedir a alternância de poder nos municípios, o que tem impacto direto na composição do Congresso. Enquanto durar a aberração, está destinado a ser de conservador para reacionário. Uma das razões por que Lula incomoda tanto é que, com sua história, conseguiu vencer cinco eleições presidenciais — duas por intermédio de Dilma Rousseff.

O Congresso, mesmo com a redemocratização, continuou majoritariamente conservador, de direita. As emendas impositivas começaram em 2016. FHC e Lula, portanto, em seus dois respectivos mandatos, tiveram mais facilidade para compor uma ampla e fiel base de apoio porque era importante aos parlamentares manter proximidade com o poder, uma vez que não tinham a mamata de hoje. A “autonomia” que lhes conferiu a dinheirama das emendas permitiu que se descolassem de planos de governos para cuidar de seus interesses setoriais e paroquiais. A eleição de Jair Bolsonaro foi o momento de glória dessa turma. Ele também não tinha plano nenhum que não fosse a destruição de políticas públicas voltadas para o conjunto dos brasileiros.

COMEÇANDO A VOLTAR AO COMEÇO

Temos um Congresso que depende menos hoje do que antes da parceria com o Poder Executivo, já que lhe solapou parte da competência para a destinação de recursos públicos. Pós Lava-Jato, pós-Bolsonaro e pós-redes sociais, o Legislativo majoritariamente conservador se viu inundado pelo reacionarismo mais abjeto. Na era do desequilíbrio climático, parte da dita “bancada ruralista” assina pencas de projetos que concorrem para o desmatamento.

E, de forma desmesurada, os valentes foram avançando sobre conquistas civilizatórias, certos de que não mais havia quem lhes pudesse botar freios. E, no entanto, havia: o Supremo. Nota à margem: a primeira manifestação de rua contra o tribunal foi convocada pelo então presidente Jair Bolsonaro para o dia 26 de maio de 2019, antes de completar seu quinto mês de mandato. O inquérito das “fake news” foi aberto por Dias Toffoli no dia 14 de março daquele ano porque já estava claro que uma organização criminosa se encarregava de tentar desmoralizar os ministros. O resto é história, e conhecemos o papel desempenhado pela corte, especialmente Alexandre de Moraes, na defesa da democracia e no enfretamento aos golpistas.

Pois bem… À banda conservadora-reacionária do Congresso não basta usar a verba do Orçamento para caixa de campanha. O Fundo Eleitoral é troco de pinga perto da grana fabulosa que realmente garante a manutenção do poder dessa gente. Os bolsonaristas, mas não só eles, houveram por bem aprovar na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara um “pacote anti-STF” que busca subordinar o tribunal ao Poder Legislativo. Nota: a deputada Caroline de Toni (PL-SC), presidente da CCJ, empregou, ela mesma, a expressão “pacote anti-STF”.

AS VOTAÇÕES DESTA QUARTA

Aprovaram-se na comissão, nesta quarta, duas PECs (Propostas de Emenda à Constituição) e dois projetos de lei que buscam emparedar o Supremo. Trata-se de textos que fariam inveja, deixem-me ver, a Recp Erdogan, na Turquia, ou a Nicolás Maduro, na Venezuela. Ah, senhores, os bolsonaristas e assemelhados, para a minha não surpresa, têm concepções verdadeiramente chavistas de poder.

1) A PEC 8/2021, já aprovada no Senado, limita decisões monocráticas dos magistrados que suspendam a eficácia de leis ou de atos do presidente da República ou dos presidentes da Câmara, do Senado e do Congresso. Inexiste hoje essa vedação. Em essência, é inconstitucional porque se trata de impedir o acesso à Justiça.

Se for aprovada, vai acontecer o quê? Caberá ao próprio Supremo interpretar a estrovenga conforme a Constituição. Em caso de urgência, o relator pode tomar uma decisão monocrática e submetê-la imediatamente aos pares. Aliás, em outubro do ano passado, o STF já decidiu que todas as decisões individuais que digam respeito a Ações Direitas de Constitucionalidade devem ser enviadas imediatamente ao pleno.

Reitero: acho a tese, em essência, inconstitucional, mas o STF ainda pobre driblar um confronto com uma medida de caráter, digamos, administrativo: submeta-se, nos casos de urgência, as medidas cautelares ao conjunto dos ministros.

CONGRESSO COMO JUIZ DO SUPREMO

2) A PEC 28/2024 permite que o Congresso suspenda decisões do Supremo caso avalie que elas avançam a sua “função jurisdicional” ou inovam o ordenamento jurídico. Para derrubar, então, uma decisão da Corte seriam necessários os votos de dois terços da Câmara (342) e do Senado (54). Esse é o quórum para a aprovação de processos de impeachment de presidente da República.

Bem, nesse caso, não há acomodação ou leitura benevolente possíveis. Há inconstitucionalidade arreganhada. Fosse assim, o Congresso estaria chamando para si o papel de Poder Moderador ou de Poder dos Poderes. Atuaria como uma corte revisora do tribunal. É de se tal sorte exótica a proposta que a gente chega a duvidar que tenha sido votada a sério.

É evidente o caráter retaliatório da emenda. A direita e a extrema-direita do Congresso estão inconformadas com a suspensão da execução de emendas, determinada pelo ministro Flávio Dino. Olhem as ditas-cujas aqui outra vez… Reivindicam destinar bilhões de verbas do Orçamento para as sua respectivas máquinas político-eleitorais, sem prestar contas a ninguém. Se o STF lembra que a prática viola a Constituição, qual a resposta? Ora, tornem-se sem efeito as decisões do tribunal.

FACILITAR O IMPECHMENT DE MINISTROS

3) O PL 4754/2015 cria novas hipóteses para crimes de responsabilidade dos ministros. Hoje, o Artigo 39 da Lei 1.079 prevê cinco hipóteses de crime de responsabilidade para os membros da corte, a saber:

1- alterar, por qualquer forma, exceto por via de recurso, a decisão ou voto já proferido em sessão do Tribunal;
2 – proferir julgamento, quando, por lei, seja suspeito na causa;
3 – exercer atividade político-partidária;
4 – ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo;
5 – proceder de modo incompatível com a honra dignidade e decoro de suas funções.

O PL cria mais cinco:

6- Usurpar, mediante decisão, sentença, voto, acórdão ou interpretação analógica, as competências do Poder Legislativo, criando norma geral e abstrata de competência do Congresso Nacional;
7 – Valer-se de suas prerrogativas a fim de beneficiar, indevidamente, a si ou a terceiros;
8 – Divulgar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processos ou procedimentos pendentes de julgamento, seu ou de outro ministro, ressalvada aquela veiculada no exercício de funções jurisdicionais, bem como a transmitida em sede acadêmica, científica ou técnica;
9 – Exigir, solicitar, receber ou aceitar promessa de vantagem indevida, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, em razão da função;
10 – Violar, mediante decisão, sentença, voto, acórdão ou interpretação analógica, a imunidade material parlamentar prevista na Constituição Federal.

“Ah, Tio Rei, o que é que tem? Essas coisas são feias mesmo.”

Pois é… O diabo mora nos detalhes. O Item 6 quer impedir o Supremo de interpretar a Constituição em casos em que haja uma omissão do Congresso. Querem um exemplo, que açula O espírito de porco dessa gente? A punição da homofobia. Ou o reconhecimento da união homoafetiva. Mais uma vez, o Congresso chamaria para si o papel de juiz dos juízes.

O item 10 pretende transformar a imunidade parlamentar num instrumento para o vale-tudo, de modo que ela não serviria apenas para o exercício livre do mandato, mas também para o cometimento de crimes.

A proposta cria ainda um prazo de 15 dias para que o presidente do Senado, responsável por analisar pedidos de impeachment de ministros, tome uma decisão. Hoje, esse prazo não existe.

4) O PL 658/2022 abre a possibilidade de apresentação de recurso ao plenário do Senado caso o presidente da Casa rejeite um pedido de impeachment. Basta, para tanto, a assinatura de um terço. Não sendo analisado em 30 dias, tranca a pauta até ser votado.

CAMINHANDO PARA O ENCERRAMENTO

O Supremo, que salvou a democracia brasileira e que a preserva de pistoleiros como Elon Musk — que chega a contar com uma verdadeira “bancada” no Congresso — tem muitos inimigos.

A pauta contra o tribunal só avança com tamanha desfaçatez na CCJ da Câmara porque os “chavistas de extrema-direita” passaram a encontrar também da imprensa eco a seus delírios totalitários. Atacar o tribunal virou assunto de colunista desocupado.

O que se tem aí é ânimo retaliatório do golpismo derrotado e do “emendismo” ressentido.

Essa mesma CCJ, diga-se, quer ainda aprovar a anistia aos golpistas que praticaram crimes entre 30 de setembro de 2022 e a data de promulgação da lei. Também isso é inconstitucional.

Eis aí o Brasil que os patriotas têm em mente. Não lhes basta assaltar os cofres públicos para se perpetuar no poder, manietando o Executivo. É preciso também calar e ameaçar o Judiciário.

Enquanto isso, os líricos do liberalismo Nível Massinha I fazem panegíricos ao “espírito conservador” do nosso povo com base no resultado das eleições municipais…

Charge: Lila, 2022.

 

 

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