Em encontro da Abrasco e ENSP, pesquisadores traçam balanço do programa, examinam as transformações por que passou e refletem sobre seu futuro – que é essencial para a realização dos objetivos do SUS é demandará cada vez mais investimento público
por Gabriel Brito, em Outra Saúde
Instituído pela lei 8.080 em 1990, o SUS se efetivou no território brasileiro ao longo dos anos seguintes. Antecedido pelo Programa Agentes Comunitários de Saúde em 1991, a Estratégia de Saúde da Família (ESF) foi estabelecida em 1994 e é até hoje uma espécie de coluna vertebral do sistema de saúde pública do país e seu objetivo de universalidade. Na celebração de seus 30 anos, Rede Atenção Primária à Saúde (RAPS) da Abrasco e o Observatório do SUS da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz realizaram um seminário com autoridades de governo e pesquisadores da área, no qual se analisaram seus atuais desafios frente a um mundo que passa por complexas crises e mudanças.
Intitulado “30 anos da ESF no SUS: efeitos no acesso e na saúde da população”, o encontro virtual foi mediado pelos pesquisadores Luiz Augusto Facchini e Lígia Giovanella, vinculados às duas organizações. Para além do reconhecimento da transformação no direito à saúde causado por tal política, olhou-se para as necessidades presentes e futuras que se incorporam ao SUS.
“Reconhecemos o avanço na organização da Atenção Primária em Saúde (APS) nos municípios, é o modelo mais assertivo e que obtém mais resultados. Mas é necessário terminar de adequá-lo a características de alguns municípios. Devemos avançar na qualificação dos trabalhadores, melhorar a residência de Medicina de Família e Comunidade. Em tese, APS resolve 85% dos problemas em saúde, mas a situação do país se aprofundou. Fenômenos como a covid longa, epidemia da dengue e queimadas pesam sobre o SUS, que além disso mantém suas atribuições de sempre, linhas de cuidado, prevenção, vacina, campanhas em escola”, enumerou Cristiane Pantaleão, do Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (Conasems).
Como destacado, a Estratégia de Saúde da Família é fruto de concepções de saúde coletiva afirmadas na década de 70, com base nas experiências dos sistemas de saúde da Europa pós-guerra, tanto no bloco socialista como ocidental, sendo parte essencial da chamada era de ouro do bem estar social no continente. Aplicados ao Brasil, seus conceitos estão diretamente relacionados com a redução da mortalidade infantil e aumento da expectativa de vida.
“A Estratégia de Saúde da Família é referência regional e global na organização do cuidado em saúde para além das considerações biomédicas; 46 anos depois da Conferência de Alma Ata, os princípios da saúde coletiva são mais presentes do que nunca. A covid-19 mostrou que quem tinha estratégias como essa conseguiu responder muito mais rápido”, afirmou Julio Pedroza, coordenador de Sistemas de Saúde da Organização Pan-Americana de Saúde.
Pedroza se refere ao Congresso realizado na capital do Cazaquistão em 1978, cujo documento final entrou para a história da saúde coletiva ao afirmar os princípios básicos da Atenção Primária, basicamente uma concepção de promoção da saúde a partir da prevenção.
Após a ditadura, o Brasil substituiu seu então modelo, baseado em internações e que excluía a massa de brasileiros jogados na informalidade, pelo SUS, com foco na atuação territorial e contato permanente com a população. É o que se chama de “longitudinalidade” em saúde. Dentro disso, absorveu os conceitos de medicina comunitária, postos em marcha a partir da criação da Estratégia de Saúde da Família.
“ESF é também (os programas) Brasil Sem Fome, Ruas Visíveis, Bolsa Família”, contextualizou Felipe Proenço, atual Secretário de Atenção Primária em Saúde do governo federal. Em sua participação, tratou de colocar na mesa os planos do Estado para o setor na atual administração, em consonância com as necessidades de um país bem diferente daquele de 30 anos atrás.
“Ampliar em 25% o orçamento da APS é fundamental para garantir equipes de saúde bucal e multiprofissionais. É isso que fará os próximos anos de ESF. De abril para setembro, tivemos a conversão de 235 equipes de APS em equipes de saúde da família, com salto de 52.538 equipes para 61.262 desde o início do governo atual. A meta é uma cobertura real da população de 80% em 2026, apontando para a universalidade, com criação de 2.220 Equipes da Família por ano e 3.330 de saúde bucal”, contextualizou Proenço.
Os debatedores não ignoram os retrocessos deliberadamente promovidos no governo anterior, cujo secretário de atenção primária foi peça central, um bolsonarista mais preocupado em legislar sobre aborto, que destruiu o Mais Médicos e dessa forma afastou milhões do SUS. Mas há um mundo de mudanças climáticas, eventos catastróficos e epidemias potencializadas pelo aquecimento global para enfrentar. E, nesse sentido, além da reconstrução propalada pelo governo Lula é necessário construir “os próximos 30 anos da Estratégia de Saúde da Família”.
“Nisso entra a questão do financiamento, pois uma equipe mínima de saúde da família custa R$ 100-150 mil mensais, sem falar nas equipes multiprofissionais (nova política que começa a ser implementada e amplia o leque de profissionais de uma equipe de saúde da família), como educadores físicos, psicólogos, nutricionistas. O desafio é enorme e o financiamento aparece cada vez mais como uma questão decisiva, não só do Ministério, e sim da totalidade do país”, analisou Cristiane Pantaleão, do Conasems.
Aqui também entra a própria noção de economia da saúde, no qual o papel no Estado na geração de investimentos é central na busca pelo objetivo de universalização efetiva do acesso à saúde. Investimentos tanto em pessoal como infraestrutura física são duas bandeiras da atual política em saúde e inclusive servem como afirmação de um governo cercado por forças retrógradas que se apropriam do Estado e seu orçamento, enquanto hipocritamente professam austeridades e privatismo para a massa.
“Isso passa pela portaria 3.493, de abril, sobre o modelo de financiamento, ao se resgatar a importância do piso de Atenção Básica fixo e variável, para garantir o mínimo para as equipes considerando a vulnerabilidade dos lugares. Devemos olhar o período anterior, quando o número de equipes criadas por ano era insuficiente, não se investia em estrutura, se focalizava em indicadores que isolados não refletiam a complexidade da ESF e não se investia na formação. Agora podemos pensar nisso tudo, inclusive porque o PAC prevê R$ 7 bilhões em investimentos, que poderão construir 1.800 UBS já aprovadas (o PAC prevê um total de 3.600), o que também traz investimentos em equipamentos”, disse Proenço, que ainda incluiu a retomada do Mais Médicos, o incentivo à progressão de carreira de quem adere ao programa e também a telessaúde como aspectos fundamentais para o próximos avanços da Estratégia de Saúde da Família.
Novo presidente da Abrasco, Rômulo Paes valoriza o sucesso de uma política pública que efetivamente mudou o país para melhor e contraria as teses de “ineficiência” do serviço público. No entanto, não é tempo de acomodações em torno daquilo que já deu certo, e sim de busca pela renovação de seus sentidos, o que parece uma leitura de todo um dilema em torno do terceiro governo Lula e a conciliação de forças nem sempre conciliáveis.
“A Estratégia de Saúde da Família é uma das ações públicas do Brasil que se tornam vitrine, como Bolsa Família ou o programa de prevenção à Aids. E mostrou resiliência ao sobreviver a um governo irresponsável quanto ao papel da atenção primária em saúde. Ainda há muito a construir. Os resultados da APS são impressionantes, mas as dificuldades são grandes também”, sintetizou.
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Foto: Dênio Simões/Agência Brasília