Belo Monte: o paquiderme de energia parado. Por Lúcio Flávio Pinto

Em Amazônia Real

A imprensa nacional descobriu a pólvora. Uma curta “reportagem especial” da TV Bandeirantes, exibida na semana passada, fez a denúncia: das 18 turbinas instaladas na barragem da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará, 17 não estavam funcionando. Mesmo a única máquina em atividade, só estava utilizando metade dos seus 650 megawatts de potência. Na plena potência, a geração da usina seria de 11.450 MW.

Em geração máxima, Belo Monte seria capaz de atender 12% do consumo de energia do Brasil, mas agora é responsável por 0,61%. Em alguns dias ficou totalmente parada porque a vazão do rio, um dos maiores do mundo, não era suficiente sequer para movimentar uma única turbina. A severidade da situação é consequência de uma estiagem recorde em vários rios da bacia amazônica, a maior do planeta. A única surpresa é esse grau de severidade, mas não a paralisação da enorme hidrelétrica, que custou 40 bilhões de reais, o dobro do valor de projeto.

Belo Monte foi concebida ainda sob a ditadura militar para seguir o modelo da hidrelétrica de Tucuruí, então a quarta maior do mundo: vários reservatórios rio acima, abrangendo no total 11 mil quilômetros quadrados (quase quatro vezes mais do que o lago artificial formado no rio Tocantins, o segundo maior do país). Esses reservatórios acumulariam água no período de chuvas abundantes para usá-la no verão, quando a vazão natural é mínima.

Uma ampla campanha contra esse projeto, que se intensificou com a volta da democracia, em 1985, obrigou a Eletronorte a cancelar os reservatórios de montante. Manteve apenas um lago menor, insuficiente para reter a quantidade de água necessária ao funcionamento das turbinas. Belo Monte se tornou a maior hidrelétrica a fio d’água do mundo. Teria que se restringir a uma baixa geração no período de poucas chuvas.

Essa situação eu já informava em vários dos artigos dedicados à questão. Reproduzo em seguida um trecho do longo texto que escrevi em 2002 (22 anos atrás), depois de assistir a uma palestra do presidente da Eletronorte em Belém.

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Belo Monte será quase uma usina a fio d’água, sem reservatório, ou com um reservatório mínimo. A estocagem de água vai ser o bastante para elevar a cota do pequeno lago para a altura das cheias normais, que cobrem as partes mais baixas de Altamira. Estas, ficarão submersas permanentemente (“vocês podem até fazer praias”, sugeriu o engenheiro Muniz [Lopes, presidente da Eletronorte]) e não mais apenas no auge da enchente-padrão. Nas super-cheias poderá haver uma elevação do nível do rio em dois metros, para a cota 98.

Para se ter uma ideia de grandeza, o reservatório da hidrelétrica de Tucuruí mantém em estoque quase 45 bilhões de metros cúbicos de água (ou 45 trilhões de litros). Em Belo Monte, o volume será de 3,7 bilhões, pouco mais de 8%. Um dado ainda mais impressionante: enquanto o volume útil em Tucuruí (considerando a água usada para a geração de energia) é de 32 bilhões de m3, no Xingu esse volume é zero.

Daí a conclusão, de certa forma alarmante, de que essa portentosa hidrelétrica em apresentação a uma sociedade boquiaberta será a fio d’água. Ou seja: a água que chega vai passando diretamente para as imensas turbinas, beneficiando-se de uma queda bruta de 89 metros (contra 63 metros em Tucuruí), que assegura a impressionante capacidade nominal de 11 milhões de kw.

Para as 20 máquinas alcançarem sua rotação máxima de fábrica, precisarão de 14 mil metros cúbicos de água (ou 14 milhões de litros) por segundo (700 m3 por cada máquina). As vazões do Xingu variam entre um máximo de pouco mais de 30 mil m3/segundo (menos da metade do recorde de vazão do Tocantins) e um mínimo de 443 m3/s. Mas o rio costuma ter estiagens rigorosas durante 2 a 3 meses.

Isto significa que durante esse período nenhuma das maravilhosas máquinas de Belo Monte poderá funcionar. Em outros três meses, o funcionamento será de 2 a 4 máquinas. Ao longo de seis meses o Xingu verte menos do que os 14 mil m3 necessários para manter as máquinas em atividade. Assim, a interrupção total na geração de energia na projetada usina será de três meses completos. E ainda haverá três meses de baixa produção de energia por conta da falta de água suficiente para acionar todas as máquinas. Portanto, durante todo um semestre Belo Monte adicionará uma quantidade de energia muito abaixo da sua potência firme. Em um trimestre, simplesmente nada.

Para atenuar esse impacto, o presidente da Eletronorte diz que nesse período Belo Monte vai se servir dos reservatórios das hidrelétricas do sul e sudeste do país, com outro regime hidrológico, beneficiando-se da completa interligação dos sistemas nacionais de energia. Mas isso é um sofisma, tão convincente quanto o do maravilhoso estalo mental do engenheiro diante do mapa do Xingu.

Para quê, então, gastar fortunas com enormes linhas de transmissão, para as quais é preciso estabelecer uma alta tensão, complicando o aproveitamento nas zonas de passagem (sobretudo a eletrificação rural), além de sofrerem perdas expressivas entre a geração e o rebaixamento da energia? Compensar a falta de água na Amazônia, que tem 20% do que os rios lançam nos oceanos, com a cada vez mais problemática água do Sul, não é uma temeridade?

Muitas outras perguntas cabem. Por incrível que pareça, nenhuma palavra a Eletronorte disse até agora sobre os efeitos a jusante da barragem, Ao encontrar sua foz, a menos de 300 quilômetros de distância, o Xingu se espraia num delta, fenômeno excepcional em termos planetários para um rio interior. Qual será o efeito do vertimento direto de água pelos canais, com uma queda bruta considerável, de 90 metros, e o vazamento natural através da grande volta, num percurso de 50 quilômetros, passando a ter algum grau de regulagem nos vertedouros que ali serão construídos?

Não haverá momentos de descarga excepcionalmente intensa ou, pelo contrário, de fluxo excepcionalmente abaixo do que seria a descarga natural do rio? Pode-se prever fortes impactos do represamento a jusante, aspecto até agora deixado de lado, como se, à semelhança da transposição, fosse detalhe irrelevante.

Assim continuará se os termos da equação não forem invertidos. A Eletronorte não pode permanecer à frente do processo. Precisa estar subordinada a duas instâncias, uma governamental e outra mais diretamente representativa da sociedade, ambas capazes de impor como premissa a inserção do projeto da hidrelétrica num plano mais amplo e normativo de desenvolvimento do vale do Xingu, não como referência a posteriori. Com sua competência restrita e sua expertise condicionada ao uso da barragem para fins de geração energética, a Eletronorte vai servir de biombo inadequado de transição para o controle privado da obra.

Se o projeto encantou alguns ouvintes do engenheiro Antônio Muniz, deve ter estarrecido outros, entre os quais me incluo. Querendo induzir a melhor das expectativas, ele chegou a anunciar o asfaltamento da Transamazônica no trecho da obra (até admitiu que esse viria a ser um problema, quando fosse necessária a relocação da estrada). Todos os presentes, inclusive os mais entusiastas da exposição, contudo, não podiam desconhecer a miserável situação da rodovia, quase intrafegável em alguns trechos.

Colocado diante da realidade, o engenheiro saiu-se com uma pérola: atribuiu sua má informação a uma revista local e justificou-se por repassar um dado inverossímil, alegando que seu entusiasmo é tanto que o leva a crer, de pronto, nas boas notícias. Mesmo que flagrantemente falsas. Otimismo de causar inveja ao doutor Pangloss.

Seguindo um orçamento de partida, com todas as características de possuir o rigor das coisas feitas no Brasil para inglês ver, a Eletronorte projeta investimento de bilhões de reais numa barragem motorizada a ser implantada num lugar de grande complexidade ecológica, muito mais do que humana, para ter uma monumental usina a fio d’água, que só poderá funcionar a plena carga durante meio ano. Justamente por isso, a potência firme da usina desaba dos 11 milhões de kw nominais para 4,7 milhões de kw médios, com um fator de capacidade de 43%, abaixo da média internacional, que é de 50%.

Sob este aspecto, a hidrelétrica do Xingu começa num nível inferior à do Tocantins. A conclusão lógica é de que outros barramentos terão que ser feitos a montante, quando nada para garantir uma vazão útil econômica (situação que já existe em relação à segunda etapa de Tucuruí, com uma queda de 4,2 milhões para 1 milhão de kw firmes).

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Sobre a solução encontrada para que a usina fosse concluída, transcrevo artigo de 2015.

A Norte Energia concluiu, no dia 25 do mês passado, uma obra importante para o início da sua operação: o revestimento do canal de derivação da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. O canal foi revestido com 7,1milhões de toneladas de rocha extraída na própria região, sendo 4,4 milhões de metros quadrados para o piso e 2,7 milhões de metros quadrados de rochas nos taludes.

Ele possui 20 quilômetros de extensão, 300 metros de largura média entre as margens e 25 metros de profundidade (equivalente a um prédio de oito andares). Foi rasgado na terra com a escavação de 110 milhões de metros cúbicos de solo e rocha para ligar os reservatórios principal e intermediário da usina, que acumulam água para o funcionamento das suas máquinas.

Quando concluída, ela será a quarta maior hidrelétrica do mundo, com capacidade para gerar 11 mil megawatts, a um custo que já chegou em 30 bilhões de reais [valor da época].


A imagem que abre este artigo é de autoria de Marco Santos/ Agência Pará e mostra as turbinas da Usina hidrelétrica de Belo Monte, em Vitória do Xingu, durante a inauguração oficial no dia 25/11/2019.

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