Como o Bixiga se tornou o bunker vermelho no coração de São Paulo

Formado por quilombolas, imigrantes italianos e, depois, trabalhadores nordestinos, um dos mais tradicionais bairros de São Paulo tem se tornado o último reduto da esquerda na cidade. Mas nem sempre foi assim: mesmo com histórico de luta, a região voltou a guinar à esquerda nos últimos anos devido a inúmeras iniciativas culturais, sociais, teatros e livrarias – operando uma transformação radical no território.

Por Hugo Albuquerque e Cauê Seignemartin Ameni*, Jacobin

O Bixiga não existe. É o que você vai ler em boa parte dos relatos sobre ele. Formalmente, este que é o bairro síntese de São Paulo não existe mesmo – ou teria por nome oficial Bela Vista, que é praticamente uma gêmea e antagonista. Mas poucos lugares existem – e resistem – tanto quanto o Bixiga, incrustado no coração de São Paulo, bem no meio do caminho entre o Centro Velho e a Avenida Paulista.

Basicamente, o Bixiga foi a maior votação de Guilherme Boulos, entre as três únicas zonas eleitorais nas quais ele venceu Ricardo Nunes no segundo turno – já no primeiro turno, foi a maior votação de Boulos e a única zona eleitoral vencida por mais de 40% dos votos por qualquer um dos candidatos. A avaliação que se segue, no entanto, não é sobre eleição apenas, mas como esse resultado é sintoma de um outro fenômeno mais abrangente.

Bem no centro da cidade que é a maior de todas nas Américas e uma das maiores do mundo, perdendo para pouquíssimas cidades fora da Ásia, o Bixiga se tornou um bunker vermelho nas últimas duas eleições. Apesar da sua composição social, de trabalhadores e não brancos, o cenário não era bem esse há poucos anos, nos quais o predomínio da direita era quase sempre certo.

A mudança de ventos eleitorais é apenas um dos reflexos de uma transformação. Nos últimos anos, espaços culturais, movimentos sociais, livrarias e diversas iniciativas de esquerda se somaram ao terreno fértil do bairro, que enfrenta desafios como nunca, trazidos pelo avanço da especulação imobiliária que vem junto da construção – atrasada e duvidosa – da linha laranja do metrô. Diferentemente de uma militância de tempos de eleição, o caldo cultural e militante cotidiano no bairro tem gerado efeitos sólidos nas eleições.

Enquanto boa parte da esquerda fala sobre as ondas da direita como “falha de comunicação”, de partidos ou candidatos, “traição dos mais pobres” ou, simplesmente, alienação dos desfavorecidos, a verdade é que o tal trabalho de base é contínuo e permanente – e a extrema direita atual sabe muito bem disso, e justamente por isso ela tem bases sociais reais e militantes, como as igrejas evangélicas.

Muito além de um bairro italiano

Embora tenha sido nomeado em razão do loteamento de Antônio Bexiga no século XIX, o que hoje é o bairro consistia em uma trilha indígena, um dos chamados peabirus, como muitas outras regiões ou avenidas em São Paulo. O povoamento pelos portugueses começou ainda em 1559, e a criação do sítio do Capão, que funcionou como uma espécie de zona rural em um encontro de nascentes e rios, muito antes de haver avenida Paulista.

No meio tempo entre o sítio do Capão, depois sítio das Jaboticabeiras, e nascimento do Bixiga propriamente dito, a região foi um lugar de refúgio da população negra da cidade, um dos primeiros quilombos urbanos situado às margens do rio Saracura – próximo de onde era a escola de samba Vai-Vai, uma memória que foi mantida pela tradição oral, embora apagada sistematicamente pelas narrativas oficiais.

Essa comunidade consiste na ocupação negra mais antiga e contínua de São Paulo. Com a construção da Avenida Paulista no século XIX, onde era uma grande mata, e a chegada dos barões do café para morar nos seus casarões e a chegada de levas imensas de imigrantes italianos à cidade, o centro nevrálgico paulistano é deslocado – e a cidade vê um novo surto de crescimento que altera o equilíbrio das imediações do Saracura.

O loteamento da região do Saracura é batizada de Bexiga, depois Bixiga, por conta de Antônio Bexiga e terá relação imediata com a nova São Paulo que nasce – no lugar de uma cidade basicamente pequena, longe do litoral e sujeita às grandes cidades do interior. A estrada de ferro e a economia do café são centrais nesse deslocamento do centro de gravidade de São Paulo e, praticamente, sua refundação.

Contudo, o bairro ganhou o nome oficial de Bela Vista no começo do século XX, pois isso se referia à perspectiva que se tinha do centro da cidade desde a avenida Paulista. Mas ainda se manteve como uma zona de intersecção entre imigrantes do sul da Itália e negros, produzindo o samba paulistano – cuja expressão maior é a figura de Adoniram Barbosa. Tudo isso aconteceu antes da chegada dos trabalhadores nordestinos nas pensões e cortiços.

Apesar da construção que busca apresentar o Bixiga como “bairro italiano”, muitas das ruas do bairro guardam a memória da abolição da escravatura. Para além de referências óbvias ao fim da escravidão como as ruas Treze de Maio, Abolição e Rui Barbosa, outras ruas como a Conselheiro Ramalho e Almirante Marques Leão homenageiam, respectivamente, um abolicionista e um crítico tardio do racismo institucional.

Inclusive, o samba nunca foi a única forma de música negra a conseguir espaço no Bixiga. O bairro também se desctaca como celeiro do rap nacional, abrigando nomes como o Região Abissal (primeira banda a lançar um álgum de hip hop no Brasil) e Potencial 3, além de abrigar festas como a seminal Clube do Rap, que inclusive voltou a funcionar mensalmente dentro do Rap Hour do DJ Roger, uma quinta-feira por mês no Sol y Sombra 2.

A aclamação da italianidade do bairro, por sua vez, sempre se esquivou de contar a verdadeira história do que essa parte da conversa quer dizer: não só que o bairro não é apenas italiano, mas que essa imigração, exaltada pelo viés da branquitude e do apagamento negro, na verdade consistiu na vinda de trabalhadores pobres do sul da Itália, que se integraram e coexistiram com a população negra já presente.

Isso se soma ao mega-crescimento de São Paulo na segunda metade do século XX, as muitas pensões e cortiços superlotados, que serviram como habitação precária para operários nordestinos, principalmente da construção civil e serviços. Isso produziu uma síntese multirracial, cosmopolita, capaz de abraçar o Brasil e o mundo, muito além da construção de uma “nação brasileira” pensada apenas para incluir os brancos.

Nas muitas fases de destruição e renascimento do Bixiga, inclusive sediando a cultura gastronômica ítalo-paulistana das cantinas e recepcionando inúmeros teatros, mas também terreiros de religiões de matriz africana e lugares alternativos, a hegemonia política, contudo, sempre esteve à direita – por diversos fatores, o que resultou na marginalização da sua própria população originária e o domínio de oligarquias locais.

O Bixiga contemporâneo

Se no ciclo da primeira década do século XXI há um renascimento da rua na vida paulistana, depois das viradas culturais, o Bixiga alcança isso na segunda metade da década de 2010. E aí aparecem a formação de espaços como o Ateliê do Bixiga, em 2015, congregando mídias, editoras e até academia antifascista; a chegada do centro cultural palestino Al Janiah em 2017, a explosão de movimentos como o Bloco do Fuá, o Saracura Resiste e o Bixiga sem Medo em 2018.

Há uma enormidade de iniciativas como bares, como a Canhota, Sol y Sombra, e livrarias como a Simples, Rizoma e a antiga livraria da Expressão Popular, além de editoras como Autonomia Literária e Alameda, os quais se somam a um território que já tinha, historicamente, o bar de cultura latina ECLA, a União Municipal dos Estudantes Secundaristas (UMES), a casa do Mestre Ananias, o Teatro Oficina e o Vai-Vai.

Vale destacar também que esse ano a Festa Literária Pirata das Editoras Independentes (FLIPEI), um dos maiores eventos de esquerda do país, realizou sua 7ª edição no Bixiga e a Cozinha Popular Vegana também se mudou para bairro.

O radialista e militante Marco Ribeiro, que é uma das principais figuras na organização do Bloco do Fuá, que já tem 12 anos no Bixiga, além de mais dois anos de mobilização Saracura Vai-Vai, lembra da Iniciativa do Bixiga sem Fome, um feito central durante a pandemia, que foi marcada pela mistura de trabalho assistencial de emergência com politização das comunidades pobres do bairro:

O Bixiga sem Fome formamos no início da pandemia, em março de 2020, e tinha duas frentes: na primeira cozinhávamos duas vezes por semana aos sábados e quartas fazendo 100 alimentações por dia. Na segunda distribuímos, mensalmente, cestas básicas para 250 mães de família mediante uma roda de conversa em que conversávamos sobre moradia digna, saúde, cultura popular, eleições… fazendo conscientização social e política.

O cenário do Bixiga, portanto, não é só de boemia. O avanço tardio da linha laranja do metrô levou ao desalojamento da sede do Vai-Vai e trouxe junto um fluxo de especulação imobiliária. Sinais do tempo, e da política de “verticalização” em torno das estações de metrô, o que não se mostrou bem-sucedido – ao contrário do que prometia a gestão Haddad, ainda em 2014, e só foi, nesse sentido, radicalizado por Ricardo Nunes.

Pior ainda, mudanças recentes na lei municipal feitas por Ricardo Nunes, basicamente destruíram a proteção ao patrimônio histórico, ameaçando casarões que ainda resistem e podem virar espigões. É nesse sentido que essa nova onda no Bixiga tem se mobilizado e gerado inúmeras iniciativas de contestação.

(Reprodução Globo/TSE)

Resultado eleitoral

Se no primeiro turno da eleição municipal chamou a atenção que, entre as 58 zonas eleitorais de São Paulo, a Bela Vista foi a que deu mais votos a favor do candidato que representava a esquerda, conferindo 43,65% dos votos válidos a Guilherme Boulos, o segundo turno confirmou isso com uma vitória na casa de 55,24%.

Na eleição de 2020, Boulos com Luiza Erundina de vice já tinham iniciado a virada na Zona Eleitoral, com uma grande votação. Em 2022, na eleição para presidência e governador, Lula e Haddad venceram na Bela Vista, na primeira vitória da esquerda desde Marta Suplicy, em 2000. Antes, apesar de toda sua tecitura social, apenas Fernando Henrique Cardoso, candidato a prefeito de “centro esquerda”, em 1985, havia vencido Jânio Quadros.

Em 2018, num discurso polêmico mas que até hoje é usado como referência para entender a atual crise da esquerda, Mano Brown antecipou a derrota e lembrou que as forças progressistas precisam voltar para a base. Onde estão os sindicatos, partidos, CEBs, pontos de cultura e etc. no dia-a-dia do povo durante os períodos não eleitorais? Será que eles foram substituídos por igrejas evangélicas, redes sociais e festas de caridade?

Como lembrou o sociólogo e jornalista André Takahashi sobre o resultado do primeiro turno:

O controle territorial na política não vem de panfletagem poucos meses antes da eleição. Ele é fruto de enraizamento de agentes na região, estabelecimento de espaços de socialização e acolhimentos, instalação de alternativas econômicas, de meios de comunicação próprios e ocupação dos espaços locais de poder como conselhos e até mesmo [do cargo] de síndicos de prédio.

Se a esquerda quer se reconectar com o povo, ela precisa estar presente no seu cotidiano. Além de querer apresentar uma alternativa de futuro, ela precisa se materializar no presente. Votos não brotam em árvore e panfletos antes da eleição não mudam resultado eleitoral. A presença digital é importante, mas ela não substitui o poder territorial.

Tampouco, fenômenos espontâneos se sustentam sem a construção de instrumentos políticos maiores, que lhes serviam de guarda-chuva. O que exige e demanda atenção dos assim chamados partidos de esquerda, cuja votação expressiva não veio do nada, nem exclusivamente da força de suas campanhas, que não foi, por sinal, suficiente na maior parte do município, inclusive em zonas eleitorais até mais à esquerda pela história.

O território é central na disputa política, não à toa o objetivo de qualquer guerra é conquistá-lo. Igualmente, uma realidade social “ideal” como o Bixiga – com desigualdade social visível –, diversidade racial, história de luta e etc., não é por si só suficiente para a garantia do voto. É necessário resgatar e conectar a luta do passado com as ações do presente. A esquerda precisa entender isso ou continuará perdendo terreno para aventureiros de última hora.

Sobre os autores
Hugo Albuquerque é publisher da Revista Jacobina, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP e advogado.

Cauê Seignemartin Ameni é publisher da Jacobin Brasil, editor da Autonomia Literária e um dos organizadores da Festa Literária Pirata das Editoras Independentes (FLIPEI).

Imagem: Casa no Bixiga (Bela Vista), em São Paulo, onde Boulos teve maior votação proporcional. Foto de Adriano Vizoni / Folhapress

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