Congresso da Abrasco reúne pesquisadores, movimentos sociais e trabalhadores para refletir sobre desigualdades na saúde. Desastres climáticos, ameaças de cortes e crises sociais impõem desafios que exigem novas respostas políticas
por Gabriela Leite e Guilherme Arruda, em Outra Saúde
Em meio a um contexto político turbulento, teve início ontem, 3/11, o 5º Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão da Saúde, organizado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). O evento acontece em Fortaleza (CE) entre os dias 3 e 6 de novembro, e tem uma programação de rodas de conversa entre pesquisadores, mesas redondas e debates, além de apresentações artísticas e culturais. São mais de 3 mil pessoas inscritas para participar das dezenas de atividades diárias do Congresso.
“Essa diversidade é a alma da Abrasco”, celebrou Rômulo Paes de Sousa, presidente da associação, em entrevista ao Outra Saúde. “O momento político é favorável para a Saúde Coletiva, mas existem desafios muito grandes para o nosso sistema de saúde”, alerta. São eles, em especial, os desastres ambientais que estão surgindo com mais força neste último ano; o ciclo da dengue em 2024 que provocou o maior número de casos e pode piorar; e o contexto político complexo, embora o Brasil tenha, hoje, um Ministério da Saúde comprometido com o SUS.
Um dos motivos é a pressão por corte de gastos sociais, que vem inundando as manchetes da mídia comercial nos últimos dias – e contra a qual importantes sanitaristas vêm se posicionando contra, inclusive em um manifesto sobre o qual tratamos há poucos dias neste boletim. “Nós temos uma situação na qual há déficits históricos no SUS, e temos dificuldade de enfrentá-los”, reflete Rômulo. “Agora, a correlação de forças no Congresso é muito desfavorável. Há uma pressão fortíssima por corte de gastos, e o alvo sempre é apontado na direção dos mais pobres.”
Ainda em relação ao contexto político, o presidente da Abrasco chama a atenção para outro grande problema a ser enfrentado: o aumento do poder do Congresso Nacional sobre o orçamento, por meio de emendas parlamentares. “É uma usurpação, um sequestro e um prejuízo para o SUS”, define ele, e alerta para o crescimento proporcional dos recursos públicos controlados pelos parlamentares, em relação ao primeiro governo Lula. “Esse é um recurso já existente no orçamento; não produz um crescimento. É o contrário: retiram-se da saúde recursos discricionários. O total de emendas deste ano foi de quase R$ 50 bilhões.”
Cabe aos participantes do Congresso, portanto, debater e pensar o SUS nesse contexto adverso. O tema escolhido para o 5º PPGS foi “Política, saberes e práticas: Resistência e insurgência no enfrentamento das iniquidades em saúde”. Sobre a questão das desigualdades, Rômulo traça um panorama global: “Nós observamos, no mundo, dois grandes desafios globais. Um são as iniquidades socioeconômicas mundiais, regionais, e também, dentro dos países. Elas têm crescido. E o outro tema é a agenda ambiental, principalmente a questão da agenda do clima”.
Abertura oficial do congresso
Na cerimônia de abertura do 5º PPGS, uma série de oradores convidados celebraram a oportunidade de reunir pesquisadores, trabalhadores, estudantes e militantes de movimentos sociais de todo o país para realizar novas discussões na área da Saúde Coletiva. As intervenções deram particular ênfase aos desafios da atual conjuntura para o SUS e todos aqueles que defendem a saúde pública no Brasil.
Em uma fala que fez a abertura oficial o Congresso, o presidente da Abrasco destacou a centralidade dos movimentos sociais, e não apenas das instituições, para o enfrentamento da iniquidade no acesso à saúde: “Falamos muitos da função do Estado e das consequências trágicas da ausência do Governo em momentos como a pandemia, mas é preciso falar também da presença dos movimentos sociais, do seu papel nas ações de solidariedade com a população durante a pandemia, na luta dentro das estruturas do SUS e até mesmo substituindo o Estado quando ele foi criminoso e omisso”.
A presença expressiva desses movimentos sociais no 5º PPGS deve servir “para nos lembrar que ainda estamos devendo muito, apesar do muito que fizemos” e estimular os presentes a “contribuir de forma crítica para que o sistema de saúde do Brasil avance muito mais”, concluiu Rômulo.
Vice-presidente da Abrasco e presidente do Congresso, a professora da UFC Carmem Leitão de Araújo deu início à cerimônia apontando que, para superar os enormes desafios de uma conjuntura de ataques à democracia e ao SUS, “nossa pluralidade requer que inovemos e criemos novas possibilidades de conhecimentos, saberes e práticas” em Saúde Coletiva. Muitos avanços já foram feitos em quase 35 anos de SUS e 30 anos do início da implementação nacional da Estratégia da Saúde da Família, mas “as mudanças ainda foram limitadas frente às possibilidades que temos, e não são poucos os desafios”. Por isso, ela defendeu, “insurgir e resistir em defesa do SUS se faz cada vez mais necessário hoje”.
Representante do Ministério defende gastos com Saúde
Representante do governo no 5º PPGS, o secretário-executivo do Ministério da Saúde (MS) Swedenberger Barbosa recapitulou em sua intervenção os avanços promovidos pela atual condução da pasta nos últimos dois anos, como a recuperação dos índices de cobertura vacinal, mas também pôs na balança que “o gasto público ainda não passa de 45% do gasto social com saúde”. Afirmando o compromisso do Governo Federal com o objetivo de reduzir a iniquidade no acesso à saúde, Swedenberger disse: “Não vamos aceitar que a dinâmica tradicional do poder no Brasil se torne um entrave para a superação dos desafios impostos pela desigualdade. Governo e sociedade devem trabalhar juntos nisso. Contamos com vocês nesse processo e vamos fortalecer o SUS e a democracia”.
Já o atual presidente da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), empresa responsável pela gestão dos hospitais universitários federais, Arthur Chioro ressaltou a “dificuldade de pensar a atenção hospitalar nos marcos da Saúde Coletiva”, já que os “hospitais foram apartados dessa dinâmica”. Apesar disso, ele afirma que ações têm sido promovidas para que os “HUs federais sejam do SUS, no SUS e para o SUS”. Ex-ministro da Saúde (2014-2015), Chioro também apontou que os conceitos de território, tão caros às formulações do SUS, “precisam ser repensados em tempos em que as cidades são recortadas pelas facções criminosas e as pessoas não conseguem nem visitar suas famílias no bairro do lado”. Em sua visão, o congresso da Abrasco será uma ótima oportunidade para esse esforço, já que “nossa área tem um compromisso histórico não apenas com a resistência, mas também com pensar novos caminhos para o SUS”.
Participantes da cerimônia de abertura exaltam construção coletiva
Fernanda Magano, conselheira do Conselho Nacional de Saúde (CNS), agradeceu a “parceria da Abrasco com o controle social da saúde” em um momento em que ele está se tornando um exemplo para todo o mundo, após uma resolução aprovada na última Assembleia Mundial da Saúde. Nesse processo, outros países têm buscado intensamente o CNS para conhecer a dinâmica da participação social no SUS com o objetivo de implementar estruturas similares em seus próprios sistemas de saúde.
Representando a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), Júlio Pedroza fez uma intervenção em que apresentou a situação do acesso à saúde no continente. Pedroza destacou que, nas últimas décadas, “o Brasil foi um dos países da região a avançar mais em índices de acesso à saúde como a redução da mortalidade materna, apesar dos retrocessos dos últimos anos”. Mesmo assim, ele lembrou que, assim como a maioria dos demais Estados americanos, o Brasil também promove um investimento público de apenas cerca de 5% do PIB na Saúde, e não 10% como é indicado. No entanto, o coordenador de Sistemas e Serviços de Saúde do escritório da OPAS no Brasil também fez questão de frisar que “o subfinanciamento não é a única causa da iniquidade no acesso: as barreiras de organização e gestão dos serviços são as maiores para a ampliação da cobertura”, e por isso indicou a importância de fortalecer a governança do SUS.
A vice-presidente de Educação, Comunicação e Informação da Fiocruz, Cristiani Vieira Machado, desejou que o 5º PPGS “seja um momento de reflexão crítica sobre os desafios para fortalecer o SUS, enfrentar as desigualdades na saúde e construir uma sociedade mais igualitária”. Cristiani também destacou que o congresso ocorre em paralelo a um momento de destaque do Brasil na Saúde Global, devido às importantes propostas para a área apresentadas pelo país no G20.
Por sua vez, o reitor da Universidade Federal do Ceará (UFC), que está sediando parte das atividades do 5º PPGS, fez uma fala que enfatizou a “interdependência entre educação pública, saúde coletiva e democracia”. Aos presentes, Custódio Almeida contou que a reitoria da UFC decidiu conceder o título póstumo de Doutor Honoris Causa a Rodolfo Teófilo como forma de valorizar a história da luta em defesa da saúde pública e da vacinação. Teófilo foi um farmacêutico que se dedicou à promoção da imunização contra a varíola no Ceará durante um surto da doença no início do século XX.
A secretária de Saúde do Ceará, Tânia Coelho, comemorou “a presença [no Ceará] de tantos profissionais envolvidos com a área da saúde, um sinal de que estamos trabalhando com o mesmo propósito: inovar, transformar e fortalecer a saúde pública em nosso país”. Ela também celebrou as parcerias que sua pasta têm conseguido firmar com o Ministério da Saúde durante a gestão de Nísia Trindade, especialmente na área da imunização. Dialogando com o mote do 5º PPGS, a secretária afirmou: “Que nossa resistência se transforme em insurgência, desafie o status quo e garanta que a saúde seja acessada por todas as pessoas”.
O 5º Congresso de Política, Planejamento e Gestão da Saúde irá até o dia 6 de novembro. Nos próximos dias, Outra Saúde seguirá acompanhando as principais discussões e propostas apresentadas por seus participantes.
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Créditos: Kio Lima/Abrasco