Nortão de MT vive escalada da violência marcada por estupros e guerra de facções

Profissionais e moradoras do Nortão denunciam onda de crimes violentos de gênero motivados por machismo e impunidade

Por Caio de Freitas, João Canizares | Edição: Ed Wanderley, em Agência Pública

Uma mulher de 46 anos e suas três filhas, com idades entre 10 e 19 anos, foram estupradas e assassinadas por um ajudante de pedreiro que trabalhava ao lado da casa da família em Sorriso (MT). Uma mulher trans, cantora e candidata a vereadora em 2024, foi encontrada degolada com mãos e pés amarrados em uma região de mata em Sinop (MT). A filha de um político ruralista foi morta por seu ex-cunhado, a mando do ex-marido que não aceitava o término da relação, em Nova Mutum (MT).

Ocorridos nos últimos 12 meses no “Nortão” de Mato Grosso, os crimes ilustram como o epicentro do agronegócio no Brasil tem sido território hostil para mulheres e pessoas LGBTQIA+. O estado já havia registrado a maior taxa de feminicídios no país em 2023, segundo o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Em visita à região, a Agência Pública ouviu ativistas e pesquisadores, além da delegada responsável por investigar e elucidar crimes contra crianças, mulheres e pessoas LGBTQIA+ em Sorriso, para entender os motivos do aumento da violência de gênero não apenas no município, como em toda a região.

Por que isso importa?

  • Especialistas ouvidos pela Pública ligam a escalada de criminalidade a características da expansão econômica local e cabe ao poder público encontrar formas de garantir o crescimento dos municípios enquanto garante a segurança de seus habitantes.

Em comum, as fontes ouvidas ligam o aumento de estupros no Nortão – um dos polos do conservadorismo no país – à força do machismo e notam uma relação dos crimes de gênero com o modelo econômico de Sorriso, Sinop, Nova Mutum e outros municípios da região – dominados pelo agronegócio e pela construção civil, em especial de condomínios fechados de alto padrão.

Pesquisadores apontam ainda a existência de uma guerra local entre facções, envolvendo o Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro, o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, e a Tropa do Castelar, facção surgida no próprio estado de Mato Grosso, o que também traz mais insegurança de gênero no Nortão.

Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o professor aposentado da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Naldson Ramos relata que a guerra entre facções promove um ambiente propício para a banalização da violência. “Somente uma dessas facções está presente em pelo menos 57 municípios do estado, cooptando jovens homens e mulheres, o que impacta na violência de modo geral. Aqui entram os crimes de gênero, como feminicídios e estupros, usados contra rivais e também contra a população em geral”, avaliou.

Sorriso aparece como o quarto município mais violento do país em 2023, com uma taxa de 77,7 homicídios a cada 100 mil habitantes, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. “A própria polícia estima que 90% dos homicídios registrados em Sorriso teriam relação com a guerra de facções, incluindo brigas fatais do tipo ‘você mexeu com a minha namorada’, ‘você pertence a tal bairro rival nosso’…”, completou Ramos.

Sorriso, a capital dos estupros: “Aqui existe um sentimento patriarcal de posse e objetificação das mulheres”

Com base em informações das forças de segurança estatais, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelou que Sorriso, município que mais lucrou com a produção de soja no Brasil nos últimos cinco anos, tornou-se a capital nacional de estupros e de estupros de vulneráveis em 2023, com uma taxa de 113,9 crimes a cada 100 mil habitantes, quase três vezes superior ao índice nacional. No Brasil, a incidência foi de 41,4 por 100 mil no mesmo ano.

Responsável pelo Núcleo de Defesa da Mulher da Polícia Civil de Sorriso desde agosto de 2022, a delegada Jéssica Assis lida diariamente com as consequências da violência sexual. “Para vocês terem ideia, no mês de agosto, mês de combate à violência doméstica, fizemos 21 atendimentos aqui no núcleo – isso só na minha equipe”, disse à Pública.

Nascida em Cuiabá, ela cursou direito em São Paulo (SP), onde conviveu com a diversidade num ambiente muito distinto daquele que encontraria como delegada, anos depois. “Antes da minha transferência para cá, trabalhei em Terra Nova do Norte (MT), quase na divisa com o Pará. São lugares com outra mentalidade”, disse Assis. “Aqui existe um sentimento patriarcal de posse e objetificação das mulheres muito forte.”

Há dois anos à frente da Delegacia da Mulher em Sorriso, Assis vê conexões entre a recorrência de crimes sexuais e o modelo de trabalho do agronegócio e da construção civil no município, muito dependente da mão-de-obra de trabalhadores migrantes. Segundo ela, há “um movimento migratório intenso, com pessoas trabalhando sazonalmente nas colheitas ou na construção civil, chegando aqui sem documentos e ficando poucos meses”. “Como eles sabem que ficarão por pouco tempo, cometem os crimes acreditando na impunidade, porque depois vão migrar para outros lugares”, disse.

Mas a violência sexual não se restringe aos migrantes e às classes menos favorecidas. Perguntada sobre casos de violência e abusos sexuais nas famílias ricas, a delegada de Sorriso relatou que há uma espécie de silenciamento e descrédito sobre essas vítimas.

“Para essas vítimas, às vezes é muito mais difícil pedir ajuda, porque elas pensam na estigmatização social, em toda a repercussão que aquilo pode ocasionar para elas, para suas famílias, para os próprios agressores… sabemos que a retaliação social quanto a esses crimes tem sido cada vez mais forte”, afirmou.

“A violência envolvendo pessoas de classes mais abastadas só chega ao nosso conhecimento quando já ficou extremada, quando está em vias de se transformar em um crime fatal ou quando já ocorreram tantas violações que a mulher está numa situação de desespero muito grande.”

Por outro lado, Jéssica Assis refuta a fama de capital nacional do estupro atribuída a Sorriso após a divulgação do último Anuário de Segurança Pública. “Para nós, estes números refletem uma solução diante da subnotificação: estima-se que menos de 10% dos crimes sexuais cheguem às autoridades, então acredito que Sorriso seja a cidade que melhor revela esse tipo de ocorrência – com um trabalho integrado e uma rede apta para receber e tratar as denúncias”, afirmou.

Medo e silêncio no Nortão: “homem sempre quer falar mais alto”

Ainda durante a pandemia, em 2021, uma professora da UFMT foi convidada para uma audiência na Câmara Municipal de Sinop, onde abordaria a violência no ambiente escolar e modos de combatê-la. Em sua exposição, ela criticou o machismo dos “pioneiros e agricultores” na educação de crianças e jovens, motivo pelo qual se tornou alvo imediato de homens e vereadores presentes. Ao fim, ela teve de sair às pressas não somente do local, como da própria cidade, a “capital do Nortão”, sob ameaças de morte.

O episódio acima foi citado à Pública por pessoas ouvidas na região como um exemplo do silenciamento acerca da violência e do machismo. “Por que estamos vendo um aumento dos estupros, dos feminicídios? Porque aqui a mulher é vista como objeto. O cara olha para a mulher e pensa ‘ou você é minha, ou não é de mais ninguém’. Se for casada, será julgada; se for mãe, vai ser julgada; se for solteira, é ainda pior, porque, se ficar com um homem hoje e com outro amanhã, já é chamada de ‘vagabunda’ pelos vizinhos, familiares e até por quem não a conhece na internet, na rede social”, disse à Pública uma das moradoras da região ouvidas pela reportagem em anonimato.

Essa mesma pessoa conta que evita sair à noite, tanto pelo medo da violência sexual, quanto pelo fato de ser feminista. “Nas poucas vezes que saio para me divertir, tenho de estar acompanhada de amigos homens. Se não tiver nenhum na mesa, a gente já fica visada, estranhos se sentem à vontade para abordar de modo ofensivo… como a cidade é pequena, tenho medo de ser perseguida depois, tem muitas áreas vazias e escuras, onde somos atacadas”, afirmou.

Moradora de Sinop, uma outra mulher diz sentir uma hostilidade maior contra mulheres e pessoas LGBTQIA+ na cidade, quando comparada a outras regiões do estado. “Mesmo em Cuiabá, uma capital muito conservadora, a mulher parece ser mais respeitada do que aqui. No Nortão, o homem sempre quer falar mais alto, quer falar por último. E vemos reflexos do machismo até nos pequenos detalhes como, por exemplo, quando vemos esses grandes fazendeiros com suas esposas muitos anos mais novas, como se fossem ‘troféus’”, disse.

Ela ainda destacou uma percepção de maior agressividade contra pessoas trans e citou o assassinato de Santrosa, cantora e candidata a vereadora em 2024 encontrada degolada em uma região de mata no último dia 10 de novembro. “O fato de terem brutalizado tanto o corpo dela não aconteceu à toa. Quem a assassinou escolheu atacar os traços de feminilidade que ela tinha, parece que queria mandar uma mensagem”, afirmou.

Impunidade, um combustível para o machismo geracional

Pesquisadora da violência contra mulheres e pessoas LGBTQIA+ em Mato Grosso há mais de 20 anos, a assistente social e professora aposentada da UFMT Lúcia Bertolini defende que a própria origem de municípios locais ajuda a explicar o aumento da violência de gênero.

“A formação histórica dessas cidades, Sorriso, Sinop, [Nova] Mutum, é violenta, marcada por uma verdadeira ofensiva contra os povos indígenas daqui na época da ditadura, uma história mal contada até hoje, suprimida pela narrativa dos ‘pioneiros’. Muitos dos abusos e crimes cometidos ficaram impunes, deixando um mau exemplo para as gerações seguintes”, disse.

Para Bertolini, a sociedade de Mato Grosso privilegiou a punição legal da violência de gênero em vez da elaboração e reflexão sobre as causas do fenômeno. “Mato Grosso hoje ostenta o título de estado mais violento para as mulheres, com altos índices de suicídio feminino. Se não trabalharmos com uma perspectiva de que o machismo, o racismo, a LGBTfobia e outros crimes do tipo são fruto de uma construção social, de uma perspectiva equivocada [do homem] sobre o outro, sobre a mulher, vamos continuar ‘enxugando gelo’.”

João Canizares/Agência Pública

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