‘Trump é uma doença’. Entrevista com o xamã Yanomami Davi Kopenawa

Em entrevista exclusiva à Repórter Brasil, líder indígena critica os impactos ambientais e sociais de gestões lideradas por políticos como Trump e Bolsonaro. Ele pede para as pessoas pararem de usar artefatos de ouro: ‘É sangue do meu povo’

Somente neste ano, o xamã Yanomami Davi Kopenawa foi recebido pelo papa Francisco, no Vaticano, foi destaque da Salgueiro na Sapucaí, no carnaval do Rio de Janeiro, e aplaudido efusivamente durante o Festival de Cinema de Cannes, na França. Contudo, em Roraima, sua terra natal, precisa circular dentro de viatura escoltado por policiais armados.

A entrevista com Davi Kopenawa, é de Daniel Camargos, publicada por Repórter Brasil.

Kopenawa, de 68 anos, além de xamã, é um líder político ativo na denúncia dos garimpeiros que invadiram ilegalmente a Terra Indígena Yanomami. Por defender os direitos do seu povo, não pode andar livremente.

Além dos garimpeiros, ele faz questão de nomear os políticos que, na visão dele, são inimigos dos Yanomami e da floresta amazônica, como o presidente recém-eleito dos Estados Unidos Donald Trump e o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Em entrevista exclusiva para a Repórter Brasil, Kopenawa comparou Trump a uma “doença”, afirmando que o político republicano representa uma ameaça aos povos indígenas e ao meio ambiente.

O líder indígena teme que a influência de Trump e de outros líderes com ideologias de extrema-direita possa abrir caminho para a exploração desenfreada das terras indígenas.

Kopenawa também faz duras críticas a Bolsonaro, a quem considera um “filho da ditadura militar” que nunca se importou com os indígenas ou com o meio ambiente. Ele diz que Bolsonaro “estragou tudo” em seu governo, permitindo a intensificação do garimpo ilegal no território Yanomami e a deterioração da saúde do seu povo.

O povo Yanomami, que habita a maior terra indígena do Brasil, ainda enfrenta uma crise humanitária e de saúde, agravada pela invasão de 70 mil garimpeiros ilegais. Intensificada durante o governo Bolsonaro, a invasão trouxe doenças como malária e gripe, além de contaminar os rios com mercúrio, afetando a água potável e os peixes, que são a base da alimentação Yanomami.

A desnutrição infantil chegou a afligir 63% das crianças menores de cinco anos e resultou na morte de 570 crianças Yanomami por desnutrição e doenças evitáveis entre 2019 e 2022.

Kopenawa demonstra esperança em relação ao compromisso do governo Lula (PT) no combate ao garimpo ilegal, mas faz críticas em relação à atenção à saúde. Ele reconhece os esforços do governo atual para reverter os danos causados pelos governos anteriores. No entanto, alerta para a necessidade de ações mais efetivas, como a retirada total dos garimpeiros do território ancestral e o envio de mais profissionais de saúde.

O xamã é também um escritor reconhecido internacionalmente. É autor dos livros A Queda do Céu (Cia das Letras, 2010) e O Espírito da Floresta (Cia das Letras, 2023), ambos escritos em parceria com o antropólogo Bruce Albert.

As obras foram traduzidas para diversos idiomas, inspiraram filmes e documentários e tornaram-se marcos do pensamento ecológico e antropológico contemporâneo, apresentando ao mundo a cosmologia Yanomami e a importância da floresta para a saúde do planeta.

“Flecha para tocar o coração da sociedade não indígena”, escreve Kopenawa, quando alguém pede uma dedicatória nas obras.

Os xamãs do povo Yanomami, conhecidos como xapiri thëpë, são fundamentais na cultura e na cosmologia do povo. Atuam como intermediários entre o mundo material e o mundo espiritual, conectando-se com os espíritos da floresta (xapiripë), para buscar orientação, cura e proteção para a comunidade.

Davi Kopenawa é o mais conhecido desses guardiões da sabedoria ancestral e um dos responsáveis por manter o equilíbrio entre a humanidade e a natureza.

Os xamãs aprendem por meio de sonhos, visões e do uso de substâncias psicoativas, como o yãkoana – um pó feito a partir da resina de árvores do gênero Virola, que permite acessar o mundo espiritual e receber ensinamentos dos xapiripë.

Após um hiato de 12 anos, aconteceu, em novembro, um encontro histórico de xamãs  Yanomami na comunidade Yakeplaopi, em Palimiu, às margens do rio Uraricoera, uma das localidades mais afetadas pela invasão de garimpeiros ilegais. O evento reuniu mais de 500 indígenas, sendo 62 xamãs, de 18 regiões de Roraima e Amazonas, e celebrou os 20 anos da Hutukara Associação Yanomami.

Kopenawa destaca a importância dos xapiri (xamãs) e critica a relação do homem branco com a natureza, afirmando que o “homem da mercadoria” busca apenas explorar os recursos naturais para enriquecer, sem se importar com as consequências para o meio ambiente e para os povos indígenas.

O xamã enfatiza a necessidade de uma mudança de mentalidade por parte do homem branco, para que ele aprenda a respeitar a natureza. Ele expressa com veemência sua aversão ao uso do ouro, associando-o à ganância e à destruição.

Ele diz que o ouro é o “sangue” da terra, da floresta e de seu povo, manchado pelo sofrimento causado pelo garimpo ilegal. E faz um apelo para que as pessoas não usem ouro. “Tem que parar com isso. Não precisam se enfeitar com joias. Não precisam de anéis e colares. Podem usar outras coisas, usar algo que não seja com sangue”, afirma.

Eis a entrevista.

Como o senhor avalia o trabalho do governo para retirar os garimpeiros da terra Yanomami? Essa luta já terminou?

A luta pela defesa do meu povo Yanomami, da nossa terra, da água e da floresta é antiga. O branco vem destruindo a natureza e perturbando os indígenas que moram aqui há milhares de anos. A mudança do governo para Boa Vista (em fevereiro, o governo federal inaugurou uma casa de governo na capital de Roraima) facilitou o trabalho contra os garimpeiros na terra Yanomami. O governo Lula apoiou a causa e se mostrou contrário à continuidade do garimpo ilegal e ao sofrimento do povo.

O que mais preocupa o senhor em relação ao garimpo?

O garimpo traz doenças, violência e muitos problemas. Os garimpeiros chegam com máquinas, gasolina, bebidas alcoólicas e armas, além de trazerem doenças e maltratar o povo Yanomami. Apesar da operação do governo ter resultado na retirada de muitos garimpeiros e na destruição de suas máquinas, o problema persiste. Muitos continuam escondidos ou compram novos equipamentos, contando com apoio à distância.

O que falta ser feito agora?

Precisamos retirar mais garimpeiros. Eles não saíram todos. Estão escondidos nas montanhas e na Venezuela, esperando o governo sair para voltar. E estão voltando.

E como está a saúde do povo Yanomami? A malária, a fome e as doenças?

A malária, a gripe, a disenteria e as verminoses continuam. A doença não vai embora. Falta cuidado com a saúde dos Yanomami. Faltam médicos, enfermeiros, técnicos, equipamentos, medicamentos e borrifação para matar mosquitos. A doença não passou. Os parentes que vivem perto do garimpo continuam adoecendo. A malária é um bicho perigoso para todos, não só para os indígenas. Falta um governo que cuide da saúde, que organize um plano de trabalho e cure os Yanomami nas comunidades, levando equipamentos e medicamentos.

O garimpo ilegal aumentou e a saúde piorou muito no governo Bolsonaro. O que o senhor sente quando vê o ex-presidente?

Vocês escolheram o homem errado. Erraram ao pensar que ele era bom. Para mim, para os Yanomami, ele é filho da ditadura militar, que nunca gostou dos indígenas do Brasil. Ele não é um homem bom, não é amigo dos índios, da terra, dos rios e do meio ambiente. Ele é contra o nosso país.

O senhor luta há muitos anos pelo seu povo e pela Amazônia. Tem uma trajetória muito rica. O que te dá força para continuar?

Eu sinto e sonho com a Mãe Terra, com a grande alma da terra e da floresta. Isso me dá força para continuar lutando.

O senhor é como uma ponte entre o mundo dos brancos (napë) e o mundo Yanomami. Como se sente nesse papel?

Sou tradutor do meu povo. Escuto o português, que é difícil, mas consigo entender. Traduzo para eles:

“Olha, parentes, os brancos continuam falando sobre tirar a riqueza da terra. O subsolo é a paixão da sociedade não indígena. Ouro, diamante, pedras preciosas, nióbio para fazer o coração das máquinas. O branco está apaixonado pelo minério para fazer dinheiro e negociar com outros povos. Eles continuam querendo as madeiras, os madeireiros derrubam as árvores para fazer dinheiro. Querem destruir os igarapés de onde bebemos, arrancar a riqueza da terra indígena. Não querem que continuemos morando aqui, querem nos tirar, nos colocar em outro lugar, onde não há ouro, onde não há nada”.

Os Yanomami também me pedem para traduzir suas falas para o homem branco: “Homem branco já tirou muita riqueza da terra. Por que querem mais? Onde estão plantando essa riqueza? Onde estão guardando? Por milhares de anos, tiraram muito, derrubaram as florestas. É essa a maneira de agir? Para onde estão levando tudo isso? Por que o homem branco destrói a natureza? O que ele pensa? E a água? O homem branco bebe muita água, está sujando a água, por quê?”. Sou um tradutor. Traduzo para meu povo e para a sociedade não indígena, para que se entendam melhor, porque o homem da sociedade está acostumado a extrair e explorar o subsolo.

A Terra está se vingando do homem branco com essas mudanças no clima?

Sim, a Terra está revoltada com as ações humanas que não cessam. Mês após mês, ano após ano, rios são destruídos, a água é poluída, os peixes morrem e as pessoas adoecem. A sociedade não indígena só pensa em dinheiro e em explorar cada vez mais. As autoridades, que deveriam proteger a natureza, ignoram as leis e contribuem para o desmatamento crescente. Isso faz a floresta esquentar, secar, e nossa Mãe Terra demonstrar sua raiva. Já estamos vendo os efeitos dessa vingança em outros lugares, como na Europa e nos Estados Unidos, com incêndios e desastres naturais. Essa destruição não para e está matando nossa Mãe Terra.

Podemos fazer alguma coisa para evitar a vingança da Terra?

Não há chance de voltar atrás, de normalizar. Não há homem que vá curar a nossa Mãe Terra. Podem gastar dinheiro, fazer muitas reuniões bonitas, mas não vão curá-la. Sou xamã, sou sonhador, o povo Yanomami é diferente. Escutamos a fala da terra, e ela nos diz: “Olhem,  Yanomami, cuidado, vou deixar o homem branco sofrer, ele vai sofrer muito, vai sofrer pouco, vai aumentando”. A mudança climática já criou raízes, se espalhou, está forte. Não há remédio para o aquecimento global.

O senhor fala muito sobre o sonho. Qual a importância do sonho para os Yanomami? Os brancos também podem sonhar como vocês?

O sonho não é só para os indígenas, é para todos. Vocês podem sonhar com outras coisas. Com trabalho, com tirar ouro, tirar petróleo do mar, cortar árvores para fazer papel, fazer veneno,  mercúrio. Com aviões, carros, fábricas, com a luz da cidade e os monumentos. O nosso sonho é diferente. Somos diferentes, somos filhos de Omama, o rei da floresta, o rei do mundo. Sonhamos porque estamos conectados com a grande alma da terra, com a grande alma da floresta, com o vento, com a chuva, com o trovão, com a claridade, com o sol, com a lua. Somos conectados de forma diferente. Como moramos na floresta, longe da cidade e da luz, somos sonhadores diferentes. Sonhar bom ou sonhar ruim? Esse é o sonho natural, como  Omama  criou para o povo da floresta. O povo da cidade também sonha, mas muitos não sonham porque não dormem. Ficam andando, festejando, bebendo. A cidade não tem escuridão, tem luz dia e noite. O branco dorme pouco.

O que significou o encontro recente de xamãs para o povo Yanomami?

Hutukara Associação Yanomami desempenha um papel crucial na defesa do nosso povo. ‘Hutukara’ significa ‘mundo’, enquanto ‘associação’ é um termo da sociedade não indígena, e ‘Yanomami’ significa ‘povo’. A Hutukara é a Lei do Povo de Omama. Em 2004, não tínhamos essa estrutura, mas aprendemos com o homem branco sobre a importância das leis. No mês passado, celebramos os 20 anos da Hutukara com uma grande festa nas comunidades. Foi um evento bonito, valioso e essencial para nós. Mesmo que muitos desconheçam ou duvidem, estamos cuidando de tudo. A Hutukara é um símbolo de defesa da nossa terra e do planeta. Reunimos mais de 300 pessoas, incluindo 62 xamãs – indígenas que cuidam da saúde da terra, da floresta e do meio ambiente. Renovamos o compromisso de fortalecer a Hutukara.

Por que foi escolhido um local que sofreu muito com os garimpeiros para o encontro?

Uraricoera é uma rota usada por garimpeiros ilegais. Por isso, construímos ali uma casa que simboliza a resistência do povo Yanomami, como uma mensagem clara de que esse caminho não é para garimpeiros. Eles podem explorar suas próprias terras, mas a Terra Indígena Yanomami deve ser respeitada. No entanto, os garimpeiros são persistentes. Essa casa foi construída como um marco para proteger os rios da região e reforçar nossa luta.

O senhor acha que o presidente Lula está realmente comprometido com a causa indígena?

Ele é o melhor. O conheço desde 1988, quando construíram a Constituição Federal  em  Brasília. Naquela época, ele já estava fazendo amizade com a gente. Lula foi presidente e, na época, prendia os garimpeiros. Ele sonhava com um lugar sem garimpo, sem fazendeiros, sem nada. Teve um bom pensamento e tentou, mas há muita coisa destruída na cidade, nas comunidades, nos municípios. Bolsonaro estragou tudo. Lula está tentando curar a cidade, os municípios e a terra Yanomami. Ele está demarcando terras indígenas que nunca foram demarcadas. Ele tem um bom pensamento, pegou uma caneta boa, como um homem honesto, para escrever e salvar o Brasil. Não só os Yanomami, mas todo o país. Ele está tentando, mas há muita gente ruim.

Como o senhor vê a participação das suas parentes Sônia Guajajara, no Ministério dos Povos Indígenas, e Joenia Wapichana, na Funai?

Não somos muitos, mas precisamos de mais pessoas ao lado do governo Lula e dos guerreiros Yanomami e indígenas que estão lutando. Elas aprenderam conosco. Sônia Guajajara esteve na aldeia e Joenia Wapichana aprendeu com seu povo. Elas se prepararam e nós as colocamos para serem guerreiras, guerreiras do povo indígena e da cidade também. Elas estão aprendendo a resolver os problemas, mas não vão resolver tudo. Tem muita responsabilidade que o governo repassou para elas. É difícil para nós porque não conhecemos o papel político. Os indígenas não conhecem muito. Elas estão aprendendo, andando junto com os xamãs, com o movimento indígena de Brasília, com os deputados, senadores e outros que lutam ao nosso lado. Estamos trabalhando para viver, para que todos tenham vida. Sem a luta, vamos sofrer mais.

Existe algo que o senhor gostaria de acrescentar, alguma mensagem importante?

Queria falar mais sobre minha preocupação com o presidente americano [eleito] Donald Trump. Esse cara não presta. Ele já cometeu muitos erros e temo que cause ainda mais destruição. Bolsonaro parece apoiar essas ideias, e isso me preocupa. Trump é como uma doença, um problema que abre caminho para o garimpo ilegal nas terras indígenas, como as terras Kayapó, Munduruku e Yanomami. Não podemos deixar isso acontecer novamente. Já houve muito sofrimento. Chega.

O que o senhor diria para uma pessoa que está lendo esta entrevista usando um colar de ouro, um anel de ouro?

Minha mensagem é para todos na cidade: as pessoas estão fascinadas pelo ouro, usando em anéis, brincos e outras joias. Mas precisam entender que ele é extraído de terras indígenas. Esse ouro carrega o sangue do meu povo, das árvores, dos rios, dos peixes e da Mãe Terra. Muitos estão morrendo por causa dessa exploração. Tem que parar com isso. Não precisam se enfeitar com joias. Não precisam de anéis e colares. Podem usar outras coisas, usar algo que não seja com sangue.

O LÍDER POLÍTICO DAVI KOPENAWA. FOTO: VICTOR MORIYAMA/ISA

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