Em seminário da 21ª Jornada de Agroecologia, povos indígenas, quilombolas e tradicionais destacam como aspectos culturais contribuem para proteção do planeta
Franciele Petry Schramm, Terra de Direitos
Quando o assunto é a mudança climática, os povos indígenas, tradicionais e quilombolas são enfáticos em afirmar que são grandes prejudicados por uma crise causada por um modo de produção que vai contra o que esses povos praticam. “O homem branco hoje se preocupa com a crise climática, mas a gente vinha há muitos anos falando sobre isso, mas ninguém acreditava que esse momento ia chegar”, aponta o indígena Celso Japoty Alves, da Terra Indígena Iguaçu Jacutinga, do Oeste do Paraná.
O desabafo foi feito durante o seminário “A terra dá, a terra quer: tecnologias ancestrais no enfrentamento à crise climática”, realizado nesta sexta-feira (6), como parte da programação da 21ª Jornada de Agroecologia do Paraná, em Curitiba.
A atividade foi realizada pela Terra de Direitos, Núcleo de Pesquisa e Extensão em Direito Socioambiental da Universidade Federal do Paraná (Ekoa), Rede de Sementes da Agroecologia (ReSa) e Federação das Comunidades Quilombolas do Estado do Paraná (Fecoqui).
No seminário, indígenas, quilombolas, faxinalenses e caiçaras falaram sobre como suas práticas ancestrais contribuem para a preservação da natureza.
Advogada popular da Terra de Direitos, Giovanna Menezes destaca a importância dos espaços de partilha e de escuta desses povos. “Uma atividade como essa mostra o que cada comunidade tradicional, cada povo originário, cada comunidade quilombola, está enfrentando. Ainda que de formas distintas, a gente vê que a crise climática está impactando todos esses povos de maneira muito intensa”, destaca. E complementa: “Esse momento de compartilhamento contribui justamente para que a gente se fortaleça e consiga articular alternativas de enfrentamento às origens da crise climática – como o modelo de produção do agronegócio – de formas mais conjuntas”.
A seguir reunimos algumas das principais práticas tradicionais citadas pelos participantes do seminário, que contribuem no enfrentamento à crise climática.
Lendas populares
O pescador Renato Pereira de Siqueira, liderança caiçara da Ilha das Peças, em Guaraqueçaba (PR), vive em um dos trechos mais preservados de Mata Atlântica. Isso porque no litoral do Paraná estão mais de 60 comunidades tradicionais, entre indígenas, quilombolas, caiçaras e pescadores artesanais. “As lendas que a gente cultiva em nossa região trazem esse cunho do cuidado com ambiente”, conta Renato.
O Pai do mato (conhecido como Caipora) ou a Velha do Mangue são alguns dos exemplos das mais de 300 lendas populares catalogadas na região. É através dessas histórias, passadas entre gerações, que as comunidades desenvolvem uma série de práticas que consideram e respeitam os tempos da natureza.
A lenda do Pai do Mato, por exemplo, surge do canto do pássaro conhecido como urutágua. No mês de novembro, o pássaro entra em período reprodutivo, e começa a cantar na floresta. “Quando o pescador escuta esse som, sabe que na mata não pode mais entrar. Sabe que a Caipora está no mato. E se você caçar, pode ter uma série de consequências. Se tiver uma mulher grávida na família, ela pode ter complicações. Se você ficar doente, a curandeira, não te atende mais. Então se cria toda uma rede para impedir os caçadores”, conta.
Agora, uma das preocupações de Renato é garantir que esse conhecimento seja repassado às novas gerações. “O nosso saber é muito oral. Quando vamos pensar nas lendas, não estão escritas em lugar nenhum, mas estão em nossas cabeças”, fala. “O povo aprendeu a ver o invisível na natureza e esse invisível que a gente precisa resgatar para ensinar de novo, porque o capitalismo acaba destruindo a cultura do povo”, ressalta.
Respeito à ancestralidade
A quilombola Bruna Rosa Monteiro conta que aprendeu com a avó muito do que sabe. Dona Marli de Souza Rosa foi uma grande liderança na defesa do território do Quilombo Gramadinho, no município de Doutor Ulysses. “Minha vó no tempo dela já lutava pela agroecologia. Ela sempre foi contra os agrotóxicos, pensando na saúde”, lembra. Agora, a prática agroecológica de Dona Marli tem continuidade com o trabalho das filhas e netas, que conseguiram recentemente a declaração de produção orgânica e que seguem na luta pela titulação do território quilombola.
O respeito aos mais velhos e às suas sabedorias ancestrais também é central para os indígenas, como conta Celso. Ele fala que há tempos já ouvia alertas em relação à crise climática. “Meu vô já falava ‘se preparem jovens e crianças, no futuro vocês vão sofrer e ver muita coisa’”, relata. O avô já prevenia sobre desequilíbrios em relação à chuva, avisava sobre grandes queimadas, e o que parecia bastante distante, já é percebido pelo neto. Agora, Celso transmite aos filhos as histórias que seus avós contavam.
Espiritualidade
A espiritualidade é outro elemento central nas culturas tradicionais que contribuem para a preservação ambiental. “A gente sempre enfrenta as coisas através da reza, da sabedoria dos xeramoi [mais velhos]”, conta Celso.
Para a cultura indígena, a relação com a terra é sagrada. “O nosso povo Guarani, para derrubar uma árvore, a gente pede licença para natureza – não pede licença para o governo, que não é o dono da terra, das árvores ou das águas. Tem um dono de verdade que é Nhanderu [o ser criador]”, ressalta. Segundo Celso, toda árvore, mata ou água tem vida.
“Nosso povo sente os espíritos daquele lugar. Se a gente vai construir uma casa, e a gente vai precisar derrubar umas árvores, a gente pede pela reza, um cinco ou dez dias antes, para ver o que os espíritos vão dizer. Se o espírito liberar, a gente corta, senão a gente acha outro lugar”.
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Foto: Murilo Pilatti