Condenação foi mantida por morte de Luciano Macedo, que foi ajudar Evaldo Rosa; pena total foi reduzida em 10 vezes
Por Natalia Viana, Agência Pública
Numa sala mais movimentada que o normal e na última semana de trabalhos, os 15 ministros que compõem o Superior Tribunal Militar encerraram hoje o julgamento do Caso Evaldo Rosa. A Corte decidiu seguir o relator e, por 8 votos, absolveu os militares da morte do músico, que teve o carro atingido por 62 tiros no Rio de Janeiro, em 7 abril de 2019. Os militares tiveram a condenação mantida apenas pela morte do catador de recicláveis Luciano Macedo, que tentou ajudar Evaldo, e também acabou fuzilado na ocasião.
Eles terão que cumprir penas em regime aberto, que vão de 3 anos e 2 meses a 3 anos e 10 meses. Eram acusados oito miliares, sendo um tenente, um sargento, um cabo e quatro soldados. Apenas o tenente Ítalo da Silva Nunes recebeu uma pena ligeiramente mais alta.
A condenação é 10 vezes menor que a definida na primeira instância, em 2021. Na ocasião, eles receberam penas de 28 a 31 anos de prisão em regime fechado. Houve apenas três votos divergentes. O STM é composto por 10 juízes militares das três Forças Armadas e cinco civis.
Por que isso importa?
- Entendimento de ministra Elizabeth Rocha era de que o caso deveria ser entendido como exemplo de racismo estrutural e perfilamento racial, o que não foi seguido pelos pares.
- Apelações de militares levadas ao STM são julgadas por Corte formada, em sua maioria, por seus pares das Forças Armadas. Apenas cinco dos 15 juízes são civis, formato que já foi questionado internacionalmente.
Evaldo Rosa passava com a família por uma travessa próxima à favela do Muquiço, no bairro de Guadalupe, no Rio de Janeiro, quando teve o carro alvejado por tiros de fuzil do Exército Brasileiro. Os soldados atiraram 82 vezes, acertando 62 vezes contra o carro de Evaldo, que morreu na hora. O catador de recicláveis Luciano Macedo, que tentou ajudar o músico, também foi fuzilado pelo Exército. Morreu 11 dias depois.
A esposa de Evaldo, Luciana Nogueira saiu correndo com o filho David Bruno, então com 7 anos, para protegê-lo das balas. Antes disso, ela havia tentado acalmar o marido dizendo “Calma, amor, é o quartel”. Não acreditava que militares pudessem fuzilar uma família. O filho, hoje com 12 anos, ainda sonha ser militar da Marinha.
Ambos estavam presentes na audiência desta quarta-feira (18), em Brasília.
“Eu quero estar frente a frente com eles”, disse Luciana, perguntada sobre por que fez questão de estar no julgamento. Ao lado do filho, David Bruno, ela se emocionou em diversos momentos durante as leituras de voto, indignou-se com as referências a traficantes, e encarou com dureza alguns membros do tribunal. Ela chegou a afirmar à Agência Pública que tinha “um tiquinho de esperança” de que veria uma punição justa.
“Triste, lamentável”, disse, depois do veredicto. “O sentimento é de impunidade.”
Para Luciana, o evento de hoje apenas confirmou o que ela pensava: seria difícil um veredicto justo se os militares “são julgados por eles mesmos”. “Eu não fui pega de surpresa, porque no Brasil em que nós vivemos não existe justiça, em especial para preto e pobre”, disse.
“Todos eles aqui são uma cúpula, votaram da forma que votaram pra limpar a imagem do Exército Brasileiro.”
Para ministra, caso Evaldo Rosa é exemplo de perfilamento racial: “execução”
Embora a vitória tenha sido da defesa, o julgamento de hoje não ocorreu sem turbulências. Na plateia, estavam representadas organizações da sociedade civil que têm atuado para apoiar a família de Evaldo, como a Conectas Direitos Humanos e a Justiça Global.
O julgamento foi retomado pelo voto da ministra Elizabeth Rocha, única mulher a integrar a corte.
Antes de proferir seu voto, a ministra falou Luciana e beijou a face de David. Embora outros ministros tenham apertado as mãos da família, inclusive um militar, Rocha, futura presidente do STM, foi a única que disse “Sinto muito. Sinto muito, mesmo”.
A ministra também foi a única a dizer em seu voto: “A grandeza humana de Luciano merece contar neste voto, merece reconhecimento, aplausos e dor!”.
Citando pensadores como Jessé de Souza e até o rapper Emicida, Rocha tomou boa parte do tempo falando de como o caso reflete o racismo estrutural e o perfilamento racial dos moradores pobres do Rio de Janeiro por forças de segurança.
Em um voto que abriu com detalhes técnicos, a ministra defendeu que os militares deveriam receber penas que variavam de 23 anos e 4 meses de reclusão a 31 anos e sete meses.
Ao longo da leitura, que durou mais de três horas, ela se emocionou em diversos momentos. A viúva Luciana também lacrimejou quando o marido foi citado: “Na verdade, a pessoa alvejada pelos militares era um homem pobre, pardo, que trabalhava reciclando lixo e, ao ajudar um pai de família que fora atingido por um disparo de arma de fogo, foi concebido como um bandido e morto”, disse a ministra.
O voto de Elizabeth Rocha foi duro em relação à tese que acabou prevalecendo, que dizia que os militares acreditavam estar agindo em legítima defesa. “Não há que se falar em combate quando se está diante de doze militares fortemente armados de um lado e um único homem do outro, um humilde catador de recicláveis desarmado, que, ainda se não fosse, encontrava-se encurralado pela tropa“, disse.
“O termo aqui utilizado, sem embargo de gerar contragosto a alguns, é ‘execução’, visto que restou sobejamente comprovado no processo qualquer resistência por parte dos vitimados, que foram alvejados, inclusive, com tiros pelas costas”, afirmou.
“Autorizar o disparo de fuzis, incessantemente, até a morte de meros suspeitos, em função da periculosidade de um local e em razão dos soldados supostamente já terem corrido o risco de morte em situação anterior e diversa da que se está vivenciando é colocar a população, sobretudo a que se encontra em locais considerados perigosos, em um risco iminente, o que é inaceitável em um Estado democrático de direito.”
Entendimentos diversos vão além da opinião pública
Logo depois, o relator o tenente-brigadeiro do ar Carlos Augusto Amaral Oliveira voltou a ler o seu voto, o qual defendeu que o primeiro tiro, que atingiu Evaldo nas costas, teria matado o músico instantaneamente. Ele defendeu que isso significa que não se pode dizer que os militares de fato o mataram quando o carro parou, pois ele já estaria morto, o que classificou como um “crime impossível”.
O voto foi acompanhado por 8 ministros, formando maioria na corte.
Algumas semanas antes, ele tinha negado a possibilidade da organização Conectas Direitos Humanos participar do caso como Amicus Curiae [instituição autorizada a ingressar na Corte para fornecer subsídios às decisões de tribunais] porque, segundo ele, não haveria “repercussão social” no caso, que caberia apenas às pessoas envolvidas.
Não é o que acreditam as organizações de direito civil que participaram no julgamento. A advogada Caroline Leal Machado, da Conectas Direitos Humanos, afirmou ser “lamentável que o julgamento não tenha reconhecido que 257 tiros foram, de fato, um excesso”. Para ela, além disso, “o STM não ponderou que foi um caso de perfilamento racial”.
Segundo Machado, é possível que o caso seja levado ao STF e até em cortes internacionais, em que a competência da Justiça Militar para julgar crimes contra civis já seria questionada. Tudo depende da vontade da família. “Eu acho que, por mim, paro por aqui”, afirmou Luciana, desanimada.
Questionado, o presidente do STM, Joseli Camelo, disse saber que o veredicto não agradaria à opinião pública. “Fica difícil para a população analisar, porque cada ministro analisa com uma visão militar, e analisa o contexto geral”, afirmou, lembrando que se tratava de “militares jovens”.
Quem são os juízes que votaram pela absolvição dos militares que mataram Evaldo Rosa?
- Carlos Augusto Amaral Oliveira, ministro relator (Tenente Brigadiro do Ar/Aeronáutica) – Nascido em 1960 no Rio de Janeiro, é bacharel em direito pela Universidade de Brasília e pós-graduado em análise de sistemas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Durante a gestão do ex-presidente Michel Temer, Oliveira assumiu o cargo de secretário-geral do Ministério da Defesa, indicado pelo então ministro Joaquim Silva e Luna. Posteriormente, em janeiro de 2019, após a posse do presidente Jair Bolsonaro, foi nomeado chefe do Estado-Maior da Aeronáutica, consolidando sua posição de liderança nas Forças Armadas. Em 2020, foi indicado pelo então presidente Jair Bolsonaro para ocupar o cargo de ministro do STM.
- José Coelho Ferreira, revisor (civil) – Nascido em 11 de abril de 1950 em Novo Oriente, Ceará, é vice-presidente do STM. Natural de Novo Oriente, no Ceará, formou-se em direito pela Universidade de Brasília em 1973. Iniciou sua carreira como agente de polícia e, em seguida, ocupou diversos cargos jurídicos, incluindo assistente jurídico do Dasp (Departamento Administrativo do Serviço Público, órgão de assessoramento do Presidente da República) e procurador-geral do Banco Central do Brasil. Em agosto de 2001, foi indicado por Fernando Henrique Cardoso como ministro do STM, mas sua sabatina foi marcada por controvérsias devido a um parecer que assinou em 1992 inocentando Jader Barbalho de desvios de verba do banco estadual Banpará, que foram depois apontados pelo Ministério Público e por auditores fiscais do Banco Central.
- Lúcio Mário de Barros Góes (General/Exército) – Nascido em Recife em dezembro de 1949, iniciou sua trajetória militar na Escola Preparatória de Cadetes do Exército, em Campinas (SP), em 1965. Formou-se oficial de Infantaria na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), em Resende (RJ), em 1971. Foi comandante do Batalhão da Guarda Presidencial, adido militar na França e na Bélgica, e subchefe do Gabinete do Estado-Maior do Exército. É ministro do STM desde 2012.
- Marco Antônio de Farias (General/Exército) – Nascido em 25 de outubro de 1950, em Belo Horizonte (MG), ingressou nas Forças Armadas em 1º de março de 1967, na Escola Preparatória de Cadetes do Ar (EPCAR), em Barbacena (MG), transferindo-se em 1970 para a Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx), em Campinas (SP), e foi declarado Aspirante a Oficial em 1974 pela Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN). Chegou a general em 2004 e General de Exército em 2012. Comandou a Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) e assumiu, entre outros cargos, a subchefia do Estado-Maior do Exército em Brasília. Virou Ministro do Superior Tribunal Militar (STM) em 2016. Antes de votar pela absolvição o general Farias disse ser lamentável que o STM estivesse “julgando pessoas de bem” enquanto os “verdadeiros bandidos” seguissem livres nas ruas do Rio de Janeiro.
- Carlos Vuyk de Aquino (Tenente brigadeiro do Ar/ Aeronáutica) – Nascido em 8 de maio de 1956 no Rio de Janeiro, ingressou na carreira militar em 1973 e foi declarado Aspirante a Oficial dezembro de 1979. Chegou a ser Comandante de Operações Aeroespaciais e do Primeiro Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo. Virou ministro do STM em novembro de 2018.
- Leonardo Puntel (Almirante de Esquadra/Marinha) – Nascido em 27 de novembro de 1958, Belo Horizonte. Ingressou no Colégio Naval em 1 de março de 1973, tornou-se Aspirante em 1975. Virou Capitão de Mar e Guerra em 2002 e Almirante de Esquadra, em 2016, chegando a ser Chefe de Logística e Mobilização, Chefe de Assuntos Estratégicos do Estado- Maior Conjunto das Forças Armadas e Comandante de Operações Navais. Tomou posse no STM em outubro de 2020. Não estava presente no auditório do STM durante o julgamento, proferiu seu voto por audiência online.
- Péricles Aurélio Lima de Queiroz (Civil) – Iniciou sua carreira no Ministério Público Militar em 1981 como procurador militar de 2ª categoria. Passou a procurador de Justiça Militar em 1995 e, no mesmo ano, a subprocurador-geral da Justiça Militar. Foi corregedor-geral do MPM, presidente do Conselho Nacional dos Corregedores-Gerais do Ministério Público e coordenador da Câmara de Coordenação e Revisão do MPM. Também foi diretor-fundador do Instituto Brasileiro de Direito Militar e Humanitário (IBDMH). Foi nomeado ministro do STM em maio de 2016.
- Odilson Sampaio Benzi (General/Exército) – Nascido em 20 de novembro de 1950, em Bela Vista (MS). Ingressou como aluno na Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx) em 28 de fevereiro de 1966 e completou a Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), no curso de Cavalaria em 1972. Virou General de Brigada em 31 de março de 2003 e General de Exército em 31 de março de 2011. Foi comandante do Comando Militar do Nordeste e entrou para o Superior Tribunal Militar em 2014 e em 2021 tornou-se Ouvidor Da Justiça Militar.
—
Fotógrafo: Augusta Lunardi | Edição: Ed Wanderley