Precisamos da “lista negra” [sic] de palavras? Por Luis Felipe Miguel

O veto a palavras e expressões, em geral com base em etimologias fantasiosas, virou o esporte de uma esquerda autofágica

em Amanhã não existe ainda

Uma das coisas que mais me irritam, no admirável mundo novo da cirandagem, é a polícia vocabular.

Volta e meia, alguém inventa de lançar uma lista de palavras vetadas, julgando estar dando uma contribuição à luta antirracista, anticapacitista ou o que for. Lembro da defensoria pública baiana, que interditou de “criado-mudo” a “escravo”.

O veto a “criado-mudo” tem base numa etimologia sem pé nem cabeça, inventada numa campanha publicitária, remetendo a uma história absurda.

Já a palavra “escravo” essencializaria a condição do cativo, sendo necessária substituí-la por “escravizado”. Mas aqui se revela uma compreensão bizarra do funcionamento da linguagem.

É uma espécie de cartesianismo linguístico, similar ao de quem quer abolir “risco de vida”, porque o risco é morrer, ou “gol de bola parada”, porque a bola precisa estar em movimento para entrar no gol. Como se falantes e ouvintes não fossem capazes de construir, pelo uso, o sentido das expressões.

O linguista Sérgio Rodrigues chama isso de “podolatria da letra”: o fetiche por se manter ao pé da letra.

Um cartesianismo ainda mais estranho porque partindo de gente que, em geral, prega epistemologias “decoloniais” não eurocêntricas.

E, caso fosse assim, o operário teria que ser “operarizado”, pois ser explorado não define sua essência como ser humano. O bolsonarista viraria “bolsonarizado”, já que sua adesão à extrema-direita não está marcada na genética, mas é fruto de processos sociais. E assim por diante.

Outras palavras e expressões vetadas remetem a origens hoje já completamente esquecidas – mesmo aceitando que as narrativas explicativas são verdadeiras, o que está longe de ser pacífico. Ou alguém que fala “de meia tigela”, “feito nas coxas” ou “a dar com pau” está remetendo à escravidão?

É aquela crença numa espécie de homeopatia etimológica. Tal como nas beberagens do dr. Hahnemann, os sentidos originais das palavras continuariam operantes e potentes, mesmo depois de séculos sendo apagados pelo uso.

Se fosse assim, seria impossível falar. A língua é atravessada por preconceitos, crenças falsas, hierarquias sociais.

Mas as palavras se emancipam de suas origens. Teríamos que recusar até “vacina”, já que a palavra, paradoxalmente, se associa ao gado – exatamente aqueles que resistem a ela!

Posso falar em desastre se não acredito em astrologia? Posso falar em família se sou contra a escravidão? E em trabalho se não admito tortura? Posso envenenar sem render culto à deusa do amor? É possível foder sem usar uma pá? Vegetarianos podem mandar spam? Posso escapar se não uso capa? E se eu quiser mergulhar na piscina e não tiver peixes?

Eu me pergunto qual é o ganho de recuperar sentidos que o uso apagou. Para além de seu uso especializado, a etimologia era uma diversão de salão. Eu, Luis, podia espantar os convivas chamando um Clóvis de “meu xará”.

Agora, tornou-se uma fábrica de tretas.

O lance é catar na fala do outro a palavra proibida e cair matando. Não é diferente da “moderação” das redes sociais (quando existia), igualmente incapaz de ler contexto, que opera pela busca de palavras específicas (e, claro, dos perigosos mamilos femininos).

Não importa se você está criticando ou fazendo apologia do discurso de ódio – tem que escrever “n4z1smo” em vez de “nazismo”, para não ser suspenso. Não importa se é pornografia ou educação, desde que escreva “s3xo” em vez de “sexo”.

É uma pseudomoderação, cujo objetivo é apenas simular algum tipo de preocupação com os conteúdos difundidos. A patrulha linguística “progressista” também. Não importa o que você fala, só a minha lacração.

Enquanto isso, Patricia Hill Collins continua usando o verbo “denigrate” sem nenhum pudor. Imagino que não seja o caso de cancelá-la – ela, que se tornou um ícone do feminismo negro, reverenciada mesmo por muita gente que nunca a leu.

Em Black feminist thought, seu livro mais conhecido, a palavra aparece já no terceiro parágrafo. E permanece lá, ao longo das edições revisadas.

Tive a curiosidade de buscar a tradução brasileira. “Societally denigrated categories”, que está já no prefácio, virou “categorias socialmente preteridas”, o que, francamente, não tem o mesmo peso. Pelo livro afora, todas as vezes, sem exceção, a palavra foi modificada na tradução.

É uma pena, porque seria interessante exibir uma estratégia diferente. Em vez de recuperar o pretenso substrato racista da palavra, tornando-o ativo diante do público, a fim de estimular sua má consciência – em vez disso, aceitar o processo de neutralização do sentido originário e, assim, focar as energias em outras coisas. Mais difíceis de serem enfrentadas, mais espinhosas, mas também provavelmente mais importantes.

Ouvi dizer que, na Universidade Federal do Espírito Santo, uma comissão de ética mandou a professores e servidores técnico-administrativos a listagem de termos que deviam ser substituídos. Incluía trocar “careca” por “deficiente capilar”. Garantiram-me que é de verdade, mas acho que é zoação. Só pode.

“Pobre”, por sua vez, viraria alguém com “hipossuficiência econômica”. (O pudor de chamar o pobre pelo nome, substituindo a palavra por eufemismos que, eles sim, podem ser considerados ofensivos, como “humilde” ou “desprivilegiado”, é apenas a marca da má consciência de uma classe média acomodada à desigualdade social. Mas esse é tema para outra conversa.)

No caso, o problema não é a etimologia, mas o sentido pejorativo das palavras. Como se o veto mudasse alguma coisa na vida do calvo. Como se parar de ser chamado de “pobre” colocasse comida na mesa de alguém.

Uma derivação disso é a moda de publicar livros cortando expressões “incorretas”. Agatha Christie e Roald Dahl são alguns dos autores a quem se aplica a medida. É extirpado tudo o que se pode considerar racista, misógino, capacitista, homofóbico, gordofóbico – no olhar do narrador ou das personagens.

É tipo um “protocolo Bridgerton de combate às discriminações e opressões”: fingir que elas nunca existiram. (Assim como, no seriado, a monarquia de uma potência colonial é tão lindamente diversa e inclusiva.)

Uma solução fácil. A pessoa se atualiza na lista dos termos cancelados, sai dando de dedo em todo mundo e, quando ser olha no espelho, vê um paladino do bem.

Bem mais fácil do que situar historicamente, fomentar a reflexão crítica dos leitores e entender que o combate às opressões exige mudança das estruturas, não um índex de palavras proibidas.

aquarela de Francisco Dalcastagnè Miguel

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