O enfrentamento, do qual historicamente fugimos, é agora inescapável para barrar o retorno da extrema-direita ao poder, que seria avassalador.
No Come Ananás
A convergência de dois fatos que puseram novamente em pauta o tema da anistia, embora em sentidos distintos – o do julgamento de Bolsonaro e seus aliados, pela tentativa de golpe de Estado, e de antigos processos do tempo da ditadura, como o do desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva –, ofereceu uma rara oportunidade de se demonstrar, na prática, a permanência do passado no presente: os efeitos duradouros da ditadura, com a ausência de punição a seus agentes, e o retorno à cena de seus filhotes, primeiro por uma tortuosa via eleitoral, depois pela tentativa de permanecer no poder, mesmo após derrotados nas urnas.
(Falo em tortuosa via eleitoral porque a eleição de Bolsonaro foi resultado de uma tripla fraude: primeiro, a do impeachment sem crime de responsabilidade, que por isso constituiu golpe jurídico-parlamentar; depois, a da prisão ilegal de Lula, que liderava amplamente as pesquisas e, assim, ficava fora da disputa; finalmente, a da campanha de Bolsonaro, com uma profusão de fake news e o recurso a expedientes que, normalmente, levariam à impugnação de sua candidatura).
Mas não se trata apenas da necessidade pedagógica, e altamente politizante, de ligar os pontos e buscar nesse passado que não passa a explicação para o presente. O julgamento e a provável condenação dos acusados pela tentativa de golpe, associado à possibilidade de condenação dos torturadores e assassinos de presos políticos na ditadura, com a reavaliação da Lei de Anistia de 1979, são um crucial ponto de inflexão na nossa tradição conciliatória com golpistas e agentes da repressão ao longo da história, que Mauro Almeida Noleto analisa em Anistia e Transição política no Brasil – silêncio perpétuo?, resultado de sua tese de doutorado, publicada no fim do ano passado.
Ora, romper com essa tradição exige preparar-se para um enfrentamento que, a essa altura, se tornou inescapável. Por quê? Porque a descoberta do plano do golpe, com fartura de provas documentais, acrescido da afronta direta e sistemática ao STF – ao longo do governo Bolsonaro e no ataque de 8 de janeiro de 2023 –, inviabilizam as pressões que aliados dos golpistas vêm fazendo por anistia e praticamente impõem a condenação dos réus. Mas, principalmente, porque jamais se encostou um dedo nos militares – de direita, bem entendido, que os militares democratas ou de esquerda foram devidamente expurgados após 1964. Agora, alguns já foram presos. Tem general preso. Que ousadia foi essa?
No mesmo sentido, a hipótese de rediscussão da Lei de Anistia – que, como detalhei aqui, envolve particularidades muito importantes, mas até agora não exploradas pela imprensa – mexe com um tema insuportável para os militares, da mesma forma que as Comissões da Verdade mexeram quando, depois de muita batalha e muito tardiamente, puderam ser instaladas e, em 2014, após dois anos de trabalho, concluíram seu relatório, apontando 377 autores de crimes contra quem combatia a ditadura.
Ficou evidente, na época, a tensão entre a cúpula militar e a presidenta Dilma Rousseff, ela mesma ex-presa política, e não será demais considerar que terão começado aí os movimentos para derrubá-la e promover uma candidatura à presidência adequada aos interesses das Forças Armadas.
(Recordemos as duas mensagens que o então comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas, publicou no Twitter em abril de 2018 para, muito pouco sutilmente, pressionar o STF a não votar pelo habeas corpus que permitiria a Lula recorrer em liberdade das acusações que lhe eram impostas. Recordemos o que lhe disse Bolsonaro ao iniciar seu mandato, em janeiro de 2019: “o que já conversamos fica entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”. Recordemos também que o general sempre negou qualquer conspiração para derrubar Dilma).
Quando, em novembro do ano passado, a Polícia Federal concluiu sua investigação sobre o plano golpista, que ia muito além do que se imaginava, Lula poderia – deveria, como argumentei aqui – ter convocado uma rede nacional de rádio e TV para comunicar à nação o fato mais grave de nossa vida política desde o atentado ao Riocentro, em 1981. Teria repercussão internacional, inclusive porque estava então em curso a reunião do G-20. Lula preferiu suavizar e trazer para o lado pessoal: poderiam ter desejado matá-lo mas ele estava muito vivo, não queria envenenar ninguém, queria apenas que todos vivessem felizes. No início do ano, já havia cancelado os eventos oficiais que marcariam os 60 anos do golpe de 64, uma oportunidade para refrescar a memória e afirmar: “ditadura, nunca mais”. Dizia que não queria ficar remoendo o passado – sempre, sempre trazendo a história para a sua biografia – e mais uma vez apelava à desgastada e absolutamente equivocada metáfora de “não olhar pelo retrovisor”, algo que levaria à reprovação qualquer aluno de autoescola.
Foi por um triz que o passado não voltou, de maneira ainda mais violenta. E a descoberta do plano golpista coincidiu com o sucesso de Ainda estou aqui, que já atraía multidões ao cinema e acabaria por conquistar, entre vários outros prêmios, o Oscar de melhor filme estrangeiro. Por isso mesmo o diretor, Walter Salles, fez questão de ressaltar que o filme não tratava do passado, mas do presente. Ou, talvez melhor: mostrava a permanência do passado no presente. Numa entrevista a Sérgio Augusto, reafirmou sua satisfação em ver que a discussão sobre a Lei de Anistia estava sendo retomada. “No caso do Brasil, essa anistia, na verdade imposta por quem estava deixando o poder naquele momento, acabou criando amnésia coletiva e não traçou um antes e depois entre a história da ditadura e o retorno da democracia, e é isso que acaba permitindo que essa mesma ditadura seja romantizada e vendida como algo que foi exatamente o contrário do que foi. Acho que as propostas recentes do Flávio Dino [de reavaliar se crimes permanentes, nos quais se enquadram os desaparecimentos forçados, são passíveis de anistia, abrindo caminho para a reapreciação de outros casos pelo STF] são um alento, são uma prova de que a sociedade pode e deve avançar, reconsiderando essas questões que são fundamentais para a gente conseguir avançar como nação”.
Na entrevista ao canal do YouTube da revista Carta Capital, sobre o lançamento de seu livro Crime sem castigo – como os militares mataram Rubens Paiva, a jornalista Juliana dal Piva também falou sobre a importância do filme para a retomada da discussão sobre a Lei de Anistia, mas questionou a inação do governo. “Eu vejo um movimento do Supremo respondendo ao filme. Não vejo nenhum movimento do governo federal em aproveitar esse momento. Se não for agora, vai ser quando?”. Ela lembra da situação da Alemanha pós-nazismo: “até hoje há iniciativas para investigação sobre o esclarecimento dos crimes daquela época. É óbvio que quando você tem 21 anos de ditadura você vai precisar disso”.
Juliana, que cobriu os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, recorda as preocupações com o tipo de violência que se abateu sobre vítimas “invisíveis”: os inúmeros casos de mortos e desaparecidos fora do âmbito da resistência política à ditadura, os ataques recorrentes à população negra e indígena. “A Comissão Nacional da Verdade começou a trabalhar isso e terminou com a recomendação da criação de um órgão permanente” para tratar desses casos, que continuam a acontecer porque fazem parte de uma violência estrutural, que precisa ser combatida. Esse órgão “não foi criado pela Dilma, não foi criado pelo Temer, não foi criado pelo Bolsonaro, mas também é um assunto não falado no governo Lula, que demorou um ano e meio para recriar a Comissão de Mortos e Desaparecidos. Ou a gente trata desse tema como prioridade ou vai passar e a consequência é que a conta chega”.
A conta chegou com a eleição de Bolsonaro e teria sido impagável se o plano do Punhal Verde e Amarelo tivesse prosperado. Agora, chegou a hora de cobrar.
O momento político certamente não é o mais favorável para o governo, que se elegeu a duríssimas penas, enfrenta um Congresso hostil e está com a popularidade em baixa. Mas, desta vez, não vai dar para botar panos quentes, sair pela tangente e fingir que não está acontecendo nada de grave. Além disso, o lado de lá também está vulnerável. Vai espernear à vontade, mas sabe o que o espera.
A questão é que a resposta não pode ser apenas jurídica – a rigor, nenhuma resposta é mesmo apenas jurídica. E vai ser preciso “politizar a política”, como escreveu Luís Felipe Miguel a respeito da conduta do governo em priorizar a discussão sobre o desempenho econômico, “índices disso e daquilo”, porque o que está em questão – e no fundo é sempre o que está em questão, mesmo que não explicitamente – são distintos projetos de sociedade.
A investigação sobre a trama golpista revelou troca de mensagens que falavam em CPG, que a Polícia Federal concluiu ser a sigla para “campo de prisioneiros de guerra”.
Falavam em Auschwitz.
Perguntavam: “Vai ter careca arrastado por blindado em Brasília?”
Quem sabe se inspiraram na tortura pública a Gregório Bezerra, amarrado pelo pescoço e arrastado por um carro pela Praça da Casa Forte, em Recife, logo após o golpe de 64. Ou na tortura privada a Stuart Angel, um dos desaparecidos em 71, amarrado à traseira de um jipe e arrastado pelo pátio do Cisa, Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica, forçado a inalar gases tóxicos que saíam do cano de descarga.
Quem se inspira em Auschwitz, quem se inspira nessas cenas de tortura, quem planeja, de saída, eliminar três das principais figuras públicas do país, inspira-se em Jacarta, o banho de sangue que sucedeu ao golpe na Indonésia, em meados dos anos 60.
Jacarta, a palavra pichada pelos fascistas nos muros de Santiago, nos meses que antecederam o golpe de Pinochet.
“Através do voto você não vai mudar nada nesse país, absolutamente nada. Só vai mudar, infelizmente, quando um dia nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro. E fazer um trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil”.
Trinta mil. Como na Argentina. Terá sido coincidência?
Quem não se lembra dessa famosa entrevista do então deputado ainda engatinhando na carreira?
Foi em 1999, e volta e meia o vídeo da entrevista circula novamente. É uma defesa explícita da tortura, da ditadura, do massacre. Reiterada durante os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade. Reiterada no voto pelo impeachment de Dilma. Reiterada durante a campanha eleitoral. Reiterada ao longo de quatro anos de governo.
Jacarta sempre foi o horizonte dessa gente.
Transformar o bordão “sem anistia” numa campanha sistemática é uma necessidade urgente. Aproveitar essa oportunidade inédita de vincular os crimes da ditadura aos que por pouco não se consumaram e nos jogaram novamente de volta a esse passado. “Sem anistia”: nem para os golpistas de hoje, nem para os algozes de ontem. Para impedir, a todo custo, o retorno da extrema-direita ao poder.
Do contrário, Jacarta periga ser aqui.
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