A condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF) é considerada justa, histórica, simbólica e sinaliza que aventuras golpistas no interior da ordem democrática brasileira não sairão mais impunes tão facilmente. Claro, ainda falta Bolsonaro e sua trupe serem processados e julgados pelas mais de 700 mil mortes (sem contar as subnotificações), ingerências e descaso cruel durante a pandemia de COVID-19.
No julgamento que ocorreu na semana de 08 de setembro que findou em 11 de setembro de 2025, foram condenados além de Bolsonaro, com diferentes tempos de pena: Mauro Cid, Almir Garnier, Anderson Torres, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Walter Braga Netto. Começarão a cumprir a pena em regime fechado entre um ou dois meses, com exceção de Mauro Cid devido a delação premiada.
Porém, no mesmo gesto em que reafirma os limites jurídicos por se tentar um golpe de Estado, abre-se também uma nova etapa da disputa política no Brasil em que a extrema-direita, longe de ser eliminada, se reorganiza. Iasi (2012) em relação ao mensalão e Solano (2021) já havia abordado isso ao discutir a Lava Jato e o lavajatismo, o que Guy Debord conceituou como sociedade do espetáculo. Isto, no caso o julgamento do núcleo duro da tentativa de golpe de Estado no Brasil em 8 de janeiro de 2023, não é só aparência superficial, mas uma força social e ideológica que está presente na sociedade e que influencia vidas. Um julgamento midiatizado como espetáculo produz alienação, pois a realidade passa a ser mediada por imagens e representações, afastando as pessoas de experiências concretas. Além dos aspectos estruturais, Leon Festinger considera que a dissonância cognitiva ocorre quando uma crença ou convicção de um indivíduo entra em conflito com uma nova informação ou realidade. Essas crenças e informações podem convergir ou divergir entre si.
Assim, o ato jurídico e as provas do julgamento, por mais consistentes que sejam em termos técnicos no voto dos 4 dos 5 juízes da primeira turma do STF, são consumidos sobretudo como imagens: manchetes, cortes de vídeo, memes, declarações performáticas de ministros e reações nas redes sociais. A política que se intenta como democrática aparece encenada em um palco midiático e nas plataformas onde a percepção importa mais do que o conteúdo factual e jurídico em si.
Se para Debord a sociedade moderna e de capitalismo avançado transforma a vida em espetáculo, Adorno & Horkheimer já haviam analisado em “A Indústria Cultural: O Esclarecimento Como Mistificação das Massas” que a indústria cultural atua nessa transformação ao converter política em mercadoria. A condenação de Bolsonaro, ao circular na forma de trending topics, discursos indignados e celebrações digitais em plataformas das Big Techs, corre o risco de ser sufocada como Gorjen (2025) descreve apreendida mais como entretenimento do que como um processo judicial e uma punição aguardada por grande parte da sociedade. A própria figura de Bolsonaro, desde sempre performática, foi fabricada por essa lógica: um líder convertido em produto simbólico, embalado em slogans fáceis e gestos calculados, que se oferecem ao consumo imediato das massas. Ao se tornar réu e condenado, ele continua sendo mercadoria e gera engajamento na lógica do “Lacre, Like e Lucro” (Rocha, 2024), agora reposicionada como vítima, mártir, bode expiatório ou peça útil para a eleição, no qual as lideranças e partidos de direita querem herdar o seu capital político e eleitoral.
Podemos a partir de Hannah Arendt adendar uma outra variável fundamental: a condenação não pode nos cegar para a banalidade do mal que persiste. O bolsonarismo não é apenas obra de um indivíduo, mas de uma engrenagem social apoiada por parte da sociedade e de setores da elite econômica do Brasil com articulação internacional aos quais atacam às instituições democráticas, praticam a violência política, tem desprezo pelos fatos e ódio das classes populares. Crimes de diversas ordens contra o Estado de direito e o Brasil foram cometidos por militares que seguiram ordens, burocratas que assinaram documentos, eleitores(as) que compartilharam mentiras em grupos digitais etc. Há também certa complacência, como no caso do governo Lula 3 que está eivado de bolsonaristas com cargos etc. abdicando de coerência política, correndo risco político estratégico e não cumprindo o plano de governo eleito.
Ao espetacularizar a ausência de reflexão crítica e o conformismo diante da composição de um governo com líderes autoritários que estão no Congresso e de seus (suas) apoiadores(as) que defendem alguém que atentou contra as instituições democráticas brasileiras, compõe-se o terreno onde o mal se banaliza. Esse terreno está sendo fertilizado com base em um ideário neoliberal, na desinformação, na teologia da prosperidade e é proliferado por meio de gestão algorítmica das plataformas de bigtechs (Amadeu, 2020) e até em alguns canais de televisão e rádio.
Plataformas como Wattsapp, Facebook, Instagram, YouTube, Tik Tok, X/Twitter etc. não são meros canais neutros de circulação de informações, mas atores centrais na engrenagem da indústria cultural descrita por Adorno. Seus algoritmos favorecem o que gera engajamento (indignação, emoção, ódio, choque) e, com isso, amplificam cortes ou editam conteúdos por meio de memes, vídeos e posts mais polêmicos e descontextualizados.
Diante disso, é muito provável que o voto de Luiz Fux, contrário à condenação de Bolsonaro, já esteja se tornando combustível para a narrativa bolsonarista de que há uma divisão dentro do próprio STF, de que a decisão não é consenso e, portanto, passível de contestação. Mais do que um voto criticado por vários juristas, esse voto é transformado em imagem e mercadoria: já circula e ainda circulará e muito em cortes de vídeo, postagens em redes sociais e comentários em aplicativos de mensagem, sempre apresentado como prova de que “nem o STF inteiro concorda” com a acusação. Pode ser considerado naquilo que Debord chamou de espetáculo no qual um fragmento da realidade que se autonomiza e ganha vida própria como representação para manter mobilizado um determinado setor da sociedade que apoia ideias de extrema direita.
Mas é essencial considerar que o julgamento dos golpistas não foi, em si, um produto de mobilização das esquerdas e da população. O que ocorreu foi um acerto de contas dentro das classes dominantes brasileiras. Um acerto entre quem: não tem interesse no bolsonarismo, que toca no dia a dia uma política desvairada e que possam mais uma vez perder o controle como foi entre 2018-2022, versus outra parte que é protofascista por ideologia e é fechada com o bolsonarismo, com Bolsonaro, família e tudo.
Ou seja, a lógica algorítmica das big techs, conforme analisou Amadeu da Silveira (2019) não privilegia a compreensão da decisão judicial em sua totalidade e sua importância histórica, mas a simplificação que produz cliques e reações. Assim, o fragmento vira mercadoria digital, embalado para consumo instantâneo. Exemplo disso é o volume enorme de menções sobre o julgamento nas redes sociais em seu primeiro dia de julgamento (cerca de 746 mil) o que demonstra como decisões judiciais dessa monta se tornam rapidamente espetáculo público, no caso, em nosso contexto atual, via redes sociais.
Esse é o desafio que a condenação expõe: se por um lado ela retira de Bolsonaro a possibilidade de disputar as eleições de 2026, por outro não elimina o movimento de extrema direita que se consolidou no Brasil e que em momentos de crises pode mobilizar uma massa de gente, com influência do Trumpismo e das bigtechs, a exemplo do Nepal recentemente.
A extrema-direita não desaparece, apenas muda de forma e, em diferentes ciclos históricos, se retrai e se expande. Sem seu líder central eleitoral, pode fragmentar-se em múltiplas lideranças como governadores, parlamentares e influenciadores digitais que continuarão a disputar espaço com força, mas terão que fazer um acordo para 2026 para se viabilizarem. Não se pode desprezar o poder de mobilização eleitoral da família Bolsonaro e muito menos de Silas Malafaia que organiza as manifestações de rua da extrema direita. Já se fala nos bastidores que o governador de São Paulo, possível pré-candidato à presidência, Tarcísio de Freitas, aceitaria ter como vice até Flávio Bolsonaro. Além disso, ele e quem constrói a sua candidatura operam em um registro duplo: de um lado, defende Bolsonaro, mantendo-se fiel à identidade bolsonarista; de outro, adota um tom moderado e tecnocrático para atrair setores de direita e elites econômicas que não querem se vincular ao extremismo. Essa encenação de moderação é, em termos Debordianos, um espetáculo cuidadosamente roteirizado, uma performance que não nega a matriz autoritária, mas a disfarça sob a imagem de eficiência e pragmatismo.
A condenação de Bolsonaro no STF pode ser lida como vitória uma jurídica, mas não substitui o que Arendt chamaria de ação política na construção de um espaço público de pluralidade, debate e participação. Sem isso, a democracia corre o risco de transformar-se em espetáculo vazio, em mercadoria simbólica consumida pela indústria cultural, em um palco de indignações e comemorações instantâneas que não se traduzem em transformações substantivas. Em diversas análises e diferentes lições históricas é possível compreender que o futuro da construção da democracia brasileira não está apenas em punir Bolsonaro, apesar de ser uma decisão histórica e importantíssima a ser celebrada, mas em reconstruir as condições sociais e políticas que evitam tragédias semelhantes como, por exemplo, a gestão de Jair Bolsonaro, a organização da extrema direita e uma tentativa de golpe de Estado com a destruição dos prédios dos três poderes.
E é justamente nisso que se inscrevem também muitas das contradições do governo Lula 3. Ao depender de um Congresso fragmentado e majoritariamente de direita e conservador, o governo recorre a alianças pragmáticas reforçando um presidencialismo de coalizão em sua versão mais crua, com parte do orçamento público sequestrado pelas emendas, uma dinâmica política pautada pelo mercado financeiro com base no arcabouço fiscal, pelo clientelismo e indicação a cargos estratégicos de governo por relações de compadrio. Claro, isso garante sobrevida institucional e condições de reeleição para Lula em 2026 e a ocupação de espaços no Estado para milhares de pessoas que se profissionalizaram na política institucional mesmo que com o custo de limitar o alcance de reformas estruturais e de enfraquecer a mobilização social que poderia fazer frente à extrema-direita. Talvez as forças progressistas de centro-direita, representadas pelo PT, estejam confundindo vitória eleitoral e institucionalismo, com vitória política e hegemonia na sociedade. E se não há confusão? Há intenção? Apesar dos bonés com slogan de “O Brasil é dos brasileiros” e do novo slogan “governo do Brasil, do lado do povo brasileiro”, considera-se essencial nos atermos as práticas, aos silêncios e bastidores do governo Lula 3.
No plano político, a pressão pela anistia pode crescer no Congresso, mesmo que para manter a base bolsonarista mobilizada e unificada em torno de temas de apelo político e emocional até as eleições de 2026.
Adorno, ao tratar da indústria cultural, ajuda a compreender como esse jogo de imagens encontra um terreno fértil. A política, convertida em mercadoria, circula como slogans simplificados — “Anistia já”, “fora Moraes”, “perseguição política” — embalados para consumo rápido e sem mediações críticas. Nas plataformas digitais, grupos de Watts e Telegram, o conteúdo sobre democracia e responsabilidade cede espaço à repetição incessante de palavras de ordem, alterando percepções e naturalizando ideias autoritárias e de austeridade social. A extrema direita, que tem, “O partido digital bolsonarista”, como menciona o filósofo Marcos Nobre e consta no recente relatório do CEBRAP, seguirá em campanha pelo impeachment de Alexandre de Moraes, pela anistia e com a falácia de um judiciário autoritário criando produtos políticos de consumo imediato por uma base indignada pelas condições desiguais de vida, estimulados(as) por dopamina e querer ser reconhecidos(as) socialmente.
Arendt nos ofereceu uma advertência, que temos dificuldade de aprender que é sobre a banalidade do mal onde se germinam e se capilarizam ideias totalitárias e a desumanização. Isso não se manifesta apenas nos grandes atos espetaculares, mas na normalização cotidiana e na licenciosidade com práticas autoritárias no conjunto da sociedade somado a política de austeridade econômica do governo. A ação política, que para Arendt deveria ser espaço de responsabilidade e pluralidade muitas vezes está sendo reduzida a cálculo de conveniência. Assim, a ascensão de Tarcísio de Freitas, o ambiente polarizado para as eleições de 2026 e a licenciosidade dos setores ditos progressistas com as forças de extrema direita no cotidiano da sociedade revelam como a engrenagem do bolsonarismo segue viva, mesmo que repaginada por pragmatismo eleitoral.
Após um final de semana de extravasamento, comemoração pelas condenações dos golpistas, depois da ressaca, não querendo ser “estraga prazeres” (mas já sendo rsrsrs), em seguida teremos que lidar com os dias seguintes, ainda mais em um país em constante processo de neocolonização, sem um projeto popular de país, em um momento recorde de concessões a iniciativa privada e fornecendo combustível via Petrobras para a máquina de guerra sionista em Israel. Afinal, que soberania queremos e estamos construindo?
O espetáculo do julgamento de Bolsonaro e sua condenação pode mostrar como conter a extrema-direita no tribunal via gesto jurídico, pois há muito, mas muito a ser feito no sentido de enfrentar suas raízes junto a parte da elite econômica brasileira, no Estado (e no próprio governo Lula que ainda está eivado de Bolsonaristas em locais estratégicos), no Congresso e na cultura política brasileira, onde se prepara o terreno para 2026. Além disso, muito antes, a partir de outubro de 2025 ao que tudo indica já teremos reações internas e externas intensas.
A ver! Mas, por hora, além de celebrar a justiça quando ela é episodicamente feita no Brasil, que a gente se organize e resista para as novas pressões internacionais que vêm por aí, que consigamos regulamentar as big techs no Brasil, trabalhar para que consigamos vitórias políticas sobre a extrema direita e ter um projeto popular de país.
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Gustavo Moreno/STF
