Acampamento Chaparral II: da violência do despejo à resistência organizada na luta pela terra no Tocantins

Quase dois anos separam o contraste absoluto entre o “estado de terror”, vivido em 23 de dezembro de 2023 pelas famílias camponesas, e a organização coletiva e consciente da luta pela terra, protagonizada, hoje, pela Comunidade Chaparral II, no norte do Tocantins

Por CPT Araguaia Tocantins

A Comunidade Chaparral II é localizada em terras públicas da União, na divisa dos municípios tocantinenses de Pau D’Arco e Araguaína, no loteamento Muricizal, glebas 03 e 06. A ocupação teve início em 2010, quando 97 famílias passaram a reivindicar a criação de um assentamento da Reforma Agrária. Desse total, cerca de 22 famílias ocuparam os lotes 47 e 54, enquanto umas 77 famílias se estabeleceram nos lotes 28, 29, 30, 45, 46 e 48, de titularidade da União.

Um processo judicial de Reintegração de Posse foi movido pela Agropecuária Chaparral Ltda contra as famílias. Ele tinha como objeto os lotes 47 e 54 – titulados de forma questionável em favor de particular, pelo Instituto de Terras do Estado do Tocantins – ITERTINS). Este processo resultou em um despejo que atingiu a totalidade das famílias da comunidade. Foram expulsas não apenas as famílias dos lotes em litígio, mas também aquelas que ocupavam os demais lotes de titularidade da União, que sequer integravam o objeto da ação judicial. O despejo ocorreu em dezembro de 2023, em pleno período natalino, e foi marcado por graves violações de direitos, então amplamente denunciadas por organizações sociais, entre elas a Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Vale ressaltar que, a ocupação de terras públicas por famílias camponesas sem-terra, com a finalidade de reivindicar sua destinação para a Reforma Agrária, encontra respaldo na Constituição Federal de 1988, que consagra a função social da propriedade como princípio estruturante do Estado Democrático de Direito (art. 5º, XXIII, e art. 186). A terra, especialmente quando pública, não pode ser tratada como mercadoria ou objeto de especulação, devendo cumprir sua função social por meio da promoção do trabalho, da moradia, da produção de alimentos e da justiça social.

O episódio, registrado à época como um verdadeiro “estado de terror”, envolveu violência policial, presença de pistoleiros, destruição de casas, queima de pertences, perda de alimentos, animais mortos ou abandonados e gerou profundo abalo emocional, especialmente entre crianças e idosos. Realizada em contexto de recesso forense, a ação ignorou as diretrizes legais para execução de despejos e evidenciou a fragilidade da proteção estatal às famílias diante de poderosos interesses ligados à grilagem de terras públicas.

Apesar desse histórico de violência e ilegalidades, as famílias da Chaparral II não desistiram da luta. Em 31 de janeiro de 2025, cerca de 50 famílias reorganizaram-se e montaram o acampamento Chaparral II, desta vez ao lado da área reivindicada, reafirmando publicamente sua luta pela destinação das áreas reivindicadas à Reforma Agrária e o direito constitucional de acesso à terra.

Atualmente, o acampamento segue ativo e organizado, com uma dinâmica coletiva baseada em assembleias, divisão de tarefas e participação ativa de mulheres, homens e jovens. Mesmo diante de condições adversas, as famílias desenvolvem práticas produtivas voltadas à subsistência e à soberania alimentar, tais como quintais produtivos e pequenas roças, deixando registrado seu compromisso com a produção de alimentos, o cuidado com o Cerrado e com a construção de modos de vida digna no campo.

A memória do despejo ilegal e truculento de dezembro de 2023 permanece viva entre todas as famílias. Mas a dor pelas perdas tem sido ressignificada como força política que sustenta a organização atual da comunidade. Dois anos depois, as famílias demonstram que o terror não foi capaz de destruir os seus vínculos com a terra, nem de apagar sua disposição coletiva a resistir.

O caso da Chaparral II expressa, de forma emblemática, a contradição estrutural que marca o campo tocantinense: de um lado, a grilagem, a violência institucional, a omissão e a morosidade estatal; de outro, a persistência de famílias camponesas que seguem organizadas, reivindicando seus direitos constitucionais: políticas públicas, Reforma Agrária e justiça social. A resistência do Acampamento Chaparral II evidencia a urgência de providências concretas a serem tomadas pelo Estado brasileiro, especialmente por parte do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA: não se poderia agora admitir mais demora no andamento do processo de criação do assentamento.

Diante da omissão do Estado na efetivação da Reforma Agrária, a organização em acampamento tem sido uma estratégia histórica de luta popular. O próprio INCRA reconhece os acampamentos como expressão da demanda social por terra, sendo eles frequentemente considerados nos processos de vistoria, arrecadação e destinação de áreas públicas. Criminalizar ou reprimir as famílias corajosamente acampadas equivale a negar seus direitos históricos face à  desordem fundiária estrutural instalada no Brasil

Às vésperas do Natal e de um novo ano, quando o calendário insiste em celebrar a esperança e a promessa renovada do “Deus dos pobres aos pobres da terra”, a luta das famílias do acampamento Chaparral II significa coragem, dignidade e compromisso com a vida. Em meio às adversidades, a permanência organizada no território traduz a beleza e a ousadia de quem não abre mão do direito de existir com justiça e dignidade no campo. Nessa resistência cotidiana, sustentada pela solidariedade e pela busca por direitos, as famílias nos trazem essa boa notícia: a verdadeira celebração natalina se constrói com justiça social, dignidade, na certeza de que virá um dia em que a terra irá cumprir sua função de garantir vida plena a quem nela sonha, vive e trabalha.

Foto: CPT Araguaia-Tocantins

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