Por Márcio Adriano Anselmo* – Consultor Jurídico
O tema do foro privilegiado tem sido alvo de discussão nos últimos tempos, sobretudo em razão do grande volume de investigações criminais submetidas a tramitação perante o Supremo Tribunal Federal.
Nossa coluna já tratou do tema sob a perspectiva dos moldes da investigação atual no texto de Henrique Hoffmann[i]. Nesse artigo, temos como objetivo trazer à discussão soluções já apontadas ao problema e seus prós e contras que, sem dúvida, apresentam reflexos diretos na atividade de polícia judiciária, à luz do que dispõe o artigo 144 da Constituição Federal.
O estado da arte do problema
Nossa Constituição Federal, a título exemplificativo, atribui, no artigo 102, ao STF a prerrogativa de processar e julgar originariamente:
“b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República;
c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente.”
Observa-se que, somente nesses dois incisos temos um universo superior a 600 autoridades com prerrogativa de foro perante a Suprema corte. Ao tratar do tema recentemente, o ministro Luís Roberto Barroso[ii], que já havia criticado anteriormente a situação[iii], foi enfático ao consignar que:
“O foro por prerrogativa de função, apelidado de foro privilegiado, é um mal para o Supremo Tribunal Federal e para o país. É preciso acabar com ele ou reservá-lo a um número mínimo de autoridades, como os chefes de Poder. Há três ordens de razões que justificam sua eliminação ou redução drástica:
Razões filosóficas: trata-se de uma reminiscência aristocrática, não republicana, que dá privilégio a alguns, sem um fundamento razoável;
Razões estruturais: Cortes constitucionais, como o STF, não foram concebidas para funcionarem como juízos criminais de 1º grau, nem têm estrutura para isso. O julgamento da AP 470 ocupou o tribunal por um ano e meio, em 69 sessões;
Razões de justiça: o foro por prerrogativa é causa frequente de impunidade, porque é demorado e permite a manipulação da jurisdição do Tribunal.”
Na mesma oportunidade, foram apontados dados estatísticos que apontam o seguinte cenário:
“(i) tramitam no STF, atualmente, 369 inquéritos e 102 ações penais contra parlamentares;
(ii) o prazo médio para recebimento de uma denúncia pelo STF é de 617 dias (um juiz de 1º grau recebe, como regra, em menos de uma semana, porque o procedimento é muito mais simples); e
(iii) desde que o STF começou a julgar efetivamente ações penais (a partir da EC 35/2001, que deixou de condicionar ações contra parlamentares à autorização da casa legislativa), já ocorreram 59 casos de prescrição, entre inquéritos e ações penais.”
Outras estatísticas que retratam a situação de modo mais aprofundado podem ainda ser encontradas no estudo realizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros [iv], onde o quadro se apresenta ainda mais alarmante. Ainda no último mês, foi noticiado que um caso relacionado a parlamentar federal, cuja denúncia fora oferecida em 2013 até o momento sequer havia sido deliberado quanto ao seu recebimento. Agregue-se a esse fato que crimes imputados na denúncia já foram alcançados pela prescrição.
E quanto às soluções?
Para a solução do problema da tramitação das investigações de autoridade com prerrogativa de foro entendemos duas vertentes a serem examinadas.
Numa primeira, de longo prazo, diz respeito à necessária revisão do texto constitucional quanto ao extenso rol de autoridades submetidas à prerrogativa de foro no Brasil, que teria sobretudo o efeito colateral de reduzir a sobrecarga dos tribunais superiores.
Como uma das alternativas, em matéria já citada, o ministro Luis Roberto Barroso sugere a criação de uma vara federal especializada no Distrito Federal, para julgar os casos que hoje desfrutam de foro privilegiado. O juiz titular seria escolhido pelo STF e teria um mandato de quatro anos, ao final dos quais seria automaticamente promovido para o 2º grau. Teria tantos juízes auxiliares quantos necessários, mas seria um único titular para dar unidade aos critérios de decisão. De suas sentenças caberia recurso para o STF ou para o STJ, conforme a autoridade.
Opinião semelhante foi recentemente publicada neste canal, por Ali Mazloum[v] que sugere a criação do juizado de autoridades:
“Um juizado composto de cerca de 20 juízes federais, arregimentados das cinco regiões do país pelo Superior Tribunal de Justiça, pelo critério único da antiguidade (evitando escolhas subjetivas), instalado na capital federal, poderia com maior celeridade processar e julgar, em colegiados de três juízes, causas penais (até improbidade!) envolvendo ditas autoridades.
Perante esse juizado, atuariam delegados federais e membros do Ministério Público Federal com amplos poderes de investigação, ressalvadas matérias afetas à reserva de jurisdição. O juiz que atuasse na fase investigatória para decidir questões relacionadas a direitos fundamentais não poderia atuar nas turmas de julgamento (preserva-se, com isso, o requisito da imparcialidade).
Das decisões proferidas no âmbito desse hipotético Juizado dos Crimes de Autoridades, caberia recurso diretamente ao Supremo Tribunal Federal. Devolve-se à suprema corte, de conseguinte, o destino jurídico da autoridade processada. Estariam asseguradas a necessária celeridade na apuração de crimes, a igualdade entre todos e, ainda, o duplo grau de jurisdição. O mesmo modelo poderia ser adotado no âmbito dos estados” .
Em outra vertente, urge a reflexão dos entendimentos atuais acerca da tramitação dessas investigações nos tribunais superiores. Como bem coloca Henrique Hoffman no artigo já citado:
“a competência ratione personae não desloca para o tribunal as funções de Polícia Judiciária. A remessa do inquérito policial em curso ao tribunal competente para a eventual ação penal e sua imediata distribuição a um relator não o torna autoridade investigadora, mas apenas lhe comete as funções ordinariamente conferidas ao juiz de primeiro grau, na fase pré-processual das investigações[vi].”
E, mais adiante:
“a instauração e inquérito policial para a apuração de fato em que se vislumbre a possibilidade de envolvimento de titular de prerrogativa de foro não depende de iniciativa do chefe do Ministério Público. Tanto a abertura das investigações quanto o eventual indiciamento são atos da autoridade que preside o inquérito, a saber, o delegado de polícia[vii].”
Nessa linha, passível de implementação a curto prazo, uma vez que não demanda reforma no texto constitucional, trata-se da interpretação equivocada da tramitação dessas investigações envolvendo autoridades com prerrogativa de foro. Em que pese o decidido pelo STF na ADI 1.750 no sentido de que o juiz brasileiro não pode investigar crimes, tem havido entendimento no sentido de que, no caso de investigação preliminar relacionada a detentores de prerrogativa de foro (Inq 2963-RR) deve ter tramitação judicial, sob supervisão do relator, conforme aponta Fábio Bechara[viii], que aponta críticas ao entendimento.
O tema foi analisado pela ministra Elen Gracie, em decisão na Petição 3.248-DF, publicada em 23 de novembro de 2004, ao decidir que:
“Não parece razoável admitir que um ministro do Supremo Tribunal Federal conduza, perante a Corte, um inquérito policial que poderá se transformar em ação penal, de sua relatoria. Não há confundir investigação, de natureza penal, quando envolvido um parlamentar, com aquela que envolve um membro do Poder Judiciário. No caso deste último, havendo indícios da prática de crime, os autos serão remetidos ao Tribunal ou Órgão Especial competente, a fim de que se prossiga a investigação. É o que determina o art. 33, § único da LOMAN. Mas quando se trata de parlamentar federal, a investigação prossegue perante a autoridade policial federal. Apenas a ação penal é que tramita no Supremo Tribunal Federal. Disso resulta que não pode ser atendido o pedido de instauração de inquérito policial originário perante esta Corte. E, por via de conseqüência, a solicitação de indiciamento do parlamentar, ato privativo da autoridade policial.”
Ao observar o regimento interno do STF, não se identificam elementos que possam corroborar o entendimento atual no sentido de que a tramitação da investigação preliminar para apuração de infrações penais praticadas por autoridades com prerrogativa de foro perante aquele tribunal devam seguir rito diverso no previsto no Código de Processo Penal.
Necessário novamente destacar o teor do artigo 102 da CF que atribui ao STF a competência para processar e julgar, não se fala em investigar. E mais, tal interpretação não se coaduna com o sistema acusatório, criando verdadeiros juizados de instrução, conforme conclui Danielle Cavalcanti [ix]
“O fato de ser o tribunal o órgão competente para o processo e o julgamento do agente público não implica admitir-se a sua titularidade também para a condução da investigação preliminar. A prerrogativa de foro é critério pertinente, de modo exclusivo, à determinação da competência jurisdicional originária do Tribunal respectivo, agindo seja no momento do oferecimento da acusação ou, eventualmente, antes dela, apenas se necessária alguma medida cautelar sujeita à prévia autorização judicial. (…)
No que tange à condução da investigação preliminar, em consonância com sua natureza, os atos ordinários de investigação devem ser praticados pela autoridade policial”.
Eduardo Pereira da Silva[x], ao tratar do tema pontua que “ao permitir a realização de investigações criminais por seus ministros (…) o Supremo Tribunal Federal coloca em xeque o sistema acusatório”. No mesmo sentido é o entendimento de Rodrigo Carneiro Gomes[xi], para quem “os tribunais pátrios não devem conduzir investigações criminais, exceção feita na hipótese de fatos relacionados a magistrado que figure na qualidade de investigado”.
Ainda nesse sentido, Fábio Bechara[xii], ao tratar desse “inquérito originário”, pontua que o mesmo “se traduz numa indesejada ampliação do foro por prerrogativa de função na Constituição Federal, para além do processo e julgamento da ação penal”.
Portanto, o que sugerimos aqui são dois pontos de reflexão: o primeiro, diz respeito à necessária revisão do quantum de autoridades detentoras de prerrogativa de foro por prerrogativa de função no Brasil; e, no segundo, a questão da interpretação do texto constitucional no que tange à condução dessas investigações.
Entendemos que a expressão “processar e julgar” prevista no texto constitucional em nada justifica a existência dos inquéritos judiciais, instrumentos que contrariam frontalmente o sistema acusatório e tem impacto direto na imparcialidade do julgador, que deve ser chamado a se manifestar apenas na apreciação de medidas sujeitas a reserva de jurisdição.
Veja-se que recentemente se observou até mesmo o ajuizamento de Reclamação (23.585-DF), sobre a qual já nos manifestamos aqui[xiii], a respeito de ato privativo da autoridade policial que é o indiciamento, conforme expressa previsão legal.
Assim, considerando o cenário atual, em que o foro privilegiado tem sido apontado como uma das grandes causas da corrupção política em larga escala, tendo em vista as dificuldades evidenciadas na persecução criminal que dificulta uma resposta estatal a esses crimes, é necessário que se busque a compatibilização do mesmo para que se alcance um verdadeiro estado democrático de direito, sobretudo livre de privilégios sem razão de existir.
i CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Interpretação sobre foro privilegiado atrapalha investigações policiais. Disponível em http://www.conjur.com.br/2016-mai-17/academia-policia-interpretacao-foro-privilegiado-atrapalha-investigacao-policial. Acesso em 27 abr. 2016.
ii BARROSO, Luis Roberto. Foro privilegiado deve acabar ou ser limitado aos chefes dos Poderes. Disponível em http://www.conjur.com.br/2016-mai-23/roberto-barroso-foro-privilegiado-acabar-reduzir-impunidade. Acesso em 27 abr. 2016.
iii BARROSO, Luis Roberto. Ministro Barroso diz que foro privilegiado é “desastre para o país”. Disponível em http://www.conjur.com.br/2016-mar-31/ministro-barroso-foro-privilegiado-desastre-pais. Acesso em 30 abr. 2016.
iv Associação dos Magistrados Brasileiros. Juízes contra a corrupção. Diagnóstico do problema da impunidade e possíveis soluções propostas pela AMB. Disponível em http://www.amb.com.br/portal/docs/noticias/estudo_corrupcao.pdf. Acesso em 27 abr. 2016.
v MAZLOUM, Ali. Uma proposta de criação do Juizado dos Crimes de Autoridades. Disponível em http://www.conjur.com.br/2016-abr-23/ali-mazloum-proposta-criacao-juizado-crimes-autoridades. Acesso em 27 abr. 2016.
vi STF, HC 82.507, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 10/12/2002; STF, RHC 84.903, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 04/02/2005.
vii STF, Pet 3.825 QO, Rel. Min, Sepúlveda Pertence, DJ 11/04/2007.
viii BECHARA, Fabio Ramazzini. Juiz deve controlar legalidade de investigação criminal, não ser protagonista. Disponível em http://www.conjur.com.br/2015-nov-21/fabio-bechara-juiz-nao-protagonista-investigacao. Acesso em 27 abr. 2016.
ix CAVALCANTI, Danielle Souza de Andrade e Silva. A investigação preliminar nos delitos de competência originária de tribunais. Tese de Doutorado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2009, p. 296.
x SILVA, Eduardo Pereira da. Investigação de autoridades deve ser conduzida pela polícia. Disponível em http://www.conjur.com.br/2006-jul-23/investigacao_autoridades_conduzida_policia. Acesso em 27 abr. 2016.
xi GOMES, Rodrigo Carneiro. O inquérito policial na investigação de parlamentar. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC n. 14 – jul./dez. 2009, p. 23.
xii BECHARA, Fabio Ramazzini. Juiz deve controlar legalidade de investigação criminal, não ser protagonista. Disponível em http://www.conjur.com.br/2015-nov-21/fabio-bechara-juiz-nao-protagonista-investigacao. Acesso em 27 abr. 2016.
xiii ANSELMO, Márcio Adriano. CARDOSO, Duilio Mocelin. Prerrogativa de foro não impede indiciamento pela polícia judiciária. Disponível em http://www.conjur.com.br/2016-abr-05/prerrogativa-foro-nao-impede-indiciamento-policia-judiciaria. Acesso em 30 abr. 2016.
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*Delegado da Polícia Federal, doutor pela Faculdade de Direito da USP, mestre em Direito pela UCB e especialista em investigação criminal pela ESP/ANP e em Direito do Estado pela UEL.