Duas visões: o horror do estupro coletivo

A antropóloga Alba Zaluar e a professora Barbara Nascimento, que mora no Vidigal (RJ), escrevem sobre a violência sexual cometida contra adolescente de 16 anos, no Rio

Em Márcia Peltier/Ponte Jornalismo

Os abusos

Alba Zaluar*

Outro dia um repórter me perguntou o que poderia mudar o quadro da segurança pública no Rio de Janeiro. E eu respondi que teria que ser algo dramático para deixar claros os erros e as narrativas tortuosas que os escondiam. Talvez a menina estuprada por 33 homens ligados à boca de fumo de uma favela na Zona Oeste seja o que vai nos permitir entender melhor o que acontece e propor políticas públicas mais eficientes.

O que se chama machismo encobre muitas atitudes e práticas diferentes, embora com o substrato comum no poder masculino. Nunca existiram sociedades de amazonas, a não ser imaginariamente. No entanto, onde o poder é baseado sobretudo nas armas e cresce sem limites morais e institucionais a masculinidade exacerbada se permite tudo, em qualquer regime, em qualquer classe social, em qualquer cultura.

Os estupros, ou seja, o não reconhecimento do direito da mulher, ou dos homens mais frágeis, em dizer NÃO sempre acompanhou o poder discricionário dos homens, seja em regimes políticos, seja em organizações privadas ou públicas, religiosas ou laicas.

Escrevi longamente sobre o etos da hipermasculinidade e a falta de limites para a crueldade entre os traficantes que dominam territórios nas favelas do Rio de Janeiro. Este é um estupro específico. Não é o mais comum, aquele que acontece dentro das famílias, dos locais de trabalho ou, quando a ocasião permite, na rua ou no meio de transporte.

É usual em bailes financiados por traficantes, mas este parece ter sido planejado, por sorte filmado e exibido nas redes, tamanha a crença na impunidade dos envolvidos. Se não tivesse caído nas redes sociais, não saberíamos de nada porque ninguém tem coragem de denunciar os abusos dos traficantes nessas favelas.

Já ouviram falar de “mulher da boca”? São as que “se perderam” por algum motivo, que já tiveram vários namorados e, por isso, não são consideradas “direitas”. Se frequentam a boca e o baile funk, e as duas atividades andam juntas, devem dar para todos os homens da boca, como na Grécia nos tempos de Zorba, o Grego. Então é preciso parar de repetir que traficantes dão segurança aos moradores da favela e que são mais eficientes do que a Polícia. Critiquem esta sem glorificar aqueles por bem dos moradores das favelas que engolem tantos abusos.

O corpo da mulher favelada

Bárbara Nascimento*

O estupro de uma adolescente de 16 anos por mais de 30 homens, numa favela carioca, teve grande repercussão na mídia e nas redes sociais. Provoca muita discussão sobre a hipersexualização do corpo da mulher – e tem evidenciado que a nossa sociedade se preocupa mais em investigar a vida pregressa da vítima do que a dos criminosos.

Nos territórios eufemisticamente chamados de comunidades, a objetificação do corpo da mulher é corriqueira. Não que o machismo e o sexismo sejam exercidos exclusivamente nessas localidades: residem também nas salas de poder e nos lares abastados. No Brasil, a cada 11 minutos uma mulher é violentada (Ipea). Mas, quando o estupro ocorre em espaços menos privilegiados, é frequentemente associado à conduta e aos hábitos de lazer dessa juventude local.

Acredita-se ser a favela o lugar não só da pobreza e da criminalidade, como também da promiscuidade. A coisificação do corpo da mulher favelada é verificada na literatura brasileira desde Aluísio de Azevedo, com sua Rita Baiana de “requebrado luxuriante” que “assanhava os desejos” e “acordava as fibras” do português Jerônimo. E embora as letras de funk evidenciem de forma imperiosa essa folclorizada atuação sexual da mulher favelada – “bota na boca, bota na cara, bota onde quiser” – não é de hoje a objetificação de nossos corpos. Convivemos com o estereótipo da mulher libidinosa e bem disposta sexualmente que tanto contribui para a cultura da dominação.

Se desejamos voluntariamente expor nossos corpos, viver nossa sexualidade e nos divertir, reprimem essa ação emancipatória. Julgam e punem a transgressora da ordem estabelecida. Qual a pena atribuída? O estupro. É a velha e habitual culpabilização da vítima.

Associar o estupro da jovem da Zona Oeste ao funk e ao crime organizado presentes nos espaços que frequenta é escamotear tantas outras formas de objetificação dos nossos corpos. E, muitas vezes, praticadas por aqueles que deveriam garantir nossa integridade. Não somos ofendidas e violentadas apenas nas letras dos MCs ou por traficantes. Somos tratadas com desrespeito e chamadas de putas por policiais em suas investidas na favela. Somos vistas pela sociedade abrangente como protagonistas de libertinagem. Criminaliza-se nosso local de moradia e nossas práticas sociais. É a visão determinista que nos hipersexualiza. E a cultura do estupro naturaliza a ação de nossos algozes.

*Alba Zaluar é Antropóloga e Professora titular da UERJ e Bárbara Nascimento é professora e moradora ativista da Favela do Vidigal.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

dezessete − 9 =