O estupro em grupo não é uma brincadeira. Artigo de Michela Marzano

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Os estupros continuarão existindo não apenas enquanto não ficar claro a todos que o corpo da mulher não está à disposição de qualquer um, e que todo ato sexual se justifica e se fundamenta sempre e apenas no recíproco consentimento, mas também enquanto houver aqueles que continuem banalizando esses episódios de violência extrema ao falar de “brincadeiras” ou de “momentos de fraqueza”, como infelizmente acontece ainda hoje, justificando, assim, o injustificável.

A opinião é da filósofa italiana Michela Marzano, professora da Universidade de Paris V – René Descartes. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Quando uma menina é estuprada por um grupo de coetâneos – como aconteceu em Salerno, na Itália –, na França, utiliza-se o termo tournante, que, literalmente, significa “fazer girar”. Expressão talvez brutal para designar um estupro, mas também muito eficaz. Visto que o que acontece quando um grupo de homens violentam revezadamente uma menina é justamente isso: faz-se com que ela “gire” entre amigos como se fosse um cigarro ou uma latinha de cerveja.

Ela é compartilhada e dividida como se se tratasse de um simples objeto; ela é utilizada e jogada fora como se fosse apenas uma coisa que pertence a todos e que, portanto, não pertence a ninguém.

Qual é o problema – parecem pensar esses rapazes convencidos de não estarem fazendo nada mais do que se divertindo entre companheiros – de se “servir” de uma mulher-objeto? Quem disse que uma menina que se “faz girar” sofre? “O que há de errado?”, já se perguntava o Marquês de Sade, acusado de ter violentado uma prostituta. “Ela não está aí para isso?”

A filósofa estadunidense Susan Brison, contando a violência sexual de que ela mesma foi vítima quando jovem, define o estupro como um “assassinato sem cadáver”. Uma violência devastadora que destrói toda referência lógica e da qual é extremamente difícil de se recuperar, mesmo depois de muitos anos; mesmo quando as marcas externas já desapareceram quase totalmente.

Quando uma mulher é violentada, explica Susan Brison, o abismo da desintegração interna permanece, às vezes, para sempre. Exatamente como permanecem o medo e a sensação de impotência, a dificuldade de colar os pedaços de uma integridade desintegrada e a impossibilidade de contar aos outros aquilo que se viveu de verdade.

São necessário anos para poder conseguir integrar esse “pedaço de vida” dentro de uma narrativa coerente. E, para poder fazer isso de verdade, é preciso que alguém escute, mesmo quando as memórias parecem incongruentes; que alguém acompanhe, sem pedir nada. Até porque a humilhação sofrida, muitas vezes, é reforçada pelo sentimento de impunidade daqueles agressores que custam a se dar conta da gravidade do próprio gesto.

Se o homem, “por natureza”, penetra, por que a mulher deveria sofrer ao ser penetrada? Se o homem, “por natureza”, é predador, por que a mulher deveria se recusar a ser tratada como uma presa? Ainda mais que, quando nos encontramos em grupo, parece evidente seguir o movimento coletivo e se comportar como os outros: se você o faz, então eu também posso fazer; se todos nós o fazemos, não há nada de errado. E, além disso, não se trata, no fundo, de uma simples brincadeira? Não é apenas um jogo? Por que não deveríamos poder nos divertir ao menos quando somos jovens?

E, então, mais uma vez, escancara-se o capítulo da prevenção e da desconstrução dos estereótipos de gênero, da educação à afetividade e da cultura do respeito. Os estupros continuarão existindo não apenas enquanto não ficar claro a todos que o corpo da mulher não está à disposição de qualquer um, e que todo ato sexual se justifica e se fundamenta sempre e apenas no recíproco consentimento, mas também enquanto houver aqueles que continuem banalizando esses episódios de violência extrema ao falar de “brincadeiras” ou de “momentos de fraqueza”, como infelizmente acontece ainda hoje, justificando, assim, o injustificável.

O sexo não é um jogo. Isto é, é também um jogo. Mas apenas se aqueles que jogam não são apenas alguns; somente se todos estão de acordo com as regras; somente se uma menina pode se divertir exatamente como um menino se diverte.

Caso contrário, o jogo cessa, e se trata apenas de violência e de brutalidade, de dominação e de prevaricação. Uma violência e uma brutalidade que não respeitam a pessoa que se tem na frente, reduzindo-a a mero objeto. Uma dominação e uma prevaricação que podem cessar apenas contanto que se entenda que ninguém está à disposição de ninguém, e que toda ação que se realiza tem consequências sobre a vida dos outros. Especialmente quando se fala da violência sexual perpetrada contra uma menina que se “faz girar” entre amigos como se fosse um cigarro ou uma latinha de cerveja, pensando que não se está fazendo nada de errado. Esquecendo (ou nunca tendo aprendido) que as fronteiras do corpo são as fronteiras do eu. E que o eu é sempre inviolável. A menos que não se apague, para sempre, a irredutível humanidade.

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