De vendedor de enciclopédia no Caribe a etnógrafo indígena

No O Paraná

Serge Guiraud nunca morou no Brasil, mas seria capaz de dizer “yawalapiti” ou “enawene nawe” sete vezes seguidas, com sono ou com um punhado de farofa na boca — e ainda assim ganharia medalha de honra pela pronúncia caprichada. Em sua casa em Toulouse — sua cidade natal, localizada a 700 quilômetros de Paris —, ele explica o paradoxo, enquanto belisca nacos de queijo minas com goiabada, durante um “apéro” pré-jantar não tão francês.

Se fosse seguir a carreira escolhida na adolescência, seria representante comercial, mas, no meio de seu caminho, no começo da década de 1980, tinha uma tribo. Ou melhor, várias tribos de 60 etnias diferentes. E ele se encantou. Virou pesquisador e antropólogo visual, especializado em etnografia indígena; encheu os acervos do Museu de Toulouse e da Funai com material de pesquisa; fez projetos com as comunidades para resgatar a identidade local; escreveu um livro, o “Les gardiens de la forêt des ombres”.

Sentado numa poltrona, numa sala de estar cheia de plantas tropicais e artesanato, ele relembra um anúncio de jornal, que convocava franceses para vender enciclopédias em Guadalupe, no Caribe. Decidiu aventurar-se e, de lá para Belém, “a porta da Amazônia”, foi um pulo.

O maior choque cultural aconteceu logo na primeira tribo que visitou, no nordeste do Pará: os zo’és, palavra que significa “nós” em tupi-guarani. Também chamados de poturus, por causa do toco de madeira que flecha os seus queixos (como prova a maior foto que decora seu apartamento), eles não falavam português. Pas grave, já que, naquela época, Serge também não havia aprendido o idioma. Devagarinho, por mímicas e sorrisos largos, o contato foi travado.

— Abriram a minha calça para saber se eu era homem ou mulher. Um grupo americano de missionários protestantes tinha acabado de ser expulso pela Funai. Os índios tinham ficado doentes e estavam caindo que nem moscas. Morreram 40! Pensei: “Que loucura! Quinhentos anos depois de Cabral, a mesma coisa continua acontecendo.” Voltei para Toulouse e disse para o meu chefe que precisava de mais três meses de férias, porque ainda tinha trabalho para fazer no Brasil. Ele sempre me dava — diz, achando graça.

Por causa dessas e de outras experiências, Serge teve que aprender a sambar. E ele ficou tão desprendido nas matas tropicais que chegou a passar 33 dias sozinho, a bordo de uma canoa. Foram mil quilômetros remando de Parintins até o Rio Jaú. No balanço das águas da Amazônia, perdeu 20 quilos, mas ganhou a companhia inesquecível dos botos cor-de-rosa. E, vez ou outra, o estranhamento dos ribeirinhos.

— Achavam estranho ver um senhor de cabelos brancos, com um sotaque engraçado, remando numa canoa. Mas, nessa região, ninguém questiona nada. Só duas vezes perguntaram se eu era bandido e se iria matá-los — lembra, com bom humor. — Poucos lugares no mundo têm uma natureza tão pura. O que mais me atrai é o sentimento de liberdade que você tem quando está numa tribo. O silêncio da noite, o cachorro latindo, a conversa no centro da aldeia…

Foram inúmeras viagens de avião, voadeira, ônibus. Graças a essas longas jornadas, Serge é dono de um conhecimento que poucos brasileiros podem dizer que têm. Ele sabe, por exemplo, que no Xingu existe muita pajelança, que os caiapós são guerreiros e por isso riem pouco (“a postura é ereta e você tem que ficar mais sério”) e que os enawenes nawes só bebem água com mel porque “os animais tomam água pura e os índios não são animais”.

Uma de suas histórias preferidas é a dos vestidos das mulheres caiapós. Em 1989, três índias foram internadas num hospital do Amazonas. Chegaram nuas, obviamente, e assim ficariam, não fosse a caridade de uma senhorinha que estava na mesma casa de saúde. A boa samaritana apiedou-se daquelas mulheres mostrando suas vergonhas e decidiu costurar umas roupas. A história fica cômica quando as caiapós voltam para a tribo e lançam moda. Foi uma febre. Até hoje, a ala feminina da aldeia usa os vestidos, com diferentes versões de estampa.

— Cheguei a comprar um para a Marie Noëlle, mas ela achou horrível — conta, às gargalhadas, sobre a mulher, que prefere as areias de Copacabana.

Serge conta que por onde passa é questionado sobre índios que usam camiseta de futebol, chinelo e peças não tradicionais das tribos. Seu raciocínio é lógico: “Não somos japoneses porque comemos sushi, americanos por ouvirmos rock ou argentinos porque dançamos tango.”

— As pessoas gostariam que os índios ficassem pelados. É um imaginário de um ser puro que mora na floresta, que eu mesmo demorei dez anos para me desfazer. O índio é igual a qualquer outra pessoa. Tem um movimento da antropologia que diz que a cultura não pode ficar parada. E isso funciona também com os índios, que são híbridos, como nós. Quando os portugueses chegaram, as tribos do litoral migraram para o interior do Brasil. Tem lenda indígena lá da Amazônia que fala do mar. Como isso é possível?

Para Serge, o mais importante é que eles mantenham sua percepção única do mundo. Certa vez, no Xingu, o chefe de uma tribo disse que via os espíritos dos peixes que estavam sendo cozidos na panela. Em sua visão, objetos da modernidade e o sacro coexistem e “isso é ser índio”.

Há algum tempo, o pesquisador comprou uma briga com um canal francês, que fez um documentário dizendo que os yawalapitis não tinham contato com o restante dos brasileiros. Uma besteira, já que um deles, chamado Pirakuman, já tinha ido até conhecer a França — Serge coordenou um projeto para a recuperação da língua nativa entre os jovens. Um dia, numa autopista entre Paris e Toulouse, um cantor francês muito conhecido começa a cantar na rádio. Serge diz ao índio: “Este é um cara muito famoso aqui.” E é respondido: “Eu sei. É o Charles Aznavour. Ouvia muito na tribo.”

A explicação para tamanho conhecimento musical é que no grupo dos irmãos Villas-Bôas havia um pesquisador francês, cujo melhor amigo era um macaco batizado de Charles de Gaulle.

A agenda de Serge é apertada. Na semana desta entrevista, por exemplo, ele iria para Lyon (negociar uma visita dos tapirapés, do Mato Grosso, ao Museu de História), para Genebra (visitar uma exposição de artesanato indígena) e para a Provence (queria ver uns cocares apreendidos pela alfândega, que seriam doados a um museu).

E nessa rotina sempre há espaço para voltar ao Brasil, onde está agora. O plano é passar setembro com os caiapós, no Pará. Mas, antes, vai ver o kuarup, a festa dos mortos do Xingu. Os índios vão homenagear Pirakuman (o que era fã de Aznavour), que morreu de infarto ano passado. A família sai do luto, os índios lutam, podem fazer sexo (o jejum é de dois meses) e vão pescar num ritual singular, que consiste em bater um cipó venenoso na água. Por fim, a alma de Pirakuman pode subir para o céu, onde, quem sabe, irá encontrar os Villas-Bôas e o cantor francês, que só conheceu pelo toca-discos.

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