Expansão do Poder Punitivo e a Ideologia da “não ideologia”: Os filhos do Capitalismo e netos da Ditadura

Por Lucas Battisti, no Justificando

Por favor, tome cuidado, este texto é ideológico. Tão ideológico quanto Karl Marx ou Mikhail Bakunin, Vladimir Lenin ou Rosa Luxemburgo, Antonio Gramsci ou Josef Stalin, Jean Jaques Rousseau ou Adam Smith, Ludwig Von Misses ou Jorge Bush e até mesmo tão ideológico quanto aquele comentário “é morador de rua por que quer, por que é vagabundo” que rotineiramente escutamos na fila do pão.

Pois então, a ideologia não se encontra somente em discursos ditos de “esquerda”, mas está presente em cada opinião que formulamos sobre qualquer assunto do dia a dia, por mais rotineiro que seja. Desta forma, cada indivíduo é formado por uma série de valores e crenças que consequentemente irão refletir a sua percepção sobre os acontecimentos cotidianos, formulando assim o seu senso crítico acerca da vida em sociedade. Ora, a sua opinião, qualquer que seja, é ideológica.

Porém, não somente a opinião é ideológica, mas sim a ausência de opinião (ou o opinião conservadora pretendendo ser “anti-ideológica”) acaba formando o que é intitulado de “ideologia da não ideologia”, pois consiste em uma aceitação tácita dos acontecimentos que permeiam os indivíduos. Em uma tradução simplista, é a filosofia do “não me importo”. Ora, da mesma forma que a ideologia da não ideologia deveria se importar com os acontecimentos do mundo, a dita anti-hegemonia deveria se preocupar mais (e muito!) com o discurso que tem a pretensão de ser não ideológico.

O estruturalista francês Louis Althusser [1] já apontava sobre o poder do Estado Capitalista na formação de uma ideologia oca, mutável e serviçal ao capital. Logo, para Althusser, o Estado passa além de suas instituições políticas, só existindo em decorrência da legitimação da sociedade civil. Porém, para que tal legitimação ocorra, o Estado utiliza os seus aparelhos ideológicos para perpetuar o controle dos valores a serem legitimados pela sociedade civil.

Apenas em sede de exemplo, a mídia (aparelho ideológico de informação) legitima a repressão e o encarceramento em massa; os deputados e ministros (aparelho ideológico político) legislam e cumprem medidas a fim de aumentar a repressão e o encarceramento em massa; os operadores do direito (aparelho ideológico jurídico) cumprem cegamente a lei, sob o pretexto de obediência a soberana doutrina positivista, assim perpetuando o ciclo e realizando a manutenção das relações jurídico-políticas que servem tão somente para permear a desigualdade social. No final disso tudo, a ideologia da não ideologia aplaude tudo o que lhe é imposto (sentindo-se além de tudo representada) e clama o seu clássico chavão “bandido bom é bandido morto”.

Por meio dos mais variados exemplos midiáticos, principalmente os relativos aos delitos praticados pelas classes marginalizadas ao sistema de produção capitalista (como tráficos e roubos), instaura-se uma verdadeira política de medo. Além do mais, ao noticiar a crise do sistema penitenciário como uma bolha de pressão onde monstros poderão fugir dos presídios em qualquer momento, o aparelho ideológico apresenta a suposta alternativa funcional a curto e longo prazo para o fato: “ocupação, pelo exército, dos presídios em situação de risco (?) e construção de novas penitenciárias”.

Neste ponto, conforme Zaffaroni já alertava, perfectibiliza-se o populismo penal midiático [2], a fim de criar hegemonia social para a pretensão do governo para solução da situação problema. A mensagem é clara: O Estado deseja legitimação social para a Expansão do Poder Punitivo. E está conseguindo.

Caso a intenção fosse controlar a população carcerária, o governo poderia começar a enfraquecer as facções abolindo o tráfico de drogas e controlando os danos à saúde dos usuários com políticas públicas. Porém “abolicionismo penal é coisa de esquerdista de universidade federal”, clamam os penalistas entendidos da última semana. Além do mais, a prisão preventiva poderia ser vedada do ordenamento jurídico por ser incompatível com o Estado Democrático de Direito. Mais uma vez, os defensores da sociedade urgem-se ao dizer “garantismo penal é coisa de comunista leitor do Ferrajoli”. Com argumentos ocos e depreciadores da ideologia alheia, pressupondo certa superioridade meramente por “não ser de esquerda”, o Poder Punitivo é alastrado legitimando novos massacres, como já dizia Orlando Zaconne “de Canudos às UPPs”. [3]

Eis a gênese da última guerra mundial, a personificação do inimigo em determinado setor populacional sob a forte propaganda de Estado apontando-o como responsável por todos os problemas sociais e econômicos. Nasceu o novo fascista.

É exatamente em tal ponto que a ideologia da não ideologia entra em jogo ao clamar que toda e qualquer proposta alternativas ao cárcere não irá funcionar porque vem de ideologias de esquerda, apresentadas por defensores de bandidos que esquecem os Direitos Humanos dos humanos direitos ao passar a mão na cabeça dos vagabundos. Inúmeros absurdos, com justificativas igualmente absurdas.

Porém nada além do esperado, vez que mesmo que tais pessoas neguem ter uma carga ideológica consigo, foram orientadas desde criança pelos Aparelhos Ideológicos do Estado a ter uma mentalidade individualista, competitiva e excludente, por fim buscando legitimação para seu discurso em suspeitos sofismas intelectuais. Filhotes do Capitalismo e netos da Ditadura.

Afinal, todos os brasileiros são filhotes do Capitalismo e netos da ditadura. A diferença é o entendimento e a legitimação desta condição. Para aqueles que sonham com um mundo melhor e estão abertos a ouvir com seriedade um projeto para uma sociedade calcada em valores de igualdade com o propósito de perpetuar uma verdadeira liberdade, eu e inúmeros camaradas estamos dispostos a ouvir e dialogar. Porém, para os que legitimam massacres com microfascimos do tipo “se estava na prisão, boa coisa não fez. Tem mais é que deixar matar um ao outro”, quando a próxima vítima da violência do Estado for você, repense a sua ideologia não ideológica. 

Lucas Battisti é graduando em Direito na Universidade de Caxias do Sul. Marxista crítico e abolicionista.

[1]  A teoria dos aparelhos ideológicos foi exposta em inúmeras obras de Althusser, traduzida e sintetizada ALTHUSSER, L.P. Aparelhos Ideológicos de Estado. 7ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1998.

[2] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012.

[3] ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: A forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2015.

 

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

treze − quatro =