Populações ribeirinhas e indígenas de nove estados têm seu direito constitucional à comunicação negado após pane nos transmissores ocorrida em março
Por Intervozes, na Carta Capital
Ouvinte: Olá, vocês já arrumaram o gerador de energia lá para a Rádio Nacional da Amazônia?
Apresentador: Eu não sei. Os engenheiros daqui é que sabem.
Ouvinte: E se cada um de nós aqui (da Amazônia) der uma quantia e vocês abrem uma conta só pra comprar um novo transmissor? Se for possível fazer isso, eu estou disposta a colaborar.
(Conversa ao vivo feita por telefone às 21h49 do dia 31 de março de 2017).
Prestes a completar 40 anos de existência nesta sexta-feira 1, a Rádio Nacional da Amazônia, único canal de comunicação com o Brasil e o mundo para milhares de pessoas que vivem nos nove estados da Amazônia Legal do país, está muda.
A emissora está fora do ar desde que um raio caiu sobre o Parque de Transmissão da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) – empresa que atualmente gere a Rádio Nacional da Amazônia – no Distrito Federal, em 20 de março deste ano.
As fortes descargas elétricas causaram a interrupção de energia que alimenta os transmissores da empresa, cortando o serviço de Ondas Curtas (25 metros com 11.780 kHz e em 49 metros com 6.180kHz) e Ondas Médias.
Com isso, a Rádio Nacional da Amazônia ficou totalmente fora do ar e a Rádio Nacional AM de Brasília não tem mais potência para atingir outros estados para além do Distrito Federal durante a noite.
O acidente alterou totalmente a rotina de milhares de pessoas da Amazônia Legal, que desde então entram em contato com a EBC, suplicando a volta da única emissora que pode ser sintonizada no lugar onde moram – como a fala transcrita no início deste texto.
Isto não ocorre por acaso.
Desde sua criação, a Rádio Nacional da Amazônia tem cumprido papel fundamental para garantir cidadania aos moradores da região norte do país, por meio do acesso à informação. Mas este sentimento de pertencimento tem se perdido cada vez que uma mão amazônida tenta sintonizar a emissora e se depara com um silêncio desumano vindo de seu aparelho.
As comunidades isoladas em áreas rurais, ribeirinhas, indígenas e fronteiriças, situadas em locais onde há dificuldades de acessos à internet e a outros canais de comunicação são as que mais se beneficiam dos serviços de utilidade pública veiculados pela emissora, que leva a tais comunidades, além de informação, dicas de como buscar soluções a problemas básicos de saúde, violência doméstica e como tirar documentos.
É também por meio da rádio que os ouvintes se comunicam com familiares, passam e respondem recados e reencontram familiares e amigos desaparecidos. Não é a toa que a que emissora ganhou o apelido cidadão de “orelhão da Amazônia”.
Programas históricos como “Eu de Cá, Você de Lá”; “Falando Francamente”; “Ponto de Encontro”; “Natureza Viva”; “Viva Maria”; “Nossa Terra”; “Amazônia Brasileira”; “Tarde Nacional”; “Mosaico”; “Em conta” e “Repórter Amazônia” simplesmente pararam de chegar até o seu público, cortando uma relação de décadas com os povos da floresta.
Isso sem contar a relação dessa população com as premiadíssimas radionovelas das décadas de 80 e com o programa infantil “Encontro com Tia Leninha”, que marcou o imaginário de crianças e jovens pela Amazônia por anos e anos.
Não bastasse a violação do direito à informação de milhares de pessoas que vivem nos estados brasileiros que compõem a Amazônia Legal (Amazonas, Acre, Amapá, Maranhão, Mato Grosso, Rondônia, Pará, Roraima e Tocantins), como resultado do ocorrido, a EBC corre o risco de perder a concessão da rádio.
Isto porque o parágrafo único do Art. 55 do Decreto nº 52.795/1963 diz que caso a interrupção do serviço de radiodifusão seja superior a 30 (trinta) dias consecutivos, “salvo motivo de força maior devidamente provado e reconhecido pelo CONTEL, a concessão ou permissão será cassada, sem que assista à concessionária ou permissionária direito a qualquer indenização”.
No caso da Rádio Nacional da Amazônia, embora tenha sido feita uma verdadeira “gambiarra” para religar os transmissores, os equipamentos “voltaram a funcionar” somente em junho último e seguem operando com menos de 5% de sua capacidade total, conseguindo fazer as ondas da Rádio Nacional da Amazônia chegarem somente a Goiás, ao sul de Tocantins e a uma pequena parte do Mato Grosso. Ou seja, além de estar muito abaixo de sua potência real, o sinal não abrange as regiões da Amazônia Legal.
Convocada pelo Ministério Público Federal (MPF) para se justificar sobre a interrupção da transmissão da Rádio Nacional da Amazônia, a direção da EBC admitiu que da maneira como foi outorgada a concessão para explorar o Serviço de Radiodifusão Sonora em Ondas Curtas é possível afirmar que os sinais não foram plenamente restabelecidos.
Agora a EBC tem até dezembro para restabelecer a prestação do serviço de Ondas Curtas da Rádio Nacional da Amazônia, depois de autorização da prorrogação do prazo legal concedido pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC). O MCTIC também deu prazo de 120 dias para o restabelecimento do serviço de Ondas Médias para o retorno da operação normal da Rádio Nacional AM de Brasília.
Sentimento de pertença
A Rádio Nacional da Amazônia iniciou suas transmissões em 1º de setembro de 1977. A emissora foi criada pelo governo militar dentro da chamada “Doutrina de Segurança Nacional”.
Eram dois os objetivos principais:1) impedir que a população amazônica continuasse ouvindo apenas o som de rádios dos países socialistas que fugiam à censura, dentre elas a Rádio Havana, de Cuba, e a Rádio Moscou Internacional, da União Soviética – a BBC, do Reino Unido, também transmitia para a região; 2) promover por meio das ondas de uma rádio estatal a integração dos povos da Amazônia, centralizando a produção das informações em uma emissora coordenada pela ditadura civil-militar.
Atualmente, a Rádio Nacional da Amazônia é mais do que um simples veículo de notícias, cumprindo uma função social, valorizando a cultura, a diversidade, e a preservação do ecossistema amazônico, e empoderando as respectivas populações de seu direito básico a se comunicarem, socializando assim o direito de expressão na região, garantido constitucionalmente.
E isto se reflete no sentimento de pertença dos povos da floresta em relação à rádio, que se mostrou forte desde a inauguração. No ano de 1982 a emissora chegou a receber quase 3 milhões de cartas dos ouvintes. Hoje, o volume de interação continua alto, mas agora a troca ocorre por meio de mensagens de aplicativos como o Whatsapp e e-mails.
Descaso recorrente
Infelizmente o descaso da gestão da empresa com a atualização de seu parque de transmissores não é nenhuma novidade. Mesmo em tempos de orçamento “gordo” da EBC, não houve compromisso da diretoria em substituir antenas e geradores da empresa, que há mais de três décadas operam diariamente com uma potência máxima de 600 quilowatts.
Para se ter uma ideia, esta não foi a primeira vez que a emissora ficou fora do ar por problemas técnicos. Houve interrupções na transmissão ao menos em outros três momentos de sua história: em 1998, quando ainda era gerida pela antiga Radiobrás, ficou sete meses fora das Ondas Curtas, transmitindo somente para o satélite, ou seja, sem chegar diretamente aos rádios das pessoas; no ano 2000, ainda sob o comando da Radiobrás, esteve fora do ar em virtude de dois transmissores danificados; e recentemente, em 2012, já sob gestão da EBC, depois da quebra de uma peça nos transmissores também deixou a população do norte do Brasil sem programação.
Mas existe uma diferença crucial no atual momento e na conjuntura política: o Governo Federal alterou a Lei nº 11.652 de 2008, que criou a EBC, e afetou em cheio os princípios que garantiam a comunicação pública da empresa, com a extinção de seu Conselho Curador – único órgão de controle social junto à sociedade – e com o fim do mandato da presidência da empresa.
Hoje, portanto, ao desobedecer às ordens do Palácio do Planalto o diretor-presidente da EBC pode ser imediatamente demitido. Antes, deveria cumprir um mandato de quatro anos.
Portanto, levando em consideração este cenário e com uma direção da EBC empossada por este governo, como crer que existirá a preocupação em garantir o direito à comunicação das populações mais remotas do país por meio da reativação da Rádio Nacional da Amazônia? Será este mais um serviço considerado pelo governo Temer como um gasto desnecessário e passível, portanto, de extinção?
Somado ao desinteresse pela comunicação pública da atual gestão, acrescenta-se ainda o corte de R$ 108 milhões no orçamento da empresa para este ano, o que impede novos investimentos e aquisições neste momento, ou mesmo a recuperação dos transmissores, ação orçada pela atual direção entre R$ 4 e R$ 6,5 milhões.
Cifra alta, mas que caberia no orçamento da EBC caso o governo repassasse a Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública. Os recursos passam de R$ 1 bilhão. Dinheiro que vem do Fundo de Fiscalização de Telecomunicações (Fistel), depositado pelas operadoras de telecomunicações, que deveria financiar a comunicação pública no país, mas que há tempos está sendo usado para fazer superávit primário pelo governo federal.
Silêncio também na EBC
Não foi apenas a Rádio Nacional da Amazônia que ficou muda. A direção da EBC também tem adotado a estratégia do completo silêncio para lidar com a situação.
O primeiro comunicado interno sobre a interrupção das transmissões só aconteceu seis dias depois da descarga de energia que afetou os transmissores. Ao que tudo indica, trata-se de uma tentativa vã, por parte da diretoria da empresa, de encobrir uma seringueira com um tapete.
Antes do comunicado, alguns apresentadores já eram alertados pelos apelos que vinham dos ouvintes e chegavam por ligações e mensagens do Whatsapp.
Sem avisos nos noticiários ou em chamadas durante os intervalos, os ouvintes seguiam perguntado: “Mas o que aconteceu?” E houve quem achasse que o problema fosse o seu próprio rádio de pilha.
Até para quem tem acesso à internet está difícil encontrar explicações para o que vem ocorrendo. No site da Rádio Nacional da Amazônia não há nenhum aviso sobre o fim da transmissão. Matérias jornalísticas que citem o problema também não são bem-vindas. Transparência e publicidade, normas da administração pública, foram negligenciadas. Mas não adiantou, o público, os funcionários e o MPF pedem explicação.
Sem providências efetivas
“Queria, se possível, que me informassem por qual motivo a rádio Nacional AM de Brasília não está pegando mais aqui em Itapecuru-Mirim (MA). Sou ouvinte há mais de trinta anos e gosto da Rádio. Acontece que há mais de um mês não consigo sintonizar. Eu sou amante de rádio e tenho vários aqui na minha coleção. Mas só quero é ouvir a rádio Nacional como vinha ouvindo há mais de 30 anos” (Mensagem enviada à Ouvidoria da EBC em Junho).
Seis meses depois, ouvintes seguem lamentando a falta da Nacional da Amazônia. Na empresa, profissionais de comunicação seguem com a “programação normal”. Mas a súplica de quem ouve é a mesma de quem fala. Empregados da EBC chegaram a enviar carta ao Presidente da República para que a Rádio Nacional possa continuar a cumprir seu papel cidadão junto à população amazônica.
No documento, lembram a importância e o valor da rádio, que é porta-voz de um Brasil profundo e de uma população que, além de viver uma situação de isolamento, não tem seu protagonismo reconhecido pelos demais meios de comunicação do país.
Esperam que o presidente Michel Temer, após todo o desmonte que vem promovendo na EBC e na comunicação pública, se solidarize com os ideais e com a importância da histórica emissora da Amazônia.
Ex-presidenta do Conselho Curador da EBC, Rita Freire diz que é visível que a atual política econômica transformou a região da floresta em moeda de troca pelo atual governo no Congresso Nacional, e que no campo da comunicação “o caso da Amazônia é desesperador, porque se trata de simplesmente ignorar a região e o pouco que é assegurado de direito à informação, direito a falar e direito a ouvir dessa população”, afirma. Parte desta dificuldade se relaciona também com o desinteresse de grupos econômicos em investir na região, onde vivem populações de baixíssima renda.
A paraense e também ex-presidenta do Conselho Curador, Ima Vieira, atual assessora científica do Museu Goeldi, no Pará, ressalta que sem esse canal de comunicação, milhares de pessoas na região amazônica, que representa 60% do território brasileiro, ficam sem qualquer acesso de comunicação e faz um desabafo preocupante:
“O atual governo acabou com o Conselho Curador, com o mandato de presidente da EBC e agora pode entrar para a história como aquele que acabou com o maior canal de integração da região – a Rádio Nacional da Amazônia”, lamenta.
Enquanto a EBC e a comunicação pública sofrem os povos da Amazônia seguem agonizados sem seu direito constitucional de terem acesso à informação, sem conhecimento da atual situação política e econômica do país e reféns do descaso do Estado brasileiro em fazer cumprir a Constituição Federal.
Para o dia 1º de setembro, data em que a Rádio completa 40 anos de existência, um evento tímido, sem nenhuma divulgação, está marcado para acontecer nas próprias dependências da EBC, em Brasília, bem longe dos povos da floresta.
Na verdade, há poucos motivos para fazer festa na Amazônia.