Histórias de Antonieta de Barros, Carolina Maria de Jesus, Dandara dos Palmares, Laudelina de Campos, Luísa Mahin e outras heroínas negras brasileiras estão em novo livro da cordelista Jarid Arraes
Por Nina Fideles, para Revista do Brasil
Com a intenção de misturar a tradição do cordel com novos elementos, a escritora e cordelista Jarid Arraes, 26 anos, rompe com o estereótipo do produtor de cordéis do Nordeste. Tanto na aparência quanto nos temas que são tratados pelos folhetos publicados por ela, que já são mais de 60 títulos. Nada de chapéus de couro ou vestidos de chita, como ela mesma diz, nem de personagens caricatos ou cômicos para contar histórias. Seus folhetos tratam questões raciais, de gênero, LGBT, lendas da África e temas para o público infantil.
Jarid lançou recentemente o livro Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis, que reúne 15 biografias, já publicadas em folhetos, de mulheres como Antonieta de Barros, Carolina Maria de Jesus, Dandara dos Palmares, Laudelina de Campos, Luísa Mahin e outras que fizeram história no país. Ainda no formato de folhetos, com encomendas apenas por email, Jarid vendeu mais de 20 mil cordéis. O livro já esgotou a segunda tiragem.
Nascida na cidade de Juazeiro do Norte, na Região Metropolitana da Cariri, no Ceará, Jarid tem a literatura de cordel no sangue. O avô, de 81 anos, Abraão Batista, e o pai, com 47, Hamurabi Batista, são cordelistas e xilogravuristas. Viajam juntos e continuam escrevendo. “Eu cresci lendo os cordéis deles, especialmente. Sempre que eles publicavam algo novo eu era a primeira a ler”, conta.
Em 2014, mudou-se pra São Paulo. E passou a tratar temas como o feminismo nas redes, ganhou a internet e, dois anos depois, se desafiou a escrever cordel. Protelou este momento por considerar difícil a arte de escrever daquela forma. Segundo ela, mesmo sendo tratado como uma literatura inferior, o cordel exige uma técnica que incorpora a métrica, rimas e oração.
Para o futuro pretende lançar mais folhetos de heroínas negras, algumas delas mais recentes, “pois elas precisam ser reconhecidas enquanto estão vivas”, acredita. E também uma coleção de cordéis eróticos, assim como o pai que fez uma série de xilogravuras do Kama Sutra para casais heterossexuais e gays.
Para Jarid, escrever cordel é uma forma de se conectar com suas origens, de valorizar uma arte não reconhecida, e de contar histórias que não puderam ser contadas, mas sempre muito mais que isso. “É uma forma de me relacionar com a minha cultura sem ser reduzida a ela. Eu gosto de Lady Gaga, de metal e tenho tatuagens, e gosto de cordel e xilogravura. E falo comendo plural. E aí? Dá um nó”, brinca. Saiba mais sobre Jarid Arraes nesta entrevista.
Como foi o seu encontro com o cordel?
Meu avo e meu pai são cordelistas e xilogravadores. Eu cresci lendo os cordéis deles, especialmente. Sempre que publicavam eu era a primeira a ler. E cresci entre cordel também, porque meu avô fundou um centro de cultura popular lá em Juazeiro do Norte que existe até hoje, que é o Mestre Noza (Inocêncio Medeiros da Costa, considerado o primeiro artesão da região), que é uma associação onde se vendem as peças dos artesões e lá também tinha muito cordel. Eu sempre li muito cordel, mas em sua maioria escrito por homens.
Sempre amei, mas achava que não tinha nenhum talento para escrever, e vendo o quanto meu pai e avô são bons, nem considerava. Quando comecei a escrever sobre feminismo e fui colunista da Revista Fórum, comecei a considerar a escrever para o mundo e pensei no cordel mais como uma forma também de manter viva a tradição. Se novas gerações não tomarem o cordel ele vai acabar morrendo. Mas eu não queria fazer o mais do mesmo. Que é um problema do cordel e também da literatura em geral.
Os mesmos temas, os mesmos personagens, as mesmas histórias, escritos pelas mesmas pessoas. Me incomodava muito também que fosse tão cheio de machismo, que personagens gays, travestis, negros, mulheres, tivessem sempre um papel secundário, ou debochado. Ainda mais meu avô que é superconservador, meu pai um meio termo e eu fui uma revolução total.
Aí foi bom que meu pai deixou de ser um meio termo e meu avô surpreendentemente recebe muito bem os meus cordéis. Ele sair de uma pessoa que dizia que feminista e sapatão é a mesma coisa, de uma forma muito pejorativa, pra ler os meus cordéis e ter orgulho deles é um passo muito grande. Então minha ideia era essa, de juntar a tradição com o novo. E eu não seria capaz de escrever alguma coisa que não trouxesse estas questões de alguma forma. Com protagonistas mulheres no mínimo, mas que se eu fosse escrever algo sobre os travestis e os gays, que fosse como personagens complexos como qualquer outro e não com estereótipo e deboche. E todas as outras coisas que escrevo também são super influenciadas pelo cordel.
Os cordéis em sua maioria são machistas e misóginos?
Predominante sim. Infelizmente. Porque são histórias de um cangaceiro, ou de um sertanejo, de um guerreiro… O homem sempre é uma figura heroica, e a mulher sempre na posição de coadjuvante, isso quando ela não está sendo ofendida. Mas lógico que seria sim, porque a maioria das pessoas que escrevem cordel têm mais de 40 anos, outra geração, outro mundo. Não que isso justifique, mas ainda mais no contexto do Nordeste que tem o machismo como uma característica muito forte da cultura.
Os homens são mais reconhecidos, mais convidados, mais lidos. Tem uma antologia do cordel brasileiro que é um livro que só tem homens, não tem nenhuma cordelista mulher. Nenhuma! Recentemente saiu uma matéria do Nexo sobre cordel, muito grande, trazia dados antigos, mas só homens. Até mesmo a mulher que foi entrevistada, uma pesquisadora, só citou homens. Ao final a matéria ainda faz uma mea culpa dizendo que só tem homens, mas é porque é assim mesmo. Mas não é bem assim.
Existem mulheres cordelistas, mas tem que romper um pouquinho a preguiça para pesquisar e encontrar esses nomes. Até mesmo porque são nomes menos acessíveis, porque se você convida sempre as mesmas pessoas para falar sobre cordel, elas darão sempre as mesmas referências. Eu tenho referências diferentes das do Marco Aurélio, que foi quem escreveu a antologia do cordel brasileiro, por exemplo.
Qual seu principal objetivo ao escrever cordéis?
Quando eu faço cordel, na verdade qualquer coisa que eu escrevo, eu escrevo porque quero contar histórias que não foram contadas, principalmente porque as pessoas que protagonizam essas histórias não puderam contar. E eu escrevo muito para me ligar às minhas origens. Porque sou da classificação geral como dizem ‘parda’, e sou negra como identificação política, embora minha pele seja clara, meu pai é negro, também de pele clara, e ele é o único negro da família dele. E eu não sei de onde veio a negritude da família.
Então eu escrevo muito em busca disso, de me conectar com essa origem que eu não conheço, e que infelizmente a maioria das pessoas negras brasileiras não conhece porque uma das primeiras coisas que foi roubada das pessoas negras que foram sequestradas e traficadas para o Brasil foi a identidade. O nome foi mudado, o sobrenome, e com isso se perde a origem.
Hoje estou aqui por que antes tiveram pessoas que lutaram tanto, para que eu tivesse direitos que eu considero tão garantidos e não são. Antes de eu escrever, Carolina de Jesus escreveu e sofreu muito para conseguir publicar. No momento em que ela fugiu do estereótipo do fetiche que tinham sobre ela da favelada que escreve sobre a favela, ninguém quis mais ler, e ela não deixou de ser escritora, ela insistiu muito. E eu me identifico muito com isso. Porque se eu não me encaixar neste estereótipo, se não fizer um personagem cômico para escrever cordel, é menos cordel?
É uma forma de me relacionar com a minha cultura sem ser reduzida a ela. Eu gosto de Lady Gaga, de Metal e tenho tatuagens, e gosto de cordel e xilogravura. E falo comendo plural. E aí? Dá um nó. O cordel é uma literatura que não tem voz no Brasil hoje no mercado editorial.
E você tem sido bem recebida no cenário dos cordéis, mesmo abordando temas pouco tratados no cenário?
Eu sou muito na minha e por saber que eu sou muito aberta em criticar o que acho que precisa ser discutido, eu não me aproximo muito porque não queria impor nada. Se rolasse interesse em dialogar estaria sempre aberta, mas nunca procurei. Meus contatos são meu pai e meu avô. Nunca tive nenhum problema, mas ao mesmo tempo eu percebo que não sou a pessoa convidada por quem faz curadoria de alguns eventos. Não sei se porque sou muito nova ou se porque o que eu faço é muito carregado de política. Isso fecha algumas portas e pode abrir outras.
Você sente que os novos cordéis já abordam temas mais políticos e temas novos?
As pessoas que tenho acompanhado no Facebook estão sim fazendo temas novos. Discutindo gênero por exemplo. Tem um cordelista homem bem tradicional que recentemente publicou uma biografia de uma heroína negra, que inclusive é uma das que está no meu livro, que eu já tinha escrito sobre ela antes. Só não sei se é um interesse genuíno, uma vontade de mudar, ou se é aproveitando a onda do momento. Ao mesmo tempo percebo coisas que você não acredita que exista ainda em 2017.
E sobre este título de mais nova cordelista…
Disseram isso, mas acho que não é bem assim. Conheci recentemente um menino de 18 anos que publica cordéis no Instagram. Talvez as pessoas achem que eu sou a mais jovem que leva isso profissionalmente. Primeiro porque as pessoas não conhecem muitos cordelistas, e eu acabo aparecendo mais, pois já vinha aparecendo antes falando sobre feminismo, estava na internet, e também porque eu acho que eu consigo fazer um diálogo com gerações mais novas, e com temas novos, e eu não sou a figura estereotipada que as pessoas esperam quando se fala em cordelista. Já vi mulheres em evento com chapéu de couro, roupa de chita… é um personagem, e eu não tenho nada a ver com isso. Quando eu chego numa escola para falar de cordel as pessoas esperam outra coisa, sei lá, o Chicó do Auto da Compadecida (risos). Nada contra, mas não sou eu. Mas enfim, não dá pra saber quem é o mais jovem cordelista. Tomara que não seja eu.
Numa era extremamente digital, com questões sobre o fim do livro, fim do impresso, como o cordel tem se reinventado neste sentido?
Eu acompanho dois autores que têm belas iniciativas que são Um repente por dia e a outra o Estilo Xilo. Ambas são 100% digitais. Tanto no cordel, na literatura, quanto nas xilogravuras. São dois rapazes jovens. Acho isso muito incrível porque torna acessível uma literatura que é tão desvalorizada e que as pessoas acham que é reduzida a certos espaços. Por exemplo, pensam em cordel e acham que vão encontrar na feira nordestina de algum lugar, ou em um livro da escola e nunca mais. E colocar essas artes no Facebook ou no Instagram e dialogar com novas gerações faz com que as pessoas se aproximem do cordel e tenham menos preconceito, e vejam que cordel não é só Lampião. Se uma tradição está morrendo é porque ela falhou em dialogar, em se reinventar e trazer novas coisas. Eu não acredito em tradição por tradição. Tradição para mim tem que ser preservada se trouxer coisas boas para o presente e para o futuro. Então o cordel tem que se reinventar, tentar chegar de outras formas…
E tem conseguido?
Eu tenho dificuldade de ver como estão os outros além do meu trabalho. No meu caso tem dado muito certo. Eu tenho chegado em muitas pessoas que não conheciam, dando oficinas de cordel… O que eu vejo muito é cordel em livro. Igual eu fiz agora, peguei meus 15 folhetos e publiquei em livro. E eu vejo muitos cordelistas que não publicam mais folhetos, só fazem livros, porque a editora quer o livro. Eu tenho a impressão que o cordel está fadado a virar só livro. Mas para afirmar isso precisa de alguma pessoa que pesquise, que vá atrás de mais informações. Mas eu sinto isso. E as pessoas ainda enxergam o cordel como algo bem folclórico, não é literatura, não está em pé de igualdade com outras literaturas, é considerado inferior, não é visto como poesia… Nenhum concurso literário premia poesia em forma de cordel, não tem seção na livraria, não tem folhetos na livraria…
Um dos sensos comuns que podem interferir nesta questão de inferiorizar o cordel pode ter a ver com a questão de escrever “errado”, entre muitas aspas…
Tem cordéis e cordéis. Meu avô, por exemplo, escrevia sempre tudo muito certinho. Meu pai também, dentro das normas gramaticais e ortográficas. Para caber na métrica a gente muda ou encurta as palavras. O ‘até’ vira ‘té’. Acho ridículo exigir gramática e ortografia perfeita para considerar algo bom e bem escrito. O bem escrito não tem nada a ver com a revisão, mas é como se comunica, a poesia daquilo, o que causa na pessoa… Eu tenho pena das pessoas que pensam assim. É ser muito pequeno. A língua portuguesa, a brasileira então, é muito rica na sua regionalidade. A beleza do cordel é isso também de traduzir tão bem uma identidade. E ninguém fala tão corretamente. Quem que fala ‘deu de ombros’? E ta lá no livro. Mas ninguém usa. Por outro lado comemos o plural o tempo inteiro. Não é forçar a fala errada ou ficar engraçado, ou querer mostrar como uma pessoa é burra, mas as pessoas falam desse jeito. E pra mim isso torna a literatura ainda mais rica. Tanto de sentimento, de você se identificar com aquilo, de se imergir com aquilo, mas pela estética também. Quando o cordel está cheio de referências regionais.
Quais as suas maiores influências no cordel?
Meu pai. A forma que a gente escreve se parece muito. Eu aprendi com ele né? Mas principalmente porque meu pai já escrevia cordéis discutindo temáticas importantes. O primeiro cordel que li dele foi Os quinhentos anos que invadiram o Brasil, na época dos 500 anos e Globo passava umas vinhetas à época e ele tava putíssimo. Meu pai era punk quando mais novo, gosta de reaggae, tem tatuagens, maconheiro assumido, de defender a causa, então é grande influência para mim. E outra pessoa é a Salete Maria, professora de Direito da UFBA (Universidade Federal da Bahia), e uma vez ela escreveu um documento apresentada ao juiz todo em forma de cordel.
E fora do cordel?
Na minha adolescência li muita poesia, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Paulo Leminski, Ferreira Goulart, Augusto dos Anjos… muitos homens. Depois fui descobrindo o feminismo e tendo acesso à internet, lá no Cariri era mais demorado, e descobri poetas, principalmente não brasileiras, como a Silva Clark e a Anne Sexton, Alice Ruiz… Depois eu comecei a me perguntar por que na minha estante só tinham homens, que não tinha livros feitos por mulheres, e depois me perguntar sobre não ter referências de escritoras negras. E tive de fazer um exercício de procurar para ler. Não que me influenciem na escrita, mas são referências para mim, e abriram caminhos para que eu pudesse escrever. Conceição Evaristo, Beatriz Nascimento, são mulheres que tenho muita gratidão por tudo o que elas fizeram até aqui.