Por Marcelo Auler, em seu blog
Ao justificar o recebimento, junto com sua esposa, a também juíza Simone de Fátima Diniz Bretas, de um duplo auxílio-moradia, Marcelo da Costa Bretas, titular da 7ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro e, como tal, juiz de parte da Lava Jato que o transformou “em agente da moralidade pública” – como definiu Elio Gaspari no artigo O Judiciário resolveu ser réu (Folha de S. Paulo – 31/01) – alegou ter obtido o direito ao penduricalho em uma decisão judicial.
Para ele, isso demonstra a legalidade do ganho pelo casal de duas ajuda de custo com a mesma finalidade: pagar a casa em que ambos residem, provavelmente, casa própria. São R$ 8.755,46 mensais.
Concedido liminarmente pela juíza federal Fabíola Utzig Haselof (2/12/2014) e por sentença pela juíza Elizabeth Mendes (27/08/2015), a extensão do benefício para Bretas não só foi fruto de uma decisão classificada por muitos – a começar pelo deputado Federal Paulo Teixeira (PT-SP) – como “corporativa”. Contou ainda com a ajuda de “uma interpretação amiga” do Código de Processo Civil (CPC).
Pelo artigo 496 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (o novo CPC), “está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença (I) proferida contra a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações de direito público”. Ou seja, quando a decisão de primeira instância é contrária ao Tesouro Nacional – como no caso – torna-se obrigatório o recurso a um Tribunal.
Verdade que a própria Lei nº 13.105 isenta desta obrigatoriedade “se a condenação ou o proveito econômico obtido na causa for de valor certo e líquido inferior a: I – 1.000 (mil) salários mínimos para a União e as respectivas autarquias e fundações de direito público“.
Informação inverídica nos autos
No caso do Processo nº. 0168069-35.2014.4.02.5101 que Bretas e outros quatro magistrados federais – Paulo César Morais Espírito Santo, Anelisa Pozzer Libonati de Abreu, Erik Navarro Wolkart e Maria Luiza Jansen Sá Freire Solter – ajuizaram na 24ª Vara Federal do Rio de Janeiro reivindicando o direito de também receberem o auxílio-moradia já percebido pelos respectivos cônjuges, o dispêndio do Tesouro Nacional, mensalmente, ficou em R$ 21.888, 65.
Valor bem aquém dos mil salários mínimos vigentes à época (R$ 788,00). Mas, trata-se de uma decisão permanente, que por ano gerou – e continua gerando – um gasto de R$ 262.663. De lá (setembro 2014, pois a decisão foi retroativa) para cá (dezembro de 2017) já consumiu R$ 875.546. Isto não computando outros servidores que possam ter se aproveitado da decisão.
Não deixa de ser curioso, porém, que no próprio processo fala-se que houve recurso. Mas ele não aconteceu. Na mesma página do site da Justiça Federal do Rio em que aparece a sentença da juíza Frana há o registro de que o processo seguiu para recurso da Advocacia Geral da União (AGU) em 04 de setembro de 2015. Consta ainda que foi encaminhado ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), em 5 de outubro do mesmo ano, “por motivo de Processar e Julgar Recurso“.
Por onde o processo andou não se sabe. O certo, porém, é que Em alguma prateleira ele adormeceu já que o “recurso” anunciado, não foi impetrado Isto o Blog constatou não apenas na consulta ao site do TRF-2 mas, também através da assessoria de comunicação do mesmo. A resposta ao questionamento que fizemos confirmou nossa suspeita:
“Na verdade, houve um equívoco no lançamento da informação no sistema processual Apolo, da primeira instância. Não houve, então, recurso da AGU para o Tribunal. A ação transitou em julgado, cumprido o prazo necessário após a sentença de primeiro grau, e foi arquivada, como você pode verificar nos andamentos processuais subsequentes. Esta é a razão pela qual não é encontrada apelação no TRF2″.
Ações distintas da AGU
Independentemente de o CPC não exigir tal recurso, há, porém, um detalhe que foi ventilado apenas pelo Tijolaço em Bretas & Bretas: casal que “penduricalha” unido permanece unido. A mesma Advocacia Geral da União (AGU) que, aparentemente, deixou de recorrer da decisão que beneficiou Bretas e seus colegas no Rio – dando-lhe a interpretação “amiga” do CPC da obrigatoriedade dos recursos apenas em valores superiores a mil salários mínimos – em Brasília, manteve um entendimento diverso.
Lá, ela bateu à porta do Supremo Tribunal Federal (STF) contra a decisão liminar da 20ª Vara Federal do Rio de Janeiro – processo n.º 0037927-06.2015.4.02.5101 – que concedeu o auxílio-moradia a magistrados da Justiça do Trabalho do Rio de Janeiro casados com colegas. Tal e qual ocorreu com Bretas.
Na Medida Cautelar na Suspensão de Liminar 937, o então presidente do STF, Ricardo Lewandowski, em novembro de 2015 – poucos meses depois da sentença definitiva que beneficiou Bretas – ao conceder a liminar mandando suspender os pagamentos, registrou os valores gastos com tal decisão:
“Como visto, a decisão que se pretende suspender permitiu, com efeito retroativo a setembro de 2014, o pagamento de “ajuda de custo para moradia” a diversos magistrados trabalhistas cujos cônjuges ou companheiros já recebiam a mesma verba, portanto, em desacordo com a Resolução 199/2014 do Conselho Nacional de Justiça que regulamentou a matéria.
Segundo informações da Presidência do TRT da 1ª Região, o impacto desse pagamento, considerado o efeito retroativo, é de R$ 612.006,66 (seiscentos e doze mil e seis reais e sessenta e seis centavos). Some-se a isso o efeito multiplicador da causa”.
Valor aquém também dos mil salários mínimos. Mas, de tal forma significativos que levou a AGU recorrer e o então presidente do STF a mandar suspender tais pagamentos.
Já no caso de Bretas não houve recurso, nem pedido de extensão da decisão de Lewandowski ao caso.
Driblando congelamento salarial
Tampouco qualquer dos juízes (aos quais cabe fazer cumprir as leis) envolvidos no processo – independentemente de serem autores de uma ação ou ainda, responsável pela decisão – se preocupou em cumprir o CPC. Fossem outros os beneficiários, ficariam calados?
Na defesa do seu gesto, incompreendido e não aceito pela maior parte da população, como sugere Gaspari no artigo citado – “se o doutor tem medo de castigo, não deve levar seu pleito ao balcão de uma lanchonete da rodoviária. Lá, trabalhadores que esperam pelo transporte teriam dificuldade para entender como juízes ou promotores, cujos salários iniciais estão em R$ 27.500 ou R$ 26.125, precisam de R$ 4.300 de auxílio -moradia para trabalhar na cidade em que sempre viveram” – Bretas tentou se justificar com o deputado Paulo Teixeira.
O diálogo deu-se no Facebook a partir de um comentário postado pelo parlamentar, que consta reproduzido ao lado.
Para ele, ao que parece, uma decisão judicial é tudo. Mesmo que soe imoral. ou a corporativismo como destaca Teixeira na conversa. Basta que tenha sido dada por alguém togado
Quando fala em direito “assegurado” a cada magistrado, Bretas, assim como seus colegas de toga e outros beneficiários do esdrúxulo auxílio moradia – membros do Ministério Público, por exemplo – usam de um sofisma.
Parece óbvio, a qualquer comum dos mortais que a Lei Orgânica da Magistratura ao prever a “ajuda de custo, para moradia, nas localidades em que não houver residência oficial à disposição do Magistrado” (Redação dada pela Lei nº 54, de 22.12.1986), refere-se ao juiz que foi removido de comarca para uma cidade onde não residia.
Justifica-se tal auxílio, portanto, não apenas nos casos de mudança em uma mesma unidade da Federação, como também quando juízes são convocados para auxiliarem em tribunais superiores, em Brasília, onde não residiam antes. Em tais situações, pouco importa se o magistrado, membro do Ministério Público, ou mesmo outro servidor público, possui ou não imóvel próprio onde morava.
No caso de Bretas, por exemplo, em 2014, quando o ministro Luiz Fux decidiu liminarmente estender indevidamente a todos os juízes federais o benefício, ele e a esposa, aparentemente, teriam direito normal a uma cota, pelo menos. Ambos estavam lotados na Comarca de Petrópolis, cidade serram fluminense. Não residiam ali.
O benefício, porém, seja em nome da moralidade pública – que hoje Bretas, como um dos tutores da Lava Jato defende intransigentemente e vem condenando os membros do Executivo e do Legislativo que a atropelaram nos últimos anos no Rio de Janeiro – seja em nome das próprias regras traçadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – Resolução Nº 199 de 07/10/2014 -, não pode ser pago indiscriminadamente a todos. Por exemplo, quando o casal é formado por servidores, como no caso dele. Por residirem debaixo de um mesmo teto, nada justifica dois pagamentos, a não ser a tese de que se trata de um componente salarial.
Esta tese vem sendo defendida por magistrados federais, bem como procuradores da República, diante do congelamento de salários que as duas categorias sofreram nos últimos anos. Reconheça-se que, mesmo percebendo remunerações consideradas altas – altíssimas, em comparação com a média da população brasileira – não sofrem reajuste há tempos. O auxílio-moradia passou a ser entendido não como indenização pelo pagamento de um aluguel por terem sido removidos, mas como uma compensação salarial que burla o congelamento dos salários.
Auxilio é visto como salário
Entendido desta forma, ele passou a ser justificado por magistrados como Bretas com um direito individual. Mesmo quando casados com servidores que já percebem a ajuda. Por isso que já em 2014, quando estava em Petrópolis, comandando a 1ª Vara Federal, onde a sua mulher Simone de Fátima também era lotada (na 2ª Vara Federal), Bretas foi bater à porta da justiça em busca do benefício que a esposa já percebia.
Na medida em que foi dado aos juízes federais, logo o benefício foi estendido aos magistrados e membros do MP dos estados. Indistintamente. Aos que moravam na comarca onde trabalhavam ou não. Tivessem ou não imóveis próprios. Virou penduricalho dos salários.
Com um agravante. Em muitos estados o arrocho salarial não foi feito e juízes e promotores, mesmo driblando a lei que determina como teto os vencimentos dos ministros do Supremo Tribunal Federal, passaram a contar com diversos outros “auxílios” que elevaram exponencialmente seus vencimentos.
No caso do Rio de Janeiro, por exemplo, a Lei Estadual 5.535, de 10 de setembro de 2009, estipulou aos magistrados (e, por tabela, aos procuradores e promotores de Justiça) inúmeros auxílios e benefícios. Todos foram considerados inconstitucionais pela Procuradoria Geral da República. Ela, em março de 2010, questionou sua legalidade através da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 4.393).
Quando de seu julgamento, em maio de 2012, o ministro relator, Carlos Ayres Brito, sinalizou que vários deles são de fato inconstitucionais e deveriam ser suspensos. Mas o processo acabou paralisado pelo ministro Fux. Ele fez um pedido de vistas e permanece com o processo em seu gabinete, como mostramos em O Impedimento que Fux esqueceu de reconhecer.
Com isso, garante sobrevida aos benefícios há quase seis anos. Com isso também beneficia a sua filha, Mariana Fux, que com a ajuda do pai foi nomeada desembargadora do TJ-RJ em março de 2017.
Isonomia valeria para o DPF??
Ao justificar o fato de ter ido bater à porta da Justiça cobrando isonomia no tratamento a outros juízes, Bretas parece dizer que qualquer uma que o fizesse também se beneficiaria de uma decisão como a que conquistou. É mais um sofisma.
Pegue-se o caso do Departamento de Polícia Federal (DPF). Nele só recebem ajuda moradia os ocupantes de cargos acima de DAS-4 que são, em geral, coordenadores (tais como diretores) lotados em Brasília. Abriu-se, recentemente, uma brecha e está sendo pago também aos superintendentes das duas maiores cidades brasileiras; São Paulo e Rio.
Há que se destacar que são ajudas bem diferentes das que o Judiciário e o Ministério Público destinam a seus membros. A começar pelo valor. Até recentemente era de R$ 1.800,00. Diferem ainda na forma de pagamento. Não recebem aqueles que possuem casa própria na cidade onde estão lotados. A quantia também não é paga indistintamente. O servidor precisa provar o valor real do aluguel. Se for inferior ao teto estipulado, ganha o necessário para o pagamento.
Na ação que Bretas e seus colegas impetraram, defendem a isonomia aos demais juízes, independentemente de os cônjuges serem também magistrados. Seria o caso de questionar se Bretas, na condição de juiz, concederia o mesmo direito à isonomia a um delegado federal que questionasse o privilégio de apenas cargos DAS-4 receberem do DPF auxílio moradia? Afinal, independentemente do cargo que ocupem, sendo transferidos de cidade todos terão que providenciar um teto para residir.
No fundo, a decisão que o beneficiou soa puro corporativismo. Beneficiando aquele que ganharam fama de “guardiães” da moralidade publica, acabam afetando a imagem construída pela chamada grande mídia. Não à toa que, dia após dia, a Operação Lava Jato aos poucos perdem o respaldo que contou no passado não muito distante. Não é apenas por conta do auxílio-moradia pago a Bretas, mas isto ajuda também.
Acaba tornando mais visível aos olhos de quem ainda não enxergava como tal a finalidade mais política do que moralizadora. Talvez essa percepção justifique aquilo que Ricardo Kotscho, no seu Balaio, comenta nesta quarta-feira (31/01) em Lula continua imbatível: alguma coisa deu errado na Lava Jato:
“Foram quatro anos de fogo cerrado, sem limites e sem tréguas, para destruir a imagem de Lula e tirá-lo da disputa presidencial.
Era para acabar com ele e seu partido, valeu tudo na guerra de extermínio, mas o ex-presidente continua vivo, como revela a primeira pesquisa Datafolha após a condenação em segunda instância, divulgada nesta quarta-feira.
Alguma coisa deu muito errado na Operação Lava Jato, que tinha e tem Lula como seu principal alvo. Faltou apenas combinar com os eleitores“.