Anúncio de que Sonia Guajajara será candidata a vice-presidente chama a atenção para a sub-representatividade dos povos nativos nos espaços de poder no Brasil
João Soares – DW
A chapa do Partido Socialismo e Liberdade (Psol) que vai disputar a Presidência da República será a primeira na história a ter uma candidata indígena. Ao lado de Guilherme Boulos, Coordenador Nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Sonia Guajajara é o nome do partido para vice-presidente.
O ineditismo da candidatura, que será oficializada neste sábado (10/03), reaviva o debate sobre a representatividade dos povos nativos nos espaços de poder. Em 1982, Mário Juruna foi eleito deputado federal pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) do Rio de Janeiro. Até hoje, é o único indígena a ter exercido mandato no Congresso Nacional.
Já a Fundação Nacional do Índio (Funai), criada em 1967 para coordenar e executar a política indigenista do governo federal, nunca foi presidida por um representante das comunidades diretamente afetadas por suas decisões.
Segundo a professora da Escola de Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Clarisse Gurgel, a força do poder econômico na política brasileira é um fator determinante para a participação reduzida dos indígenas na vida institucional.
“Não é preciso ir aos rincões do Brasil para identificar a política do coronelismo. Mesmo em uma metrópole como o Rio, isso é observado. Mas, em regiões que concentram reservas indígenas, como o Norte, essa realidade é muito agravada. Num contexto em que os índios estão pauperizados e criminalizados, a penetração na política se faz refém dessas práticas de pirataria da política”, diz.
A cientista política chama a atenção, ainda, para os efeitos da ausência de representantes indígenas entre os tomadores de decisões. “Eles não participam do debate público e ficam sem condições de enfrentar interesses prejudiciais a si próprios, como os da bancada ruralista. Além disso, não conseguem disputar recursos públicos para auxiliar em sua luta. Agora, tudo isso condicionado a uma única questão: se esse indígena está ciente de sua condição de trabalhador”, complementa.
Na política local, o cenário é similar, mesmo em cidades onde reside um número expressivo de povos nativos. Nas eleições municipais de 2016, 28 indígenas se candidataram a prefeituras e cinco conseguiram se eleger. Nas câmaras de vereadores, foram 167 eleitos em um universo de 1.531 postulantes. O último censo demográfico realizado pelo IBGE, em 2010, apontava que a população indígena no Brasil totalizava 896,9 mil pessoas.
Não podemos mais assistir de longe
Especialmente após a promulgação da Constituição Federal de 1988, cresceu em várias regiões do Brasil a formalização de organizações indígenas, com diretorias eleitas em assembleias, estatutos registrados em cartório e contas bancárias próprias. Nelas, grupos com visões diferentes sobre diversas reivindicações buscam fortalecer a luta por questões consensuais, como o direito à terra, à saúde e à educação junto aos meios institucionais.
Um desses coletivos, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) conta com a presença da candidata do Psol em sua coordenação executiva. Alinhada com o discurso do partido ao qual é filiada desde 2011, Guajajara rechaça que seja candidata a vice-presidente, mas à “copresidência” com o líder do MTST.
Ela admite que havia, entre as lideranças indígenas, uma certa rejeição à ideia de disputar a política institucional. Entretanto, essa posição foi se modificando gradualmente, ao longo dos anos, e pode ser evidenciada em uma carta divulgada pela Apib em janeiro do ano passado com o título: “Por um parlamento cada vez mais indígena”.
“Nos últimos anos, acompanhamos as votações no Congresso muito de perto. Foram muitos projetos de lei, PECs, e percebemos o quanto é reduzido o número de parlamentares que está do nosso lado. E mesmo os mais combativos não conseguem falar do nosso lugar. Tem que ser um de nós. Não podemos mais ficar assistindo de longe. Para fazer mudanças, temos que estar lá dentro”, comenta.
Original do Maranhão, Sonia integra a tribo que dá origem a seu sobrenome. Ela ficou conhecida mundialmente ao subir no palco do Rock in Rio 2017, com a cantora Alicia Keys, para discursar a favor da demarcação de terras na Amazônia. Aos 43 anos, é formada em Letras e Enfermagem e pós-graduada em Educação pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).
O professor de Antropologia na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) Spensy Pimentel lembra que a presença de indígenas em universidades brasileiras é cada vez maior, há duas gerações. “Eles estão buscando essas ferramentas do mundo acadêmico e isso se reflete no jogo político deles. Não quer dizer que essa escolarização se traduza necessariamente em uma participação no sistema politico oficial. No nosso sistema politico também é assim. Não necessariamente o candidato com melhor formação será mais votado”, afirma.
Guajajara conta ter sido procurada, nos últimos dias, por diversas lideranças indígenas pouco interessadas, até então, na vida institucional, que manifestavam a vontade em participar da disputa eleitoral deste ano.
Spensy Pimentel afirma que a candidatura de Guajajara só vai representar uma abertura para maior representação indígena com mudanças estruturais.
“Apesar do simbolismo da chegada de Lula à Presidência, não tenho notícia de que tenha aumentado o número de trabalhadores nordestinos no Congresso. O mesmo vale para a Dilma, com as mulheres, e Obama, em relação aos negros nos EUA. Mesmo assim, sua candidatura é uma novidade muito interessante. Talvez, ajude a perceber que os povos indígenas estão muito distantes dos estereótipos que a sociedade teima em reproduzir”, argumenta.
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Foto: Sonia Guajajara em Berlim em 2017: agora candidata a vice-presidente do Brasil.